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Gêneros discursivos: modos de organização da linguagem em uso

1 APRESENTANDO E ARTICULANDO OS CONCEITOS:

1.3 Gêneros discursivos: modos de organização da linguagem em uso

Para uma melhor compreensão das relações entre escrita e estruturas sociais, torna-se necessário lançar mão da teoria da enunciação, elaborada por volta de 1920, e tem como principal representante Mikhail Bakhtin. Essa teoria buscou inspiração no paradigma sócio- histórico e dialético da linguagem, baseando-se no pressuposto de que a língua se realiza, ao mesmo tempo, em um contexto social imediato (microinteração) e mais amplo (estruturas sociais). Para Bakthin/Volochinov (1988), a língua se realiza por meio de enunciados concretos (orais e escritos), cuja natureza essencial é social. Torna-se relevante discutir os conceitos de enunciação e enunciado, devido a sua estreita vinculação com os conceitos de gêneros discursivos, evento, texto, interação, tema e significação, elementos constitutivos do processo enunciativo-discursivo.

Nos estudos bakthinianos, o enunciado é visto para além dos fatores estritamente linguísticos e, segundo Brait (2007, p.67), “solicita um olhar para outros elementos que o constituem”. A autora, a partir de um estudo de várias obras de Bakthin, afirma que o termo enunciado aparece substituído ou fundido na ideia de palavra, de texto, de discurso e que não traz nenhum problema à sua compreensão. “O enunciado concreto (e não a abstração linguística) nasce, vive e morre no processo da interação social entre os participantes da enunciação. Sua forma e significado são determinados basicamente pela forma e caráter desta interação” (VOLOSHINOV, 1997, apud BRAIT, 2007, p.68). Os elementos que diferem um enunciado concreto de uma abstração linguística estão relacionados ao horizonte espacial comum dos interlocutores (esfera de circulação do discurso), ao conhecimento e à compreensão comum da situação por parte desses interlocutores e à avaliação comum dessa situação.

Para Bakthin, o conceito de evento está estritamente ligado ao conceito de ato, quando define um evento “como a presentificação, ou apresentação, dos seres à consciência viva, isto é, situada no concreto” (BRAIT, 2007, p. 26). Um evento, então, inclui vários atos da atividade do homem no contexto de sua vida cotidiana (vida concreta) e ocorre num dado lugar e num dado espaço. São atos para Bakthin tanto as ações físicas como as de ordem mental, emotiva, estéticas (produção e recepção), todas elas tomadas em termos concretos e não somente cognitivos ou psicológicos.

Considerando o referencial bakthiniano e para efeito de análise dos eventos de letramento que serão apresentados nesta pesquisa, entendem-se os atos como elementos que configuram os eventos, e os gêneros textuais como modos de organização da linguagem em uso. O estudo dos gêneros discursivos considera, sobretudo, a natureza do enunciado em sua diversidade e nas diferentes esferas da atividade, como enfatiza Bakhtin (2003, p.265), “a língua passa a integrar a vida através de enunciados concretos (que se realizam); é igualmente através de enunciados concretos que a vida entra na língua”.

Enfim, é reconhecido que a linguagem em uso não pode ser isolada do evento em si. Bakhtin (apud BRANDÃO, 1991, p.9), em sua teoria do enunciado, atribui um lugar privilegiado à enunciação ao defender que “a matéria linguística é apenas uma parte do enunciado; existe também uma outra parte, não-verbal, que corresponde ao contexto da enunciação”. Bakthin (1998) entende a enunciação como a realidade concreta da língua e como estrutura sócio- ideológica. Assim, a enunciação é o produto da interação entre dois indivíduos socialmente organizados. Bakhtin traz a ideia da enunciação dentro da enunciação e através do conceito de dialogismo mostra que a relação com o Outro (exterior) é o fundamento de toda discursividade. Mostra, ainda, que o locutor não é “um adão”, que apresenta a ideia pela primeira vez, mas que seu enunciado é um elo em uma rede de formulações. A teoria da enunciação de Bakthin postula que toda linguagem é por natureza dialógica e polifônica. Compreender as vozes que compõem cada texto, definir as condições de produção são elementos cruciais para se entender a “obra” e o sujeito por trás da “obra”.

intertextualidade20 como foco principal na análise do discurso e procura torná-lo mais concreto. Para isso, potencializa analiticamente o conceito, por meio da análise de gêneros textuais orais e escritos, como, por exemplo, a reportagem de jornal, a entrevista médica, a narrativa conversacional, o texto informativo (cuidados pré-natais). O autor apresenta o seguinte argumento: os enunciados – textos – são inerentemente intertextuais, constituídos por elementos de outros textos, porém, sem descuidar das questões ideológicas. Para Fairclough (2001):

as ideologias são significações/construções da realidade (o mundo físico, as relações sociais, as identidades sociais) que são construídas em várias dimensões das formas/sentidos das práticas discursivas e que contribuem para a produção, a reprodução ou a transformação das relações de dominação. (p.117)

