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RELAÇÕES DE PODER, VIOLÊNCIA SIMBÓLICA E A ESCOLHA DE ALTERAR O

2 RELAÇÕES DE PODER E SEXO: O DISPOSITIVO DE SEXUALIDADE E A

4.5 RELAÇÕES DE PODER, VIOLÊNCIA SIMBÓLICA E A ESCOLHA DE ALTERAR O

O presente capítulo tem como objeto de análise o elemento escolha na alteração do corpo, com fins de readequá-lo a uma nova identidade de gênero. Conforme sustentado ao início do capítulo, estar-se debruçado sobre um possível questionamento, ou discurso, de que ao não ser obrigatória a alteração do corpo, proporcionada pelo SUS, não haveria uma perspectiva de dominação, ou mesmo controle de corpos.

A presente seção, a partir do que foi apresentado sobre a teoria de Pierre Bourdieu, assim como à luz da exposição e análise das escrevivências de pessoas trans; preocupar-se-á em responder os questionamentos levantados acerca da mudança do corpo ser uma opção do indivíduo que se submete a mesma.

A partir da análise de conteúdo das experiências compartilhadas pelos participantes citados, pode-se identificar e estabelecer núcleos temáticos de alta relevância para a composição de uma linha de reflexão sobre o objeto estudado. Em um primeiro momento, identificou-se a construção de uma realidade declarada e vivenciada por pessoas trans. Uma realidade que se reverbera principalmente na sociedade, que reproduz uma estética muito bem marcada de gênero. São cores, esportes, profissões e, sobretudo, espaços de convivência eminentemente masculinos, femininos, de normais e anormais.

Identificou-se normas de gênero, que são reproduzidas socialmente e absorvidas. Compartilha-se uma genitalização do sujeito, no sentido de que o indivíduo é, em termos de gênero, o que a sua genitália representa, o que o seu corpo representa. O que é compatível e atinente às relações de poder sustentadas pelo dispositivo de sexualidade e de transexualidade, que pregam uma estabilidade e coerência entre corpo, sexo e gênero. Eis uma sociedade coerente, ainda que hipócrita, que cobra estabilidade do indivíduo para fins de reconhecimento. Uma realidade social em que há a criação, fixação e reprodução de uma estética de gênero, incrustrada nas consciências individuais dos indivíduos, de forma irrefletida. Para ser homem, ser mulher, é necessário ter um corpo específico, objetos determinados e

comportamentos definidos. Seguir uma estética que é repassada como natural, integrante da essência de um gênero. E o principal, identifica-se a produção de um corpo. Um corpo sexuado, um corpo de homem e um corpo de mulher, ambos como as únicas hipóteses de inteligibilidade em sociedade.

A partir de tal quadro social, notou-se efeitos que estariam sendo ocasionados às pessoas identificadas como trans, ainda que não absolutos. Consequências como rejeição de si, rejeição do próprio corpo, depressão e tentativas de suicídio foram relatados nos textos analisados. Interpreta-se os mesmos como frutos da realidade construída sobre a experiência de um indivíduo para com o seu corpo em sociedade.

Há um corpo normal, um corpo reconhecido, um corpo valorizado, um corpo natural. Quando o indivíduo não o possui, o surgimento de conflitos de ordem identitária para com o seu próprio corpo seria um efeito, ocasionando, portanto, a figura da rejeição e os outros efeitos relatados. Trata-se de uma cultura do corpo sexuado que é repassada desde a mais tenra infância ao indivíduo.

A pessoa já nasce em um contexto de normalização, produtor de uma realidade que é absorvida como natural, ao ponto de não se conseguir vislumbrar possibilidades para além da que é vivenciada. Ao ponto de não ser incomum relatos de estranhamento com o próprio corpo na infância, porque ninguém está isento dessa construção de poder.

Destaca-se a construção, por relações de poder, de um quadro de realidade que fixa o gênero ao corpo, à genitália. Uma fixação artificial que é repassada como natural, em níveis de uma violência simbólica que atravessa o indivíduo, fazendo parte do mesmo, ocupando seus pensamentos, comportamentos e sentimentos. Ocupando os seus objetos. Ocupando o próprio indivíduo, que dificilmente consegue subverter ao campo de dominação, apenas o reproduzindo.

Correlaciona-se tal reflexão ao conteúdo identificado nos textos das pessoas participantes citadas na seção anterior. Percebe-se uma naturalização da transição corporal como um elemento indispensável para fins de identidade de gênero. O corpo como elemento que, necessariamente, deve ter uma forma específica para fins de ser homem ou mulher. É compatível com a configuração das relações de poder, incidentes sobre o corpo, convencer os seus dominados a se enquadrarem em sua lógica construída, entretanto, reproduzida como normal e natural. Majoritariamente, por meio do irrefletido, reproduz-se

corpos sexuados, a partir de uma vinculação dos mesmos a um gênero. Neste ponto está a transição corporal.

E mais, identificou-se, também, que diante da construção de uma realidade social perversa, desagregadora e violenta, a mudança do corpo assume o papel de um instrumento de socialização, pelo menos no plano teórico, o que na prática possui variações e críticas. A aparência coerente, por meio do corpo e sua estética, como uma espécie de escudo contra a violência efetuado cotidianamente contra os corpos trans. Uma forma de melhor estar protegido, ainda que de uma forma insuficiente e mínima.

