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GÊNERO E ARTIFICIALIDADE: UMA ANÁLISE DO GÊNERO COMO UM PRODUTO DE

5 GÊNERO, CORPO E COERÊNCIA: O DISCURSO OFICIAL DE GARANTIA DE

5.1 GÊNERO E ARTIFICIALIDADE: UMA ANÁLISE DO GÊNERO COMO UM PRODUTO DE

de poder

Estudar-se-á o elemento gênero e sua artificialidade, considerando a sua correlação para com as relações de poder. Para tanto, utilizar-se-á, principalmente, a teoria de Judith Butler, filósofa estadunidense, conhecida e considerada como uma das principais estudiosas da chamada Teoria Queer; professora do departamento de retórica e literatura comparada da Universidade da Califórnia, em Berkeley.

Iniciar-se-á o estudo, principalmente, com base na obra Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade (2014), da referida filósofa. O primeiro ponto a ser destacado em sua teoria, é a ênfase dada a uma naturalização do gênero, ao ponto de o conceder o caráter de permanente. A mulher como um conceito amplamente aceito, tornando-se ontológico, diante de sua fixação e rigidez. Butler (2014) se propõe a estudar uma espécie de genealogia da ontologia do gênero, diante de sua constatação de rigidez, analisando o referido elemento não como origem e causa, e sim como um efeito de instituições, de relações de poder. Sexo e gênero, em sua teoria, são considerados elementos construídos culturalmente, ao ponto de não poderem ser considerados permanentes, uma vez que não são naturais e sim produzidos, artificiais, por uma cultura heterossexual e heterossexista, que possui objetivos como a manutenção e reprodução de seus preceitos em níveis compulsórios. Uma cultura implementadora de normas de gênero, que são socialmente criadas e mantidas (SALIH, 2013). Guacira Lopes Louro (2014) comenta sobre a artificialidade do sexo e do gênero, ao apontar a sustentação de Butler de que ambos seriam construídos culturalmente. Não haveria distinção entre sexo e gênero. O sexo é desde sempre gênero. Sustenta-se que constatações como esta são ameaçadoras dos pilares de uma realidade construída, interferindo no modo que a sociedade pensa e vive.

Quando se passa a dizer que não apenas o gênero, mas também o sexo é culturalmente construído, quando alguém sugere, como faz Judith Butler, que ‘talvez o sexo tenha

sido, desde sempre, gênero, de maneira que a distinção sexo/gênero não é, na verdade, distinção alguma’, está se pondo em risco noções fortemente enraizadas na

lógica e na existência de todos. Na medida em que se questiona a normatividade do gênero e da sexualidade se põe em xeque algo que pode ser visto como um dos ‘pilares’ do modo como pensamos e vivemos. A lógica binária que define os sujeitos como macho ou fêmea também implica que os gêneros serão dois e que a sexualidade deve ser exercida com alguém de sexo/gênero oposto. A heteronormatividade que

dá suporte a essa lógica, como todas as outras normas, se exercita de modo silencioso, invisível, disseminado [...]. (Louro, 2014, p. 37, grifo nosso).

A sustentação da ideia de que o sexo sempre foi gênero é revolucionária no que concerne as relações de poder criadoras e reprodutoras de um modelo de realidade propagado como natural e normal. Desvela-se, com esta perspectiva, a artificialidade do sexo, vinculando-o a um segundo elemento artificial, o gênero. Subverte-se a lógica de um corpo dotado de um sexo natural, isto porque o sexo teria sido construído culturalmente, assim como o gênero.

Donna Haraway, em seu Manifesto Ciborgue: Ciência, tecnologia e feminismo- socialista no final do século XX (2009), ratifica a perspectiva do gênero como um elemento

social e historicamente construído, componente de um discurso reiterado socialmente de naturalidade. O gênero como um elemento artificial, porém reproduzido socialmente em linhas de essência, o que legitimaria o discurso de ser mulher como algo natural e, portanto, unificador de um grupo de indivíduos.

Depois do reconhecimento, arduamente conquistado, de que o gênero, a raça e a classe são social e historicamente constituídos, esses elementos não podem mais formar a base da crença em uma unidade ‘essencial’. Não existe nada no fato de ser ‘mulher’

que naturalmente una as mulheres. Não existe nem mesmo uma tal situação – ‘ser’ mulher. Trata-se, ela própria, de uma categoria altamente complexa, construída

por meio de discursos científicos sexuais e de outras práticas sociais questionáveis. A consciência de classe, de raça ou de gênero é uma conquista que nos foi imposta pela terrível experiência histórica das realidades sociais contraditórias do capitalismo, do colonialismo e do patriarcado. (Haraway, 2009, p. 47, grifo nosso).

