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Foto 4 Assinaturas dos participantes de momento formativo realizado no canteiro

3.3 GÊNEROS E AGÊNCIA

Conforme vem sendo discutido ao longo desta tese, as práticas de Letramento são situações em que a leitura e a escrita estão investidas de um papel relevante. Nesses casos, pelo menos um “artefato” escrito é fundamental para a interação entre as pessoas, a partir de uma necessidade comunicativa, uma vez que a escrita integra a própria natureza da interlocução e do processo de produção de sentido.

Essas práticas implicam tanto o que os indivíduos fazem quando leem e produzem textos, quanto as concepções que lhes são subjacentes e os modelos sociocognitivos que estão implícitos nessas representações, conferindo-lhes significado (MATENCIO, 2009). Assim, não se pode pensar sobre as atividades que envolvem a leitura e a escrita sem, antes, evidenciar os gêneros que organizam essas práticas e mobilizam recursos capazes de levar as

pessoas a agirem no mundo. Como prefere Bazerman (2009), por sua capacidade de agência, os gêneros são fatos sociais que aproximam pessoas, em virtude de suas necessidades e interesses de agir no mundo.

Ao discorrer sobre a concepção de gêneros, precisamos lembrar que essa nomenclatura surgiu com Aristóteles, mais especificamente, em sua Poética, cuja obra apresenta vários gêneros ligados à literatura. Ao longo do texto, Aristóteles discute a constituição formal dos gêneros, ou seja, uma abordagem voltada à forma, aos materiais (linguísticos), ao estilo (no sentido clássico), à gramática e à função de texto modelar (ROJO, 2008).

No século passado, essa discussão ganhou uma relevante contribuição a partir dos estudos do Círculo de Bakhtin, que passou a utilizar a palavra gênero como principal objeto de referência nos estudos da linguagem e da literatura. No âmbito dos estudos da linguagem, a utilização do termo gênero textual/discursivo9 faz parte de uma compreensão diferente e ampliada desse objeto do conhecimento, que Bakhtin (2010) chamava de “unidades da língua”, e se volta para uma perspectiva discursivo-social do qual o enunciado se reveste como unidade da comunicação. Nesse sentido, o estudioso em questão concebe os gêneros discursivos como tipos relativamente estáveis de enunciados, produzidos nas mais diversas esferas da atuação humana (BAKTHIN, 2003).

Seguindo essa perspectiva, os gêneros precisam ser compreendidos e analisados considerando-se as condições de produção e de uso, indispensáveis a uma análise dos gêneros com foco no aspecto discursivo, pois “[...] cada época e cada grupo social têm seu repertório de formas de discurso na comunicação sócio-ideológica” (BAKHTIN, 2004, p. 43). Assumir o gênero sob essa perspectiva é entender a sua plasticidade no sentido em que ele se reformula, considerando elementos como o contexto social, os interlocutores, a necessidade comunicativa e o tempo-espaço no qual é produzido. Assim,

O emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo da atividade humana. Esses enunciados refletem as condições específicas e as finalidades de cada referido campo não só por seu conteúdo (temático) e pelo estilo da linguagem, ou seja, pela seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua mas, acima de tudo, por sua construção

9 De acordo com Rojo (2005), embora as teorias de gênero sejam descendentes dos estudos

bakhtinianos, a teoria dos gêneros discursivos se volta para os aspectos sociohistóricos e discursivos que emergem do texto, enquanto a de gêneros textuais se ocupa da sua materialidade.

composicional [...]. Evidentemente, cada enunciado particular é individual, mas cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso (BAKHTIN, 2003, p. 261-262).

Por essa assertiva, é possível observar que são os enunciados que emergem dos textos utilizados por grupos sociais distintos para atender as diferentes demandas, que determinam os gêneros a ser utilizados e o modo como são utilizados, a fim de que a linguagem ocorra de forma efetiva e cumpra o seu papel como mediadora das ações humanas, portanto, como agência. Assim, os enunciados que se arregimentam por meio dos gêneros são os responsáveis por organizar as atividades, propor orientações com vistas à sua realização, aferir o que foi feito e alertar para o que precisa ser produzido, modificando posturas e, consequentemente, transformando contextos sociais. Sobre essa discussão, Bazerman (2009, p. 84) assegura:

Ao reconhecer uma espécie de texto, reconhecemos muitas coisas sobre a situação institucional e social, as atividades propostas, os papéis disponíveis, ao escritor e ao leitor, os motivos, as ideias, a ideologia e o conteúdo esperado do documento e o lugar onde tudo isso pode caber na nossa vida.

Logo, entendemos que os gêneros são parte de processos de atividades socialmente organizadas e que estão na base da realização das mais diversas demandas sociais, inclusive as que são próprias do universo do trabalho ou da formação para o trabalho. Sob esse enfoque, Bazerman (2006, p. 23) define os gêneros como

[…] formas de vida, modos de ser. São frames para a ação social. São ambientes para a aprendizagem. São os lugares onde o sentido é construído. Os gêneros moldam os pensamentos que formamos e as comunicações através das quais interagimos. Gêneros são os lugares familiares para onde nos dirigimos para criar ações comunicativas inteligíveis uns com os outros e são os modelos que utilizamos para explorar o não-familiar.