Ademais, identificou-se também uma fundamentação de alterações corporais com base na expectativa de ser aceito em uma sociedade que exclui o incoerente. Diante da marginalização efetuada pela realidade social, a transição do corpo como um elemento que concede esperança aos sujeitos para que os mesmos possam vislumbrar um acolhimento social. Ressalva-se, entretanto, conforme já relatado na seção anterior, que tais experiências de vida são consideradas, porém não generalizadas, uma vez que não se pode disseminar discursos que se repetem em textos como falas que representam um grupo por inteiro, de forma universal. Desta forma, buscou-se considerar e frisar diferentes histórias de vida, assim como destacar que tais percepções não são uníssonas, apesar de que se repetem na maioria dos textos analisados. A partir de tais percepções provenientes de análise de conteúdo de textos, pode-se realizar uma correlação das mesmas para com a teoria de Bourdieu, a fim de analisar o elemento escolha na realização de mudanças corporais para fins de readequação a uma identidade de gênero.

A nível de tese, sustenta-se que as relações de poder incidentes sobre o corpo são reproduzidas por meio de uma violência simbólica, que predispõe os sujeitos em sociedade a reproduzirem a sua lógica de poder. O campo do irrefletido está correlacionado à crença de que mudar o corpo é essencial para se afirmar em um gênero. Sendo assim, entende-se que o discurso que sustenta a existência da escolha é falacioso. Não se escolhe quando alguém já tomou uma decisão prévia pelo indivíduo e o mesmo é simplesmente conduzido a seguir uma configuração de poder externa.

A concepção de que a alteração do corpo é uma opção, a partir da presente análise, torna-se fantasiosa, uma vez que o sistema de poder, apresentando-se de forma doce, não dá opção a quem é atravessado pelo mesmo, a não ser segui-lo, acreditando que está usufruindo

de liberdade sobre o seu corpo, beatizando o Estado, que suspostamente permitiria o seu corpo ser como ele sempre deveria ser [sic].

Trata-se de uma reprodução de padrões corporais. Não existe corpo correto ou incorreto quando se fala de gênero. Existe um corpo criado e vinculado a cada um dos gêneros, sendo reproduzido como o correto e o adequado. A lógica de estranheza é produto, é um fruto de relações de poder incidentes sobre corpo, sexo e gênero.

Ademais, deve-se também destacar um outro núcleo de conteúdo identificado nos textos dos participantes, que indica que ainda que o indivíduo tenha consciência das normas de gênero incidentes sobre o seu corpo, ou seja, não estando mais no plano do inconsciente; o mesmo se vê coagido a realizar a mudança corporal por questões sociais. Por acreditar que sua trajetória de vida se tornará menos violenta, e mais bem reconhecida, ao seguir os padrões de gênero disseminados em sociedade. Trata-se de um elemento em que se deposita a expectativa de aceitação social.

Ainda no campo da consciência, um indivíduo que tem noção das normas rígidas de gênero e adere às mesmas por conta da sanção social que o ameaça, não realiza uma escolha. Realiza-se a hormonioterapia, por exemplo, não porque se quer, por espontânea vontade, e sim diante dos obstáculos de socialização, de reconhecimento, apresentados cotidianamente. O indivíduo se vê colocado em uma situação em que opta entre a sua morte e uma tentativa de sobrevivência. Morte em variados sentidos.

Entretanto, ressalta-se as brechas da estrutura de poder, o que permite a ascensão de sujeitos que transcendem à lógica de dominação, ainda que parcialmente, refletindo sobre a desnecessidade de alteração do corpo para fins de gênero. Assim, o discurso não é absoluto em termos de alteração do corpo, o que explicaria homens trans ou mulheres trans que não desejam passar por mudanças corporais. Trata-se de um contexto de complexidade frente aos efeitos das relações de poder modernas. O que não significa, porém, que não há controle de corpos e de vidas a partir do discurso de direito à saúde marcado por uma suposta escolha, sustentado pelo Estado. Muito pelo contrário, a percepção de resistência é minoria.

Sustenta-se a existência de uma estrutura de poder que domina corpos em sociedade, por meio de uma cultura do corpo sexuado. Inconscientemente ou não, as relações de poder marcam a realidade social, limitando a possibilidade de reflexão. Todavia, todo poder tem espaço pra resistência, tem uma fissura, por meio da qual o corpo é um trunfo de revolução. Sendo assim, identifica-se um núcleo minoritário de reflexão que transcende a corporalidade

para fins de gênero e que teria um grau de ingerência ao negar a realização de mudanças em seu corpo, ainda que o mesmo esteja sendo dominado em outras múltiplas esferas.

Em linhas de conclusão do presente capítulo, sustenta-se, se ainda não está claro, a inexistência da figura escolha, de forma majoritária. Afirma-se que, por meio de relações de poder sobre o corpo, não se pode sustentar que a transição corporal é uma opção do indivíduo. De forma consciente ou não, o sistema de poder é implacável, condenando o incoerente à figura da morte, ainda que o sujeito tenha a vida material. Morte de seus sonhos, morte de sua liberdade, morte de sua dignidade, morte de sua vida. E a ele, a margem. A modificação corporal representa uma esperança, um desejo naturalizado, a solução de problemas, a parte que faltava; considerando o minoritário grupo de reflexão sobre a mesma.