A categoria mulher como um produto de práticas sociais problemáticas, assim como de discursos científicos sexuais, que inclusive já foram discutidos na presente tese, quando se elucidou os dispositivos de poder incidentes sobre o corpo. A consciência de gênero como um fruto da experiência histórica, artificial, socialmente reproduzida como natural em níveis de valores e interesses capitalistas, coloniais e patriarcais. O gênero como um construto.

Tal perspectiva é compatível com o que foi sustentado ao longo dos segundo e terceiro capítulos da presente tese, quando se destacou dispositivos de poder incidentes sobre o corpo, responsáveis pela criação do sexo, do corpo sexuado, naturalizando-o e o vinculando a um gênero. Sexo e gênero em uma linha de estabilidade, coerência e normalidade.

[...] O gênero não deve ser meramente concebido como a inscrição cultural de significado num sexo previamente dado (uma concepção jurídica); tem de designar também o aparato mesmo de produção mediante o qual os próprios sexos são estabelecidos. Resulta daí que o gênero não está para a cultura como o sexo para a natureza; ele também é o meio discursivo/cultural pelo qual a ‘natureza sexuada’ ou ‘um sexo natural’ é produzido e estabelecido como ‘pré-discursivo’, anterior à cultura, uma superfície politicamente neutra sobre a qual age a cultura. [...] Na conjuntura atual, já está claro que colocar a dualidade do sexo num domínio pré-discursivo é uma das maneiras pelas quais a estabilidade interna e a estrutura binária do sexo são eficazmente asseguradas. (Butler, 2014, p. 25, grifo da autora).

A sustentação do sexo como uma base natural, pré-discursiva, enquanto o gênero como um elemento culturalmente construído a partir do sexo; possui um lugar e uma função na lógica de configuração das relações de poder incidentes sobre o corpo. Trata-se de um discurso estratégico para a produção de estabilidade à estrutura binária, uma vez que ao colocá-la em

níveis naturais o seu questionamento, em nível social, torna-se mais remoto, diante de ser reproduzido como um dado da natureza. O corpo e o sexo como elementos naturais [sic], eis a chamada metafísica da substância.

O gênero, à luz da Teoria Queer, seria um elemento limitado pela própria estrutura de poder da qual ele faz parte, restringindo-se ao gênero masculino e feminino, determinados por uma escolha prévia realizada em nível de relações de poder. Sara Salih, em sua obra Judith Butler e a Teoria Queer, traduzida por Guacira Lopes Louro (2013); relaciona a citada limitação ao ato de escolha de uma peça de roupa em um armário. Assim como neste momento, quando se fala de gênero não há uma livre escolha, ou mesmo escolha, considerando que a mesma se propaga dentro de uma realidade criada de poder, lei ou cultura.

A metáfora da escolha da peça de roupa está vinculada à figura do gênero, no sentido de que no referido ato de escolha há uma série de expectativas sociais que se deve atender, a depender da ocasião, local e horário, por exemplo. Socialmente, a escolha da roupa é variável às pessoas com quem se irá socializar, também. Ressalva-se, entretanto, que a citada metáfora sugestiona a existência de um indivíduo antes do discurso, o que seria incompatível com a teoria de Butler, a partir da qual não há sujeito anterior à cultura e ao discurso, sendo a sua identidade produzida por estes (SALIH, 2013).

Ainda que o indivíduo subverta a lógica da naturalidade, identificando-se como uma mulher trans ou homem trans, o mesmo ainda estará preso a uma lógica binária de gênero. Ou é homem ou é mulher, atendendo a uma estética própria. Restrito, entretanto, a estas duas possibilidades. Trata-se de uma matriz heterossexual, da qual o gênero é um elemento sustentador, funcionando como uma espécie de moldura em relação a qual o sujeito social é submetido.

Identifica-se a transição corporal como um elemento diretamente relacionado à perspectiva limitante da lógica de gênero. Muda-se o corpo na busca de se readequar a uma realidade binária, presa a escolhas realizadas externamente por relações de poder e repassadas como naturais ao indivíduo, atravessando o seu corpo e os objetos que compõem a sua realidade social, por meio de uma violência simbólica.

