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CAPÍTULO 4 A EXPRESSÃO POLÍTICA E POÉTICA DOS GRAFITES

4.4 Grafite Stencil entre o espontâneo e o premeditado

Enquanto os grafites poéticos estimulam a leitura do observador aproximando-se da criação literária, os grafites artísticos priorizam a imagem, conduzindo a interpretação sígnica, da cor, da mensagem, da iconografia, provocando o cidadão quando ele passa apressado na rua, desviando-o do sentido contundente e confuso da publicidade.

Gradativamente dos anos 70 para os 80, aumenta a presença dos grafites stencil, uma técnica simples, que possibilita a cópia de uma mesma imagem a partir de uma matriz cortada como um molde vazado feito de

papelão, couro, radiografias ou outros materiais plásticos, e permite imprimir em qualquer superfície com pincel ou

spray. (Fig. 56)

Há indícios do uso desta técnica, com uso decorativo no interior de pirâmides egípcias, e na antiga tradição ornamental Chinesa. Na idade média também, como ornamento, era usada no mobiliário, piso e em papéis de parede. (MANCO, 2002, p.8-9)

A difusão da técnica, como uma forma de intervenção urbana, antes de ser apropriada por artistas, foi muito usada na Europa e na América do Sul como instrumento político. Durante a Segunda Guerra Mundial: “italianos também usaram

stencil para pintar imagens de

Mussolini como propaganda fascista, assim como os bascos e mexicanos usaram a mesma técnica como protesto nos anos 70. (MANCO, 2002, p.8-9)

FIGURA 56

FIGURA 57

FIGURA 58

Com sua fácil reprodução o stencil permite a circulação em série de uma mesma imagem. Assim, esta técnica irá definir um novo estilo de grafite. Diversas imagens vão surgindo com diferentes temáticas e variadas formas plásticas, cada vez mais elaboradas e criativas, inaugurando nos anos 80 uma forma singular de apropriação da arte nos espaços públicos. Não se trata apenas de levar a arte para as ruas, mas utilizar-se do ambiente urbano como expressão e produzir nele e a partir de sua paisagem e dos próprios estímulos que a cidade provoca.

Na França, nos anos 80, este estilo tornou-se uma forte expressão numa combinação de protesto e tradição Art Deco, uma prática que já vinha se popularizando desde o período das manifestações de 68. Blek le Rat foi um dos jovens responsáveis pela difusão deste estilo de grafite que tornou freqüente em outras cidades no mundo.(Fig. 57)

Atribui-se a introdução do stencil no Brasil a Alex Valauri, etíope e cidadão italiano. Valauri começou sua carreira artística como gravador, explorando principalmente na xilogravura a plasticidade dos símbolos da cultura de massa, e todo o repertório imagético urbano. Valauri, com o tempo vai substituindo a xilogravura pela montagem de matrizes de grandes formatos recortadas e estampadas pelos muros da cidade. O que não significa um abandono pelo artista da sua origem como gravador, uma vez que a técnica do

stencil aproxima-se bastante da serigrafia, porém, com um acréscimo: a

mobilidade do suporte, a imprevisibilidade, o inusitado e a irreverência. Suas obras caracterizavam-se por uma fusão de elementos da iconografia popular,

inspirada na pop art, e a técnica do stencil. Valauri explorou com vigor o submundo do cais em Santos, cidade portuária na qual morou por um período da sua vida, o que lhe inspirou sua obra mais famosa, A Rainha do Frango

Assado, (Fig.58-59) que remete a uma releitura particular, alegórica e

insinuante do universo feminino que Valauri não poupou ao desenhar e sprayar pelas ruas.

O kitsh disseminado por toda São Paulo e Nova Iorque (por onde Valauri produziu alguns trabalhos), foi percebido e anexado ludicamente em sua obra, como símbolo standartizado da indústria de sonhos e decepções, típica das grandes metrópoles, como num jogo onde a fantasia se confundia com a realidade amarga e confusa da vida urbana. (SPINELLI,1998)

Além de Valauri, outros artistas como Carlos Matuck, Valdemar Zaidler, John Howard, Maurício Vilaça, Ozéas Duarte, o grupo tupinãodá e muitos outros infestaram a cidade de São Paulo no final da década de 70 com seus grafites curiosos, irônicos, sedutores e extremamente criativos.Um jogo de imagens lúdicas dispostas de modo a mexer com o dia-a-dia da cidade.

De repente São Paulo apareceu meio marota... a cartola de Mandrake fazia explodir dezenas de símbolos e signos das aflições e das alegrias do homem da megalópole: corações, raios, cifrões, notas musicais. A primeira imagem a surgir, a bota, logo depois a pantera, o crocodilo, o telefone, os malabaristas e a rainha do frango assado. (AMARANTE,.1987)

A dialética das imagens fazia com que a lenta configuração pelo processo interventivo de uma pequena história fosse contada nos cantos dos muros entrecruzando com o cotidiano frenético da cidade. Não se pode negar e nem deixar de atribuir a esta técnica um diálogo direto com o público – o artista elabora o trabalho e projeta-o para a cidade. Eles acabam disponibilizando sua

obra para o público em geral, para que ela possa ser lida, interpretada e interferida, estimulando, assim, múltiplas recriações a partir dela.

