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Produção de corpos coerentes: estabilidade entre sexo, corpo e gênero

2 RELAÇÕES DE PODER E SEXO: O DISPOSITIVO DE SEXUALIDADE E A

3.1 DISPOSITIVO DE TRANSEXUALIDADE

3.1.2 Produção de corpos coerentes: estabilidade entre sexo, corpo e gênero

pessoas como doentes. O mesmo sistema de poder que cria a doença, projeta-se como aquele que a cura, produzindo intervenções sobre este corpo.

A interpretação de que existem dois corpos diferentes, radicalmente opostos, e de que as explicações para os comportamentos dos gêneros estão nesses corpos, foi uma verdade que, para se estabelecer e se tornar hegemônica, empreendeu uma luta contra outra interpretação sobre os corpos: o isomorfismo. Sugiro que a transexualidade esteja relacionada ao dimorfismo. [...] Ao se retirar o conteúdo histórico dessa experiência, apagam-se as estratégias de poder que se articulam para determinar que a verdade última dos sujeitos está em seu sexo. (Bento, 2006, p. 109).

À luz do que foi sustentado sobre a teoria de Laqueur (2001), assim como de Bento (2006; 2008), pode-se sustentar que a transexualidade é um instituto que surge após a hegemonia do dimorfismo. Só é possível falar em corpos transexuais a partir da transição do isomorfismo ao dimorfismo, uma vez que não há o que se falar de incompatibilidade de gênero em relação a um corpo nos moldes conceituais da transexualidade no modelo isomórfico. Entende-se, assim, que a transexualidade é moderna. É uma experiência criada a partir de relações de poder modernas sobre o sexo, corpo e gênero. A transexualidade surge a partir do dispositivo de sexualidade, sendo este associado, posteriormente, ao dispositivo de transexualidade.

Uma experiência patologizada, que tem suas raízes na naturalização da coerência sexual, na norma de que o corpo, sexo e o gênero devem ter uma correspondência. Trata-se de um corpo estável. Passar-se-á a desenvolver a referida estabilidade, coerência, a partir da próxima seção.

3.1.2 Produção de corpos coerentes: estabilidade entre sexo, corpo e gênero

Intrinsecamente correlacionado aos dispositivos de sexualidade e transexualidade, pode-se sustentar a construção de uma lógica de coerência sexual implantada sobre os corpos. Eis uma perspectiva de atravessamento do corpo pela estabilização dos elementos sexo e gênero.

Construiu-se um corpo, atravessando-o pelo sexo, alinhavando-o à uma estética da qual a genitália faz parte. Corpos esculpidos a partir de uma destinação biológica. O discurso é de que existem corpos naturais. Corpos naturalmente femininos e masculinos. E o natural é a

genitália. Esta fala pelo corpo. O corpo de uma mulher, o corpo de um homem, representados pelos seus órgãos genitais.

Eis um corpo sexuado. Eis a estabilidade de um corpo que carrega um sexo, sendo compatível, coerente com o gênero. Em linhas claras, ser mulher é ter um corpo feminino, e este corpo feminino está vinculado a ter uma vagina, seios, curvas. Ser homem é ter o corpo correspondente, um corpo atrelado ao pênis, sem seios desenvolvidos [sic]. Uma estética corporal de gênero.

Projeta-se, desta forma, um modelo de corpo. Um corpo sexuado, dimórfico. Um corpo que é ligado ao gênero a partir do sexo, da genitália, dita natural. A questão primordial é perceber que este modelo de corpo está pautado numa lógica de coerência, coerência sexual. Projeta-se a necessidade de se ter corpos coerentes para ser. A coerência como critério de inteligibilidade de um corpo. Este só adquire vida, espaço, reconhecimento social [sic] quando é coerente.

Uma lógica de poder que invade a sociedade, construindo-a, moldando-a, vendando-a; por meio da cultura. Socialmente, o corpo aceito é o corpo coerente. Mais especificamente, o corpo naturalmente [sic] coerente. Uma lógica de poder sobre o corpo que está embasada na ideia de complementaridade natural, esta como uma prova inquestionável sobre a verdade dos corpos. O gênero só alcançaria inteligibilidade a partir das capacidades inerentes a cada corpo, o que estaria pautado em uma lógica heterossexual (BENTO, 2008).