Neste sentido, seria possível falar de liberdade em linhas de gênero? Respeito a diferentes formas de vida em um contexto de gênero? Liberdade em existir em compatibilidade com o gênero? Propõe-se tais perguntas diante da vinculação do gênero a um controle, a uma espécie de escolha realizada previamente pelo indivíduo, sem o seu consentimento, porém repassado ao mesmo como natural. Sustenta-se, a partir da presente tese, a impossibilidade de

uma liberdade sobre o corpo, sobre as múltiplas experiências de vida, a partir da lógica de gênero.

Sustenta-se não ser possível o exercício de uma liberdade sobre o corpo, sobre suas experiências para com outras pessoas e para consigo mesmo; em uma redoma de gênero. Não há liberdade quando suas experiências já foram previamente limitadas, pensadas e possibilitadas, em uma lógica binária moderna de ser.

De acordo com Butler (2014), sexo e gênero podem ser performativamente reinscritos. Trata-se da ideia de perfomatividade. O gênero como um fazer, ao invés de ser, uma vez que é artificial. Logo, se é dotado de artificialidade o mesmo poder ser performado. Trata-se de uma encenação.

Culturalmente, indivíduos em sociedade são ensinados a reproduzir uma encenação de gênero. Normas de gênero são aprendidas e seguidas. Eis comportamentos, pensamentos, falas, gostos; todos construídos por uma estrutura de poder complexa, que domina os corpos dos indivíduos em sociedade. O gênero, assim como o sexo, como elementos performáticos. Encena-se um papel atribuído pela cultura, linguagem e discurso.

Butler complica a noção de ‘identidade de gênero’. Afirma que gênero não é algo que somos, mas algo que fazemos. Não é algo que se ‘deduz’ de um corpo. Não é natural. Em vez disso, é a própria nomeação de um corpo, sua designação como macho ou como fêmea, como masculino ou feminino, que ‘faz’ esse corpo. O gênero é efeito de discursos. O gênero é performativo. [...] Um grande investimento vai ser empreendido para confirmar tal nomeação. Ela não está absolutamente garantida. Precisará ser repetida, citada e recitada incontáveis vezes, nas mais distintas circunstâncias. E poderá, igualmente, ser negada e subvertida. O devir pode tomar muitas direções. O terreno do gênero é escorregadio e cheio de ambivalências. (Louro, 2013, p. 32).

Sexo e gênero como elementos que são indispensáveis para a composição da identidade do personagem, performático, produzido por relações de poder. Em linhas de dominação simbólica, não há uma escolha a não ser seguir o roteiro pré-fixado para aquele papel, para aquela identidade, artificial. Diante da artificialidade do gênero, sustenta-se a artificialidade da identidade de gênero que encena ser. Eis o homem masculino e a mulher feminina, como produtos artificiais de uma lógica de poder. A masculinidade e a feminilidade como performances.

A ideia de performatividade, portanto, ataca diretamente a naturalidade e estabilidade dos elementos sexo e gênero, assim como o do corpo também vinculado a um suposto sexo

natural, o corpo sexuado. Ambos são artificiais, frutos de uma construção de poder, de dispositivos de poder, a se nomear o dispositivo de sexualidade e transexualidade.

Entretanto, a referida constatação pode ser utilizada também como instrumento de destaque ao caráter produzido do gênero e de suas identidades, a partir de um contexto binário e heterossexual. Trata-se da utilização da performance como elemento de resistência ao complexo de poder. (BUTLER, 2014).

Butler (2014) sustenta o caráter paródico do gênero, no sentido de imitação, destacando as dimensões contingentes da corporeidade, a ideia de sexo anatômico, identidade de gênero e performance de gênero. A partir de tais elementos, o caráter paródico pode assumir um efeito subversivo, quando a norma da coerência heterossexual é substituída pela artificialidade do sexo e gênero, por meio de uma paródia que destaca a distinção entre eles, encenando a unidade fabricada pela cultura reprodutora de relações de poder e instauradora de uma realidade social.

Performance não é sinônimo de subversão, entretanto. Apesar do gênero e do sexo serem performáticos, é possível uma performance de gênero que reproduza as estruturas de poder, ratificando uma dominação heteronormativa. Trata-se do indivíduo que reproduz uma estética criada para o gênero, aderindo à mesma. Eis o objetivo das relações de poder, a aderência do dominado e a reprodução de sua lógica, sendo realizadas por meio de uma encenação diante de sua artificialidade (BUTLER, 2014).

