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2 RELAÇÕES DE PODER E SEXO: O DISPOSITIVO DE SEXUALIDADE E A

2.1 RELAÇÕES DE PODER: DA MORTE À VIDA MORTA

Conforme introduzido no tópico anterior, realizar-se-á uma breve análise sobre as relações de poder denunciadas por Michel Foucault. Tem-se como objetivo fornecer o substrato teórico necessário para a compreensão das discussões e problemática da presente pesquisa, analisando, em ato seguinte, a sua relação com o objeto da mesma.

Michel Foucault (2014c) revela uma forma de poder limitativa, chamada de Poder Soberano. Eis um poder que não possui diversidade nos seus recursos e procedimentos, não tendo a capacidade de inovar, estando condenado a auto repetição eterna. Trata-se de um poder marcado pelo não, sendo um instrumento de imposição de barreiras, desprovido de um caráter empreendedor.

Um poder que está pautado na proibição, exercida sobre aqueles que estão sujeitos ao mesmo, que estariam vinculados a realizar apenas o que essa estrutura de poder permite. Eis um poder que está centrado, essencialmente, em um modelo jurídico, no enunciado da lei e seu caráter interditório. Nesta forma de poder, a dominação dos indivíduos se resume ao ato de obediência aos enunciados peremptórios de permissão ou proibição.

Foucault, inclusive, critica (2014c) que este é o poder que se aceita facilmente, sendo utilizado como uma espécie de “véu” para esconder outras formas de poder que não são nítidas em sociedade. Esta forma de poder – controle jurídico – é o mais aceito e perceptível, criando- se uma barreira para a compreensão e identificação de poderes que funcionem a partir de uma lógica distinta, empreendedora, inventiva, que não estejam baseadas na proibição e obediência. No que concerne à origem deste poder, Foucault (2014c) sustenta que este é uma derivação formal da antiga pátria potestas, que concedia o direito de disposição da vida de filhos e escravos ao pai de família romano. A ideia é que este poderia lhes retirar a vida

justamente porque foi ele quem as concedeu, tanto ao seu filho como também ao seu escravo. Uma lógica de propriedade sobre a vida de terceiros.

Entretanto, o poder soberano representa uma forma atenuada deste antigo poder, tendo em vista que não mais se admite o seu exercício em níveis absolutos e incondicionais, mas apenas quando a vida do soberano esteja exposta. Na prática, funciona como um direito indireto de vida e morte, ao ponto que só possa ser exercido quando a vida do soberano está em risco.

Encarado nesses termos, o direito de vida e morte já não é um privilégio absoluto: é condicionado à defesa do soberano e à sua sobrevivência enquanto tal. Seria o caso de concebê-lo, com Hobbes, como a transposição para o príncipe do direito que todos possuiriam, no estado de natureza, de defender sua própria vida à custa da morte dos outros? Ou deve-se ver nele um direito específico que aparece com a formação deste ser jurídico novo que é o soberano? De qualquer modo, o direito de vida e morte, sob essa forma moderna, relativa e limitada, como também sob sua forma antiga e absoluta, é um direito assimétrico. O soberano só exerce, no caso, seu direito sobre a vida exercendo seu direito de matar ou contendo-o; só marca seu poder sobre a vida pela morte que tem condições de exigir. (Foucault, 2014c, p. 146).

Uma forma de poder que está pautada, portanto, na morte. Um poder que tem como objeto de condução a morte, em uma escala relativa, a ser aplicado quando a vida do soberano está exposta. Logo, mata-se para preservar a vida de indivíduos que são merecedores de proteção. Suas vidas são preservadas e valorizadas em função da morte de outros, que à luz do filósofo Giogio Agamben (2002) poderiam ser considerados indivíduos matáveis. Eis, portanto, uma forma de poder pautada no direito de causar a morte ou de deixar viver.

Foucault (2014c) sustenta que, a partir da época clássica, houve uma transformação na configuração do poder. Uma transformação radical, no sentido de que o poder que estava pautado na morte, no suplício, no castigo; perdeu a sua centralidade para uma nova configuração de poder, centrada na vida, no controle da vida dos indivíduos. Um poder que não tem como seu atributo a repressão, e sim o empreendedorismo; a criatividade; o controle da vida de indivíduos e de populações. Uma transformação que marca uma nova forma de existência para cada indivíduo, passando-se de uma mera existência jurídica, própria do poder soberano, para uma existência biológica.

É nesta transfiguração lógica que o objeto da presente tese de doutoramento está presente. Pode-se falar de relações de poder sobre o corpo a partir do referido mecanismo de poder incidente sobre a vida, em um período moderno, a partir do qual o corpo foi criado e utilizado como instrumento de controle de vidas.