[...] no nosso caso, a gente, às vezes grafitava uma imagem para aquele lugar [...] que tinha uma árvore perto, ou uma coisa do lado, podia ser um buraco. Enfim, era muito mais legal, mais interessante pra nós percebermos as variações, em todos os sentidos, da cidade, seja plástica [...] para que pudéssemos inserir o trabalho ali naquele lugar. (Marcos Malafaia – integrannte do grupo Flit – em entrevista concedida à autora)

Em Belo Horizonte entre os anos de 1994 e 1995, surgiu o Flit – um grupo de artistas, entre eles Marcos Malafaia, Marilá Dardot, Pablo Pires, Pedro Portela, Andrey Stephan entre outros – que fizeram uso também da técnica do stencil para produzir grafites nas ruas da cidade. Eram jovens artistas e universitários que se reuniam, articulavam, produziam e trocavam experências em torno de interesses comuns pelos grafites, pela música, pela artes plásticas, pelo cinema e pela literatura.

As pessoas que faziam grafite [stencil] naquela época, aqui, em Belo Horizonte eram muito poucas [...] tivemos essa iniciativa, que de fato partiu da Marilá Dardot, do Pablo Pires e do Pedro Portela que tinham conhecimento do movimento de grafite de São Paulo, e o trouxeram para cá.[...] Flit era uma espécie de ateliê de grafite, de spray. [...] aconteciam reuniões na casa do Andrey, ele era uma espécie de organizador da parte mais caótica do grupo, fazíamos festas, [..] e a gente conheceu muito da música, da MPB, não da linha principal, era um grupo bastante consistente, do ponto de vista da pesquisa, da interligação de movimentos musicais mundiais.[...] era uma época bastante agitada, [...] onde a gente se divertia muito, lia muito, discutia, ia ao cinema, saía à noite pra grafitar [...] e tudo tinha aquele frescor da coisa nova. (Marcos Malafaia – integrante do grupo Flit – em entrevista concedida à autora)

No sentido de aglutinar várias tendências, o grupo se aproximara também da linguagem dos quadrinhos, através de Piero Bagnariol, quadrinista de origem italiana que propôs aos integrantes a criação de uma revista de história em quadrinhos

[...] pelo conhecimento do Piero do quadrinho, e pelas influências que tinha, eu acredito, da produção européia, ele queria uma revista diferente [...] Aí ele nos convidou para fazermos uma revista que misturasse quadrinhos com grafite. Só que aí, a influência nossa do grafite, foi tão forte e tão motivadora, tão divertida, que a revista até assumiu o nome Graffiti 76%, (Marcos Malafaia – integrante do grupo Flit - em entrevista concedida à autora)

Então os dois grupos se encontraram – um para atuar na rua com os grafites, e outro com os quadrinhos – em torno da revista, que se tornou forte em Belo Horizonte. A identidade do grupo foi marcante no sentido de se contrapor a uma abordagem banalizada e consumista tanto do grafite quanto do quadrinho:

No caso do quadrinho, a gente, desde cedo, na Graffiti 76% optou pela idéia de quadrinho autoral, ou seja, saindo daquela linha principal do quadrinho de mercado. E no caso do grafite a gente procurou também, outras formas de impressão e de relacionamento com a cidade, que se distanciava tanto da pixação, que era uma coisa diferente na nossa opinião [...].diríamos assim, e do grafite da corrente principal que era o grafite influenciado pelos grafites americanos. (Marcos Malafaia – integrante do grupo Flit – em entrevista concedida à autora)

No caso específico dos grafites, a idéia era de promover experiências urbanas genuínas e de propor leituras não convencionais da própria comunicação e do próprio objeto artístico na cidade (ROCHA, 1992). Por isso buscavam-se gêneros artísticos prévios – das artes plásticas, da música, da literatura e da fotografia.

[...] era isso é que nos interessava – dialogar com a cidade – a gente queria conversar, mas conversar anonimamente e essa atitude tinha um pouco a ver a com a Marilá, que trouxe muita referência, principalmente do Julio Cortazar, [...] e esse reflexo dele, da vontade, da dificuldade de se comunicar [...] a gente foi muito influenciado por ele também [...]. (Marcos Malafaia – integrante do grupo Flit - em entrevista concedida à autora)

apuramento estético pretendidos por esse artistas. A função estritamente artística estava ressaltada seja como recurso de uma intervenção lúdica no espaço urbano, seja para utilização da rua como espaço de experimentação.

A utilização das ruas aparecia então ora como ateliê, ora como laboratório, ora como vitrine de exposição, sem excluir no entanto, a conjunção deste com aquele aspecto. (ROCHA, 1992, p.213)

Há neste caso a busca de um campo inusitado de ação para a arte, distante do campo de ação midiático que se impõe na cidade:. “uma procura [...] de um experimental que fosse alternativo [...] que devolvesse ao artista sua essência e ao objeto artístico uma renovada legitimidade. (ROCHA, 1992.P.135)

[...] desligar a escritura-grafite das antigas formas panfletárias e recorrer a novos subterfúgios formais: introduzir o afeto (e o afeto social), mas também a forma de arte, a figura, e não só a palavra, para conceber um novo projeto estético de sua iconoclastia contemporânea. (SILVA, 2001, p.4)

Hoje, os grafites stencil ainda permanecem anonimamente nas ruas, dividindo com as outras vertentes, com as mensagens políticas e a publicidade, cada centímetro da cidade.