O gênero é a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância, de uma classe natural de ser. A genealogia política das ontologias do gênero, em sendo bem-sucedida, desconstruiria a aparência substantiva do gênero, desmembrando-a em seus atos constitutivos, e explicaria e localizaria esses atos no interior das estruturas compulsórias criadas pelas várias forças que policiam a aparência social do gênero. (Butler, 2014, p.59).

O caráter performativo do gênero não pode ser afastado da prática compulsória e reiterativa das normas de regimes sexuais regulatórios, ao ponto de entender a performatividade não como o ato por meio do qual o sujeito coloca em prática aquilo que nomeia. Pelo contrário, a performatividade como poder reiterativo do discurso com fins de produzir os fenômenos que ele regula e constrange (BUTLER, 2003).

A partir da concepção butleriana de performance e a sua ressalva quanto as relações de poder, sustenta-se em nível de tese ao menos três possibilidades de experiências para com o corpo, em níveis de performance. Inicialmente, uma performance reprodutora das categorias

dominadas, construídas e reproduzidas em nível cultural. Trata-se da performance padrão de gênero, em que o indivíduo adere integralmente à estética direcionada ao masculino e ao feminino, inclusive aos padrões sobre o corpo sexuado correspondente.

Chamar-se-á tal performance na presente pesquisa de performance normalizada, termo este que possui um significado complexo, uma vez que carrega a informação de que o indivíduo que a exerce está diante de elementos artificiais, sexo e gênero, por conseguinte o corpo; assim como reproduz tais elementos artificiais como naturais, aderindo à lógica de poder, que dociliza corpos no sentido de que os mesmos obedeçam normas externas construídas e reproduzidas socialmente, sob um discurso de naturalidade.

Em um segundo contexto, sustenta-se uma performance limitada, no sentido de que o indivíduo transcende à lógica de estabilidade e coerência entre sexo, corpo e gênero; todavia, sua encenação ainda está presa às categorias construídas externamente por relações de poder. Uma subversão que ainda está amarrada a categorias como corpo sexuado, sexo biológico e ao próprio gênero. A exemplo de experiências de vida enquadradas no conceito de homem trans ou mulher trans.

Ainda que se subverta a naturalização de um sexo biológico em um corpo e a vinculação dos mesmos para com o gênero, identifica-se uma reprodução de categorias produzidas pela lógica dominante. O indivíduo não é enquadrado como tão somente um ser humano, e sim como um homem ou uma mulher marcada pelo sufixo trans, destacando-se a fronteira que lhe cerca, diante da normalidade fixada ao indivíduo cisgênero.

Por fim, vislumbra-se um terceiro contexto. Intitulado, na presente tese, de performance abandonada. Esta seria um tipo de experiência marcada por uma perspectiva subversiva. A partir da reflexão das categorias artificialmente criadas e alinhadas em caráter biológico essencialista, consegue-se entender o conceito de performance, diante da artificialidade produzida pelas relações de poder incidente sobre o corpo, sexo e gênero; entretanto, não se aderindo a tais categorias.

A performance, nesta experiência, é conhecida, porém abandonada. Uma vez que não se está encenando um gênero específico, muito menos um sexo. O indivíduo se liberta, abandona as amarras do gênero, do sexo, do corpo sexuado; sem a produção de uma performance de gênero, uma vez que tem consciência de que o mesmo foi construído para lhe dominar. Ao invés de uma encenação subversiva limitada, uma arte de viver não mais pautada no corpo sexuado, sexo e gênero. Uma experiência para além do corpo sexuado. Uma identidade desvinculada de tais categorias de dominação.

Considerando a artificialidade do gênero e o referencial teórico revisitado na presente tese, assim como a análise de conteúdo de escrevivências de pessoas trans; passar-se-á, em uma seção específica, a analisar a transição corporal e a sua vinculação para com relações de poder.

Ressalva-se que pela leitura do presente estudo, ao longo do mesmo, já se pode extrair inúmeras considerações e reflexões sobre a mudança do corpo diante de um complexo de poder, não se deixando para analisar o seu objeto apenas no último capítulo. Entretanto, ainda que ciente de que a tese foi construída a partir de uma análise contínua da temática, para fins metodológicos e de elucidação, optou-se por construir um momento específico para tanto.