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CAPÍTULO 5 O GRAFITE, O HIP-HOP E SEUS CÓDIGOS

5.6 Processo de experimentação com a palavra

[...] um ruído confuso que é preciso escutar com atenção e paciência, até poder distinguir o som raro e modesto de uma palavra que ao menos por um momento faça sentido.

Ítalo Calvino

Os grafiteiros têm como repertório básico a escrita, para ser vista, não para ser lida pela população, já que é compartilhada e interpretada como uma espécie de código. Eles não se prendem ao fato de não serem artistas, são orgulhosos de serem “escritores” de rua: Writers. Não apenas no sentido de delinear palavras sobre uma superfície, mas de narrar efeitos de uma realidade, e muitos alfabetos para isso são necessários, desde o mais simples até outros talvez mais sofisticados.

BAUDRILLARD (1996) fala da carga simbólica dos grafites, feitos para serem dados, trocados, transmitidos ao anonimato coletivo, sem conteúdo nem mensagem. “É o vazio que faz a sua força”. (BAUDRILLARD, 1996, p.103). Segundo o autor, a respeito da natureza sígnica dos grafites nova-iorquinos, “eles não querem dizer nada, e sequer são nomes próprios.” (BAUDRILLARD, 1996, p.102). São uma espécie de matrícula simbólica, feita para subverter o sistema comum dos nomes.

[...] como uma recusa de toda elaboração sintática, poética, política...Nem denotação, nem conotação, eis como escapam do princípio da significação e, na qualidade de significantes vazios, irrompem na esfera dos signos plenos da cidade, que eles dissolvem por sua mera presença...Essa forma de nome simbólico é negada pela nossa estrutura social, que impõe a cada qual seu nome próprio e individualidade privada. (BAUDRILLARD, 1996, p.102).

Trata-se de colocar-se fisicamente diante de uma linguagem, o seu corpo contra o corpo da linguagem em letras, que se transforma em uma espécie de entidade física. (OLIVA, 1998, p.28)

Escrever o nome na parede serve ao jovem como satisfação de um desejo cuja essência é reconhecer-se e sentir-se reconhecido pelos demais, e serve também como um direito de cidadania e participação na polis. Para Hygina Bruzzi (1997), nesse traço há uma espécie de impressão digital do indivíduo num momento de raro prazer em participar cotidianamente nesse universo escrito de antemão:

[...] tanto da caligrafia aos caracteres não se perde a beleza manifesta de forma clara mesmo para o mais sofisticado escritor, ao reconhecer sua escrita no espelho do texto impresso. Quando ele pode dizer com satisfação: “não é que ficou bom? “ Se este reconhecimento narcísico existe, no mais sofisticado dos escritores, o que dizer dos jovens das periferias das cidades ao se verem reconhecidos por esta escrita na superfície nova, polida e lisa dos revestimentos mais refinados( granito, mármore, aço) dos edifícios que se apresentam como estética premiada da cidade? (BRUZZI, 1997, p.80)

É instigante investigar esse processo de experimentação com a palavra em seu caráter visual, e a imagem valendo-se dos signos da letra, “esvaziada” do seu sentido original.

As letras emaranhadas que constituem o sentido hermético dos grafites equivalem a uma perfeita fusão entre o signo e a imagem`, num sentido visual e conceitual, o mesmo que existiu muito antes da invenção de qualquer alfabeto: “quando escrever e desenhar eram quase a mesma coisa. [...] Como na Idade Média, quando as palavras se inscreviam junto à imagem” (MELENDI, in ALMEIDA, 1997. p.32) ou no Cubismo que fez uso das principais técnicas de aplicação do texto no trabalho artístico.