Os gêneros inteligíveis obedecem à seguinte lógica: vagina-mulher-feminino versus pênis-homem-masculino. A heterossexualidade daria coerência às diferenças binárias entre os gêneros. A complementaridade natural seria a prova inquestionável de que a humanidade é necessariamente heterossexual e que os gêneros só têm sentido quando relacionados às capacidades inerentes de cada corpo. [...] Os gêneros inteligíveis estão condicionados à heterossexualidade e esta precisa da complementaridade dos gêneros para justificar-se como norma. (Bento, 2008, p. 44-45).

Pode-se perceber duas etapas de pensamento. Duas esferas resultantes de uma lógica de poder. Primeiro, domina-se o imaginário do indivíduo, culturalmente, no sentido de que o mesmo naturaliza a ideia de que há um corpo pré-discursivo, um corpo natural, sem a intervenção de relações de poder. Naturaliza-se o conceito de um corpo sexuado, um corpo masculino e feminino, assim como a sua existência. Reproduz-se, socialmente, tais corpos como verdades, prontamente, aceitas e essencializadas.

O próximo passo, a segunda esfera de incidência dessa lógica de poder, envolve uma dissonância no sistema, quando o corpo natural [sic] do indivíduo não é coerente com o gênero

naturalmente atribuído a partir do corpo. Para tanto, é necessário que haja um corpo sexuado naturalizado em sociedade e que, a partir deste corpo, haja o surgimento de dissonâncias neste sistema naturalizado de coerência. Uma coerência entre sexo, corpo e gênero.

É neste contexto que é imperioso tratar da transexualidade. Esta surge na modernidade, enquanto dispositivo de poder. O dispositivo de transexualidade nasce vinculado ao dispositivo de sexualidade, conforme já analisado. O transexual é um sujeito criado, um indivíduo produzido por relações modernas de poder. Cria-se um sexo, um corpo sexuado, um gênero a partir deste corpo e deste sexo; criando-se, ainda, um sujeito que seria transgressor das normas estáveis, coerentes, reproduzidas em uma estrutura heteronormativa de poder.

Produz-se a ideia de que existe indivíduos marcados, naturalmente, por uma incongruência entre o seu sexo biológico [sic] e o seu gênero, sendo dotados de uma patologia, que seria resolvida a partir de alterações sobre este corpo. Trata-se de um discurso oficial, eivado, maculado, por uma lógica moderna de poder, empreendedora, patológica e patologizadora.

Há uma amarração, uma costura, no sentido de que o corpo reflete o sexo, e o gênero só pode ser entendido, só adquire vida, quando referido a essa relação. As performatividades de gênero que se articulam fora dessa amarração são postas às margens, analisadas como identidades transtornadas, anormais, psicóticas, aberrações da natureza, coisas esquisitas. (Bento, 2008, p. 45).

O transexual é produzido. Por consequência, as alterações do corpo de um indivíduo para fins de readequação do seu sexo biológico [sic] a sua identidade de gênero, também, estão incluídas neste campo de poder. São apetrechos de tecnologias específicas de poder sobre um corpo, que seduzem o indivíduo sob a ideia de que o mesmo para ser homem ou mulher precisaria ter o corpo coerente a este gênero, ainda sobre o discurso de direito à saúde.

Cria-se a doença, que não é uma doença. A partir dessa pseudo patologia, cria-se sujeitos a serem marginalizados e considerados doentes em sociedade. O ciclo é dotado de complexidade. Primeiro, adoece-se o indivíduo, para que depois, controlando o seu corpo, que o próprio sistema criou, este possa ser considerado curado pelas mesmas instituições que o tornaram socioculturalmente doente, posto que é uma patologia criada e reproduzida em sociedade, por meio da cultura. O indivíduo transexual não é um ser doente, mas culturalmente, foi reproduzido assim em sociedade pela mesma estrutura de poder que se propõe a curá-lo. Adoece-se o indivíduo para apagá-lo sob o viés de cura.

Bento (2008) realiza uma interessante correlação da homossexualidade com o transtorno de gênero. A socióloga sustenta que, contemporaneamente, a homossexualidade não é mais considerada uma doença, que não mais se considera a mesma em níveis patológicos. Entretanto, levanta-se uma desconfiança em relação a possibilidade de se ainda estar patologizando a homossexualidade, todavia, sob o novo viés do transtorno de gênero.