Fairclough (2001, p.161) utiliza o termo gênero para designar um conjunto de convenções relativamente estável, socialmente aprovado, como a conversa informal, momento da compra de produtos em uma loja, uma entrevista de emprego, um documentário de televisão, um poema ou um artigo científico. Um gênero implica não somente um tipo particular de texto, mas também processos particulares de produção, distribuição e consumo de textos. Por exemplo, as notícias de jornal e os poemas não são apenas gêneros de textos tipicamente bem diferentes, mas eles também são produzidos de formas bem diferentes (o primeiro depende de uma situação concreta e o segundo é produto da subjetividade). Acrescenta que há estilos que podem ser formal, informal, oficial, íntimo, casual. Os estilos podem variar de acordo com o modo, isto é, se os textos são escritos ou falados ou uma combinação dos dois (por exemplo, escrito-para-ser-falado; escrito-como-se-falado, falado-como-se-escrito). Os estilos também variam de acordo com a estrutura e podem ser classificados como: argumentativo, narrativo, descritivo e expositivo.

Fairclough (2001) adota a posição de que a intertextualidade e as relações intertextuais, constantemente mutáveis no discurso, são centrais para a compreensão dos processos de constituição do sujeito. Assim, a teoria da enunciação articula o linguístico com o social, permite compreender como o sujeito categoriza, organiza seu mundo e dá sentido à sua experiência escolar, especialmente à sua experiência com a escrita. Desse modo, a perspectiva

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O termo intertextualidade não aparece nos trabalhos de Bakhtin, foi desenvolvido por Julia Kristeva no final dos anos 1960, a partir de sua interpretação dos trabalhos de Bakhtin. “Diz a autora que todo texto é um mosaico de citações, todo texto é uma retomada de outros textos. Tal apropriação pode-se dar desde a simples vinculação a um gênero, até a retomada explícita de um determinado texto” (PAULINO, WALTY, CURY, 1995, p. 21-22)

discursiva permite uma análise para além das marcas linguísticas, extrapola os gêneros, revelando que os textos são produzidos por sujeitos situados historicamente e neste ato de fala em que o Outro (exterior/organização social) está presente é que se configura a enunciação.

Para finalizar o capítulo, retomamos alguns aspectos que podem ser considerados como eixos norteadores desta pesquisa, fornecendo uma abordagem crítica adequada à análise das práticas escolares de letramento, destacando especificamente os textos produzidos pelos adolescentes em sala de aula e de seu processo de apropriação.

Diante da natureza multifacetada do conceito de letramento, ressaltamos que a pesquisa se inscreve nos estudos sobre letramento escolar, e procuramos contrastar as versões forte (modelo ideológico) e fraca (modelo autônomo)21. Também procuramos estabelecer relações entre as dimensões individuais e sociais do letramento.

Segundo Ribeiro (2003, p. 13), o termo alfabetismo serve para designar “as habilidades de leitura e escrita envolvidas nas diversas práticas sociais de letramento, ou seja, nos usos mais comuns da escrita no ambiente doméstico, no trabalho e em outros contextos cotidianos.” O conceito destaca a natureza individual, relacionado às capacidades cognitivas e linguísticas, possíveis de serem aferidas a partir da aplicação de um teste e definidas em níveis de alfabetismo.

Por outro lado, o conceito de letramento(s) envolve múltiplas práticas: de letramento dominante ou global, de letramento local e de resistência. Essas práticas “são realizadas com finalidades para atingir os seus fins específicos de vida, e não um conjunto de competências que estão armazenadas na cabeça das pessoas” (DIONÍSIO, 2007, p. 210). Além disso, acrescenta-se o conceito de letramentos multimodais ou multissemióticos, relacionados ao “campo da imagem, da música, das outras semioses que não somente a escrita”. (ROJO, 2009, p.107)

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A versão fraca do letramento diz respeito à adequação funcional do sujeito em um contexto social. Essa vertente pressupõe que o letramento é “um instrumento de que as pessoas simplesmente lançam mão para responder às exigências das práticas sociais” (SOARES, 1998, p. 75), cujas consequências são positivas, quer do ponto de vista cognitivo, econômico e social. Já a versão forte do letramento coloca-se contra a pressuposição de que o letramento é um instrumento neutro, mas “um conjunto de práticas socialmente construídas envolvendo a leitura e a escrita, geradas por processos sociais mais amplos, e responsáveis por reforçar ou questionar valores, tradições e formas de distribuição de poder presentes nos contextos sociais” (SOARES, 1998, p. 74-75).

Com relação à análise dos textos, adotaram-se os pressupostos apontados por Bakhtin e Fairclough, quando se considera “a abordagem tridimensional para a análise do discurso: o texto, a prática discursiva e a prática social, a fim de enfatizar que a análise textual não é alguma coisa que deva ser feita isoladamente” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 245).