O campo das artes visuais tem proposto inúmeras reflexões no sentido da desconstrução do sentido da escrita. Muitos artistas, desde os pertencentes aos movimentos artísticos que emergem a partir do século XX, incorporam em

suas obras a palavra em seu caráter visual, fragmentos de textos, signos situados entre a forma e a escrita. Nas

últimas décadas muitas foram às propostas de artistas de produção de objetos com palavras, instalações textuais e com ênfase em outros sistemas lingüísticos, como a própria arte conceitual, que extrapola na obra o seu sentido visual e propõe outros tipos de percepção. Muitos, também, são os artistas que lançam mão da escrita, ao tirar a letra de seu contexto, devolvendo a ela sua força, chamando nossa atenção para outros significados.

Roland Barthes ao analisar a obra do artista contemporâneo Cy Twombly reflete: “a escritura não é a forma nem um uso, mas apenas um gesto, o gesto que a produz, não o produto” (BARTHES, 1984, 146).

[...] Façamos a distinção entre a mensagem que quer produzir uma informação, o signo que quer produzir uma intelecção e o gesto, que produz o restante, sem querer, obrigatoriamente, produzir alguma coisa.[...] O artista é, por estatuto, um operador de gestos: quer e, ao mesmo tempo, não quer produzir um efeito; os efeitos que produz não são obrigatoriamente intencionais; são efeitos inversos derramados, que lhes escaparam, que voltam a ele e provocam, então, modificações, desvios, leveza do traço.(BARTHES, 1984, 144)

Barthes refere-se aos “grafismos” de Cy Twombly como: ”estilhaços inúteis, que nem chegam a ser letras interpretadas, que vem a anular o ser ativo da escritura, a malha de suas motivações, mesmo se estéticas” (BARTHES, 1990, p.146) (Fig. 76, 77). Para o autor “[...] não é neste limite extremo que começa verdadeiramente a ‘arte’, o ‘texto‘, todo esse ‘para nada’ do homem, sua perversão, seu esforço?” (BARTHES, 1990, p.146)

Grafitar ou pichar de forma rápida e efêmera trata-se muitas vezes de destituir a escrita de seu sentido original. Tudo o que vai acontecendo é uma

desconstrução do sentido da letra e da forma, da sua função, e resulta na invenção de um outro código, outra forma.

Os grafites estão impregnados da multiplicidade de informações sensoriais, imagéticas e textuais que residem à sua volta, de estímulos verbais e visuais, presentes na dinâmica do espaço da rua: placas, sinais de trânsito, os cartazes e seus signos publicitários. Constiuem-se como um tipo de expressão plural uma vez que requerem uma relação híbrida entre várias linguagens e formas visuais. Para os grupos que reconhecem os diversos alfabetos e decodificam seus códigos

há em sua totalidade uma linguagem, visível e legível, que distingue e separa tudo ao final, imagem, enunciado e texto. Para nós, que nos situamos fora de seu domínio e lançamos sobre os grafites um olhar inquieto que não é capaz de distinguir no seu conteúdo, o que é escrito daquilo que não é, eles provocam em nossos olhos um certo embaralhamento, pois sabemos que há um texto, porém não é lingüístico, não é legível. É um texto exclusivamente visual. Há também um outro texto que esta imagem nos traz e que muitas vezes não somos capazes de ler. Ou esta escrita é insuficiente para inscrever aquilo que pretende ou nossa interpretação é ineficaz ao ponto de não

FIGURA 76

perceber “esta verdade primeira do sujeito,” (LODI, 2003, p.27) que traduz tanto na imagem que traz, quanto no símbolo ou signo que propõe uma realidade.

Nossa experiência de arte comporta, assim de fato, uma considerável parte verbal. Quando se vêem quadros, esculturas ou instalações, a visão jamais é pura visão. Escuta-se falar de obras e de artistas, lêem-se histórias e críticas de arte, o olhar está sempre contaminado pelos comentários. (MELENDI, in ALMEIDA, 1997, p.32)

É preciso que possamos “ler” essas escritas, não apenas do ponto de vista estético, mas também do ponto de vista ético e político. E ultrapassando o sentido do ”vazio” apontado por Baudrillard possamos aprender na totalidade do corpo social o sentido dessas manifestações gráficas.