A patologização da sexualidade, evento já analisado no capítulo anterior, continua o seu funcionamento com grande impacto. Como se está falando de um mecanismo de poder empreendedor, moderno, o mesmo não mais se apresenta sob a esfera de definição de perversões sexuais ou mesmo a partir do homossexualismo. Trata-se de um dispositivo de poder que é realizado na criação dos transtornos de gênero, entre os quais está a transexualidade, patologizada: transexualismo.

O único mapa seguro que guia o olhar do médico e dos membros da equipe são as verdades estabelecidas socialmente para os gêneros. Não existe um só átomo de

neutralidade. Estamos diante de um poderoso discurso que tem como finalidade

manter os gêneros prisioneiros à diferença sexual. (Bento, 2008, p. 111, grifo nosso).

Explica-se. A concepção é a de que o gênero só consegue alcançar inteligibilidade quando atravessado pela diferença sexual e pela complementaridade dos sexos. É necessário produzir, culturalmente, corpos masculinos e femininos. A própria masculinidade e feminidade são construídas. Logo, a heterossexualidade é a base, é a condição para dar vida aos gêneros. Sob esta perspectiva a patologização da homossexualidade, assim como qualquer outra forma de vida que não se enquadre na experiência heterossexual, ainda continua a existir, mas sob o viés do transtorno de gênero, daquele que tem desarranjos na coerência do gênero com o corpo, com o seu sexo biológico [sic] incrustrado ao corpo, um corpo sexuado.

Trata-se do que Bento (2008, p. 174) intitula de Heteroterrorismo, um fenômeno diretamente correlacionado aos dispositivos de poder retratados ao longo da presente tese, que projeta a heterossexualidade como norma, heteronormatividade, exercendo impactos de violência em sociedade. Reserva-se aos divergentes, aos incoerentes, espaços específicos, que são os dos congressos do saber médico e das cadeiras de sala de espera das clínicas. Espaço de encontrar sujeitos que foram produzidos enquanto patológicos, taxados, limitados e atravessados por uma lógica de poder empreendedora, que ainda se projeta como salvadora, como a que cura os mesmos de uma enfermidade.

Dois pontos devem ser destacados nesta seara de análise. Primeiro, a criação da experiência transexual. O transexual existe a partir de normas de estabilidade, criadas entre o corpo, sexo e o gênero. Surge como experiência divergente ao que se criou e se reproduziu em níveis de naturalidade em sociedade. Segundo, criada a experiência transexual a mesma foi patologizada. Ainda que não mais inserida como patologia nos cadastros internacionais de doenças, já analisados no primeiro capítulo, as mesmas ainda estão mencionadas em tais cadastros e, sobretudo, destaca-se, no discurso oficial do Estado como uma questão de saúde. Leia-se, Ministério da Saúde, Conselho Federal de Medicina e Poder Judiciário.

Ao nascer, apresenta-se uma única possibilidade de construção de significados para a sexualidade e gênero, intrinsecamente correlacionado com a produção da heterossexualidade. A estabilidade produzida sobre o corpo, sexo e gênero, está vinculada ao próprio controle e produção da heterossexualidade. Como se está tratando de experiências privadas, relações privadas, a forma de reproduzir a heterossexualidade é por meio da marcação do gênero como vetor da mesma.

Ser mulher, ser homem, é ser essencialmente reproduzido em sociedade a partir de um viés heterossexual, colocando-se em vigilância os pais sobre os seus filhos, quando os mesmos aderem a apetrechos culturais que desviam do estereótipo de um gênero que lhe é pré-fixado, antes mesmo de nascer.

É neste contexto que a transexualidade representa um perigo. Uma ameaça ao dispositivo de sexualidade, que está baseado em preceitos heteronormativos. A experiência trans desestabiliza a coerência projetada, criada e reproduzida sobre os corpos; ameaçando os próprios efeitos do referido dispositivo. Ser coerente, à luz da estrutura de poder empreendedora que está sendo considerada, é de fundamental relevância para a manutenção das bases heterossexuais em sociedade.

Projeta-se um conceito natural de mulher, um conceito natural de homem, de gênero. A heterossexualidade como um elemento deste conceito, que é marcado pela perspectiva de que você nasce com um sexo, um corpo sexuado, este sexo te faz ser mulher ou homem; que naturalmente sente desejo pelo sexo oposto [sic]. A partir desta concepção essencializa-se a linha corpo – sexo – gênero - desejo sexual, em uma perspectiva estável, coerente e natural.