Um novo mecanismo de poder centrado na vida, que se desenvolveu através de duas formas: Poder Disciplinar e Biopolítica das Populações, esta subdividida em governamental estatal e econômica neoliberal. Passar-se-á, mesmo que brevemente, a comentar as citadas duas formas de poder, com fins de contextualizar as discussões que serão travadas ao longo da presente tese.

A primeira forma de poder incidente sobre a vida, à luz da teoria de Michel Foucault, é o chamado Poder disciplinar, que tem como objeto de incidência o corpo, este em uma lógica individual. Os corpos ficam expostos a esta forma de poder, ganhando um status econômico. Passa-se a relacioná-lo a uma máquina, que precisa ser controlada, domesticada, ter horários de funcionamento, uma meta de produção e um padrão de comportamento. Trata-se de uma pedagogia corporal, relacionada ao viés econômico que marca este corpo, tornando-o uma peça manipulada pelo capital (FOUCAULT, 2014c).

Parafraseando o filósofo e professor Miroslav Milovic, em sua obra Política e Metafísica (2017), trata-se de um período em que o indivíduo é considerado pelas suas possibilidades, virtualidades, em relação à sociedade e não só pelos seus atos. Uma sociedade dominada pela lógica da vigilância panóptica, não mais pelo poder pastoral exercido sobre as almas e pelo poder soberano exercido pelo território.

Eis um poder vital exercido sobre o corpo, à luz da necessidade de majorar a utilidade e docilidade dos corpos, por meio de um sistema de controle eficaz e econômico, assegurado “por procedimentos de poder que caracterizam as disciplinas: anátomo-política do corpo humano.” (Foucault, 2014c, p. 150).

Uma sociedade marcada pela lógica do panoptismo, que é exercida por vários agentes sobre os corpos de indivíduos colocados em espaços de controle, seja na escola pelo mestre, seja nas prisões pelo diretor das mesmas, seja em casas de saúde pelos médicos e psiquiatras. São vigilantes, que possuem o poder não apenas de controlar, mas de formar um saber sobre os vigiados, pautado em padrões de normalidade, definidores do que pode ser considerado normal e anormal (FOUCAULT, 2013a).

Chamando atenção para o objeto da presente tese, pode-se destacar o impacto desta forma de poder no corpo dos indivíduos. Estes corpos passam a ser lidos a partir de uma lógica econômica. Deixou de ser interessante a morte, passa-se a uma lógica de poder que prioriza a vida. Entretanto, isso nem sempre representa algo positivo. Deixa de ter sentido matar, uma vez que se precisa dos indivíduos vivos, diante de um valor intrínseco a eles. Um valor que estaria

ligado a uma lógica de mão-de-obra, de exploração, de inserção deste indivíduo em uma linha de produção. Protege-se a vida, com fins de exploração dos corpos dos indivíduos.

Por sua vez, foi a partir da segunda metade do século XVIII que surgiu a segunda forma de poder sobre a vida, a Biopolítica das Populações. Antes de desenvolvê-la, é importante ressaltar que não houve um processo de substituição de uma forma de poder por outra, e sim uma articulação entre estas, o que inclusive foi chamado por Foucault de a era do Biopoder, que será analisada ainda neste capítulo.

Esta nova forma de poder, diferente da anterior, não incide sobre corpos individualizados, estando centrada no coletivo, em populações, no corpo-espécie. O nível biológico ganha centralidade, fazendo com que populações sejam analisadas a partir de sua existência biológica, com o gerenciamento de suas variáveis como nascimento, mortalidade e saúde; determinando-se os seus processos biológicos. Destaca-se, a espécie é colocada no centro de estratégias políticas, no sentido de que o “[...] o homem moderno é um animal em cuja política sua vida de ser vivo está em questão.” (Foucault, 2014c, p. 154-155).

Considerando as duas formas de poder destacadas nesta seção, Poder Disciplinar e Biopolítica das Populações, Foucault (2014c) sustenta a existência de um novo período, a era do Biopoder, que se desenvolve a partir das duas direções já discutidas nesta tese, pela disciplina, própria da primeira forma de poder; e pelas regulações de populações. O filósofo destaca que os citados poderes se articulam, formando agenciamentos concretos que constituem a tecnologia de poder no século XIX, sendo o dispositivo de sexualidade um dos mais importantes citados agenciamentos.

2.2 MORAL E PRÁTICAS SEXUAIS NA GRÉCIA CLÁSSICA E NOS DOIS PRIMEIROS