Os enunciados que emergem dos textos assumem um caráter agentivo na vida das pessoas e no que elas realizam conformadas pela leitura e pela escrita, haja vista que são os discursos que emergem dos textos utilizados que permitem a interação, a ação individual e coletiva dos variados grupos que agem socialmente para a manutenção ou para a mudança de situações que lhes são impostas. Sobre esse aspecto, Bazerman (2009, p. 31) reforça a necessidade dessa compreensão ao asseverar que

a definição de gêneros como apenas um conjunto de traços textuais ignora o papel dos indivíduos no uso e na construção de sentidos. Ignora as diferenças de percepção e compreensão, o uso criativo da comunicação para satisfazer novas necessidades percebidas em novas circunstâncias e a mudança no modo de compreender o gênero com o decorrer do tempo. Podemos chegar a uma compreensão mais profunda de gêneros se os compreendermos como fenômenos de reconhecimento psicossocial que são parte de processos de atividades socialmente organizadas. [...] Gêneros são o que nós acreditamos que eles sejam. Isto é, são fatos sociais sobre os tipos de atos de fala que as pessoas podem realizar e sobre os modos como elas os realizam. Gêneros emergem nos processos sociais em que pessoas tentam compreender umas às outras suficientemente bem para coordenar atividades e compartilhar significados com vistas a seus propósitos práticos.

A partir dessas definições, fica evidente que os gêneros vão muito além da forma, da nomenclatura e do espaço em que circulam. Por meio de seus enunciados, os gêneros estão impregnados dos sentidos que uma pessoa tenta compartilhar com outras do seu grupo social. Nesse sentido, são entidades que disseminam ideias, conhecimentos e orientações, envidados por um movimento dialógico e permanente de quem escreve e de quem lê o escrito.

Bazerman (2011, p.11) salienta que a escrita é “imbuída de agência”, pois, para realizá-la, faz-se necessário o trabalho, o esforço de quem a produz, como registrar a memória, fatos, requerer, reclamar, ratificar, dentre outras possibilidades de uso. Daí a marca agentiva da escrita como trabalho que se realiza na sua efetivação.

Essa capacidade agentiva dos textos se mostra à medida que “a produção e a recepção de textos podem intervir na realidade social, visto que podem alterar a compreensão das relações sociais” (SANTOS, 2012, p. 286). Ao ler e ao escrever de forma competente, as pessoas têm a oportunidade de ampliar saberes, mudar sua opinião em torno de conhecimentos cristalizados, alterar atitudes em relação ao que fazem e como o fazem, orientar os seus pares e assumir novas posturas diante dos enunciados que emergem dos textos com quais interagem.

De acordo com o que se postula acerca dos letramentos na condição de práticas sociais em que a escrita está presente e tem papel primordial, é possível asseverar que essas práticas se efetivam por meio de artefatos materiais (HAMILTON, 2000), mais especificamente por meio dos gêneros (OLIVEIRA, 2010). Por esse prisma, depreende-se que as inúmeras atividades realizadas pelos sujeitos na sociedade são mediadas textualmente, podendo esses textos serem orais ou escritos, práticas que se estendem, inclusive, ao universo do trabalho.

Em se tratando da presença do gênero de texto em todas as esferas da atividade humana, Marcuschi (2008, p. 154) argumenta que é impossível não nos comunicarmos

verbalmente por algum gênero, assim como é impossível não nos comunicarmos por algum texto. Desta feita, fica evidenciado que o texto está presente em todas as atividades comunicativas, sejam elas orais, sejam escritas, e que se organizam por meio de gêneros que melhor atendam às necessidades comunicativas de cada contexto de uso e de produção. Ainda conforme o autor, os textos podem ser compreendidos como “[...] artefatos ou fenômenos que exorbitam suas estruturas e só têm efeito se se situarem em algum contexto comunicativo” (MARCUSCHI, 2000, p. 78).

No âmbito do exercício profissional, são produzidas e respondidas demandas muito particulares para atender as necessidades que lhe são próprias e, para tanto, são utilizados ou produzidos gêneros de texto específicos de cada segmento de atividade. Seguindo esse viés, Bazerman (2005, p. 31) assevera que os gêneros “são parte do modo como os seres humanos dão forma às atividades sociais”. Em outras palavras, é na execução de atividades mediadas por gêneros que as exigências relativas aos fazeres profissionais são reveladas e, também, é na realização dessas atividades que são impressas as marcas de quem os produz.

Os gêneros produzidos ou utilizados pelos Técnicos podem ser concebidos como catalisadores na medida em que favorecem o desencadeamento e a potencialização de ações e atitudes consideradas mais produtivas (SIGNORINI, 2006). Isso implica dizer que os textos utilizados no decurso de suas atividades laborais dos Técnicos encontram-se vinculados a esse conceito, porque tais produções escritas assumem função catalisadora “na explicitação, organização e ressignificação da experiência passada à luz de indagações e inquietações do presente” (SIGNORINI, 2006, p. 68-69).

Assim, a escrita está diretamente ligada à situação comunicativa na qual ocorre e imprime as marcas de quem a produz, visto tratar-se de uma produção individual assinalada por fatores como a cultura, a ideologia e os valores de quem a produz e de quem as utiliza, além do modo como realiza essa demanda.

Destaque-se, ainda, o fato de que os textos utilizados nesse espaço laboral fazem parte de um conjunto de gêneros, uma vez que eles concorrem para que as pessoas trabalhem de modo organizado, seguindo uma hierarquia desencadeada pela via dos gêneros, cujas peças são utilizadas na realização das atividades peculiares a um determinado grupo. Considerando as relações padronizadas que se estabelecem na produção, circulação e uso dos textos, estes passam a fazer parte de um sistema de gêneros (BAZERMAN, 2004).