[...] For, if to identify as a woman is not necessarily to desire a man, and if to desire a woman does not necessarily signal the constituting presence of a masculine identification, whatever that is, then the heterosexual matrix proves to be an imaginary logic that insistently issues forth its own unmanagcability. The heterosexual logic that

requires that identification and desire be mutually exclusive is one of the most reductive of heterosexism's psychological instruments: if one identifies as a given gender, one must desire a different gender. 8 (Butler, 1993, p. 239, grifo da autora).

Os padrões sócioculturalmente construídos e reproduzidos sobre a masculinidade e feminilidade influenciam na definição do que vem a ser um transexual de verdade. A experiência trans é influenciada pelas construções de gênero em sociedade, pelos estereótipos de gênero, que são reproduzidos e instrumentalizados por médicos e profissionais da saúde em contato com um sujeito trans.

Sócioculturalmente, fruto de dispositivos de poder, afirma-se que o normal é a heterossexualidade, o que influencia no conceito disseminado sobre o que é ser homem ou ser mulher, na modernidade. Esta, inclusive, é repassada como um dado natural, determinando a construção de coerência dos corpos sexuados. As mudanças efetuadas nos corpos, baseadas no discurso oficial de readequação do mesmo a identidade de gênero, seriam para possibilitar o exercício da heterossexualidade (BENTO, 2006). Nitidamente, sustenta-se que há uma relação entre as intervenções realizadas sobre o corpo e a heteronormatividade, heteroterrorismo.

A experiência transexual destaca os gestos que dão visibilidade e estabilidade aos gêneros e estabelece negociações interpretadas, na prática, sobre o masculino e feminino. Ao mesmo tempo quebra a causalidade entre sexo/gênero/desejo e

desnuda os limites de um sistema binário assentado no corpo-sexuado (o corpo- homem e o corpo-mulher). Diante da experiência transexual, o observador põe em

ação os valores que estruturam os gêneros na sociedade. Um de batom e silicone? Uma mulher que solicita uma cirurgia para tirar os seios e o útero? Mulheres biológicas que tomam hormônios para fazer a barba crescer e engrossar voz? Ela é ele? Ele é ela? (Bento, 2008, p. 22, grifo nosso).

Há um discurso oficial que coloca a transexualidade em um contexto de doença ou, no mínimo, de saúde pública. Ratificando-se, desta forma, uma lógica empreendedora de poder, que se introjeta nas mentes, de uma forma doce, convencendo de que as suas armas são direitos garantidos e proporcionados aos indivíduos. Neste sentido, é a patologização das identidades ou a sua inclusão em assuntos de saúde pública, que confere poder aos que estão no centro para

8 “Porque, se se identificar como mulher não implica necessariamente desejar a um homem e se desejar a uma mulher não indica necessariamente a presença constitutiva de uma identificação masculina, seja qual for esta, logo a matriz heterossexual se manifesta como uma lógica imaginária que demonstra insistentemente que não pode ser manejada. A lógica heterossexual que exige que a identificação e o desejo sejam mutuamente excludentes é um dos instrumentos psicológicos mais redutores do heterossexismo: se se identifica como um determinado gênero, deve querer alguém de um gênero diferente.” (Butler, 1993, p. 239, grifo da autora, tradução nossa).

realizar, pessoalmente, com as suas próprias mãos, uma espécie de assepsia de corpos incoerentes em sociedade.

Sustenta-se uma assepsia do corpo, que pode ser realizada de inúmeras formas. Fala-se de mudança do corpo com fins de torná-lo coerente. Hormonioterapia. Cirurgia de redesignação sexual. Estes repassados à sociedade em nível opcional. Mas será que existe opção? Para muitos, conforme será visto no capítulo ulterior, a cirurgia de redesignação sexual é o portal para que haja um reconhecimento social, buscando-se humanidade por meio do seu corpo. A mudança dos corpos como uma forma de se alcançar inteligibilidade, em uma sociedade que corpos incoerentes são vistos como impossíveis de existirem, diante das normas de gênero. Fala-se de sujeitos marginalizados em sociedade por serem incoerentes, e os que buscam deixar, pelo menos em uma parcela, essa margem se tornando mais coerentes, ainda que não consigam concluir essa trajetória, porque o sistema de poder é cruel. Ainda que se sustente a necessidade de mudança, de coerência, o sujeito transexual não é aceito em sociedade como um sujeito cis. Ainda que com um corpo coerente, a pessoa ainda será classificada como diferente, marcada como mulher trans ou homem trans.

Escolhas? Será que há escolha a ser feita entre ser marginalizado e continuar sendo marginalizado? A inteligibilidade do gênero está na coerência entre o corpo e o sexo. De qualquer modo, há um espaço reservado ao sujeito transexual, a margem. A margem em relação ao centro. A margem da calçada da rua, onde o corpo trans está ensanguentado, morto ou exposto à morte, diariamente, em sociedade.

Corpos materializadores das normas de gênero, de sexo, como corpos que pesam, que importam em detrimento de seres abjetos. O corpo trans como abjeto, como um habitante de uma zona socialmente inóspita e inabitável, fruto de um repúdio. Eis um espaço social reservado ao povoamento por aqueles que não se qualificam como sujeitos. Destaca-se a necessidade de se sustentar a existência do inabitável. Este possui um significado em existir, em linhas de estabelecer os limites, a própria conceituação do sujeito. Só é possível definir o sujeito a partir da marcação daquele que não é sujeito (BUTLER, 2003).

Eis um contexto de violência, de ódio, de exclusão, de higienização e limitação de formas de vida. Trata-se de um modelo social pautado na genitalização das identidades. A genitália como o fundamento, como a base, do gênero de cada indivíduo. A genitália como o núcleo sob o qual o dispositivo de transexualidade incide, depositando no mesmo uma chave para a definição de gênero de cada indivíduo, naturalmente. Abre-se uma possibilidade, excepcionalmente, para que o indivíduo possa ser identificado em um gênero a partir de um

corpo não natural [sic], mas a esta se atribuirá um sufixo, trans. Até se pode atribuir a categoria mulher, homem, mas o sufixo trans o acompanha.

Uma cultura reproduzida socialmente, sedutora e dominadora, que prega uma estética corporal, marcada pela genitália, como elemento vinculante do gênero. Fruto de dispositivos de poder, as consciências são invadidas pela naturalização da ideia de que para você ser, seja homem ou mulher, é necessário ter o corpo correspondente. Não se questiona, reproduz-se. Nas palavras de Bento (2008, p. 90) “Para a concepção que genitaliza as sexualidades, um homem gay sem pênis seria a própria impossibilidade de existência.”. Perspectiva sintomática de uma estrutura de poder que se configura sob a luz da coerência sexual.

[...] O original, segundo as normas de gênero, está referenciado no corpo (corpo- vagina-mulher, corpo-pênis-homem). Aí residiria a verdade dos gêneros, e aqueles que constroem suas performances fora do referido biológico são interpretados como uma cópia mentirosa do homem/ da mulher de verdade. Nesse processo, os gays, as lésbicas, os/as transexuais, as travestis, a mãe ‘desnaturada’ são excluídos daquilo que se considera humanamente normal. Para uma concepção essencializadora, essas práticas performativas não passam de cópias burlescas das mulheres e dos homens de verdade. [...] (Bento, 2006, p. 103).

A genitalização do sujeito como um retrato de um sistema de poder embasada na diferença sexual, no modelo dimórfico construído e reproduzido na modernidade. Uma relação de poder que nos seduz, fazendo-nos acreditar que é necessário haver uma concordância para fins de definição do gênero de um indivíduo.

A construção do corpo sexuado é um produto de uma tecnologia biopolítica de poder, um conjunto de estruturas regulatórias que controlam a relação entre os corpos, as subjetividades dos indivíduos e os desejos. Trata-se de um mecanismo de poder com um alto potencial empreendedor e reprodutor, seduzindo e vendando os próprios dominados (BENTO, 2006).

Aqueles que são atingidos diretamente pelos dispositivos aqui denunciados muito possuem a compartilhar, em termos de riqueza de conteúdo, sobre as relações de poder que atravessam os seus caminhos. No próximo capítulo, problematizar-se-á a existência do elemento escolha na mudança do corpo, correlacionando esta questão a uma análise de conteúdo de textos escritos por pessoas trans, em que compartilham suas experiências, vivências em sociedade.

4 VIOLÊNCIA SIMBÓLICA E A ESCOLHA DE MUDAR O CORPO: ANÁLISE DA

TEORIA DA DOMINAÇÃO SIMBÓLICA E DE CONTEÚDO DE ESCREVIVÊNCIAS DE PESSOAS TRANS

Um possível questionamento sobre o que está sendo apresentado na presente tese, sobre o seu objeto e seu embasamento teórico, seria sobre a realização das modificações corporais