• Nenhum resultado encontrado

Práticas de letramento adquiridas: o que mobiliza o adolescente

3 A PRODUÇÃO DE GÊNEROS TEXTUAIS NA ESCOLA:

4.2 Práticas de letramento adquiridas: o que mobiliza o adolescente

Como já foi destacado em outro momento, reconhecemos a escola como uma agência que promove a apropriação dos gêneros discursivos secundários, considerando suas diferentes esferas de produção: o da imprensa, o da propaganda e marketing, o literário, o científico, o político, o jurídico, etc. Mas Foucault (1971) nos alerta, lembrando que:

A educação pode muito bem ser, de direito, o instrumento graças ao qual todo o indivíduo, numa sociedade como a nossa, pode ter acesso a qualquer tipo de discurso; sabemos, no entanto, que, na sua distribuição, naquilo que permite e naquilo que impede, ela segue as linhas que são marcadas pelas distâncias, pelas

oposições e pelas lutas sociais. Todo o sistema de educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que estes trazem consigo (p. 15).

A forma como o sistema de ensino controla o processo de apropriação dos discursos sociais pode ser compreendida a partir da discussão apresentada por Soares (2003) por meio das práticas de letramento a ensinar, práticas de letramento ensinadas e práticas de letramento adquiridas:

As práticas de letramento a ensinar são aquelas que, entre as numerosas que ocorrem nos eventos sociais de letramento, a escola seleciona para torná-las objetos de ensino, incorporadas aos currículos, aos programas, aos projetos pedagógicos, concretizadas em manuais didáticos; práticas de letramento ensinadas são aquelas que ocorrem na instância real da sala de aula, pela tradução dos dispositivos curriculares e programáticos e das propostas dos manuais didáticos em ações docentes, desenvolvidas em eventos de letramento que, por mais que tentem reproduzir os eventos sociais reais, são sempre artificiais e didaticamente padronizadas; práticas de letramento adquiridas são aquelas, de que, entre as ensinadas, os alunos efetivamente se apropriaram e levam consigo para a vida fora da escola (p.107-108). (grifos do autor)

Esse processo de apropriação está condicionado às dimensões social, cultural e cognitiva dos aprendizes. Considerando que as práticas de letramento são mediadas pelos gêneros textuais, concordamos com Bazerman (2006), quando ele afirma que

os gêneros emergem nos processos sociais em que pessoas tentam compreender umas às outras suficientemente bem para coordenar atividades e compartilhar significados com vistas a seus propósitos práticos ( p. 31).

Então, é com a intenção de compartilhar significados que os sujeitos se apropriam dos gêneros e procuram compreender seus princípios estruturadores, isto é, do como e do porquê, ou seja, os gêneros ensinados pela professora não se inscrevem de maneira direta e instantânea no capital cultural71 dos alunos. Na mesma direção, Vygotsky afirma que os processos de funcionamento mental do homem são fornecidos pela cultura, através da mediação simbólica (REGO, 2004, p. 55).

Schneuwly (2004) estabelece uma relação entre os gêneros primários e secundários (perspectiva bakhtiniana) e entre os conceitos cotidianos ou espontâneos e os conceitos científicos (perspectiva vygostkiana). Tal como os conceitos cotidianos, os gêneros primários nascem na troca verbal espontânea e relacionam-se à experiência pessoal dos sujeitos.

71

Vygostky descreve essa relação como sendo inconsciente e involuntária. Com relação aos gêneros secundários, assim como os conceitos científicos, estes não estão diretamente ligados à situação de comunicação imediata, por isso, para serem apropriados, precisam ser ensinados de forma sistemática.

Isso significa que sua apropriação não pode se fazer diretamente, partindo de situações de comunicação; o aprendiz é confrontado com gêneros numa situação que não está organicamente ligada ao gênero, assim como o gênero, ele próprio, não está mais organicamente ligado a um contexto preciso imediato. Além disso, essa situação não resultou direta e necessariamente da esfera de motivações já dadas do aprendiz, da esfera de suas experiências pessoais, mas de um mundo outro que tem motivações mais complexas, por construir, que não são mais necessariamente pessoais (SCHNEUWLY, 2004, p. 33).

Considerando que a professora trabalhava com gêneros primários e secundário, intenta-se analisar como esses gêneros foram apropriados pelos adolescentes. No caso do texto intitulado criação de um personagem ou criação de um perfil, na acepção de Bronckart (2007, p. 245), a discussão que será realizada diz respeito às diferenças entre gêneros e tipos textuais.

Com a intenção de analisar como os gêneros textuais ensinados pela professora foram apropriados pelos adolescentes, adotou-se o procedimento do grupo focal, que difere da entrevista coletiva, uma vez que gera atitudes responsivas: concordar, discordar, complementar ideias, assumir posicionamentos. Desse modo, observa-se o desenvolvimento das discussões em suas diferentes manifestações: silêncios, agressões, tensões, constrangimentos e impasses.

Para a realização da discussão, a pesquisadora utilizou quatro textos, produzidos pelos adolescentes no 1º semestre de 2007. São eles:

Anúncio humorístico ou piada

VENDO UM FUSCA SEM MOTOR, SEM RODAS E COM A LATARIA ENFERRUJADA. OS INTERESSADOS DEVEM TRATAR COM ZECA. NÚMERO DO FONE: 7070-7070 SE NÃO DER 70 DE NOVO.

Anúncio

VENDO PULSEIRAS E BIJUTERIAS TRATAR COM A GILCA. BECO DONA ROSA Nº 15 TEL 3371-4329/ 9955-4355

Criação de um personagem

BAIANA

BAIANA É UMA MENINA NEGRA QUE NÃO CONHECE SEUS VERDADEIROS PAIS. MORA COM OS PAIS ADOTIVOS E É MUITO RICA.

GOSTA DE AJUDAR OS POBRES.

ELA É ANGOLANA E GOSTA DAS DANÇAS DE SUA ORIGEM.

SUA COMIDA PREFERIDA É FRANGO ASSADO, VATAPÁ E ACARAJÉ.

Bilhete

DIOGO

ACHO VOCÊ UMA PESSOA MUITO ENGRAÇADA, GOSTO DE FICAR PERTO DE VOCÊ. ASS. ALEXANDRE

Os textos foram digitados em uma folha (formato A4) e disponibilizados para os cinco adolescentes integrantes do grupo focal, caracterizado como grupo C (ver capítulo 2, p. 64). A escolha do grupo C se deu em função de esse ser o único grupo que participou dos quatro encontros e que manteve a mesma composição.

Após a entrega dos textos, solicitou-se a leitura deles, seguido da discussão do gênero e sua função. A disposição física dos adolescentes em grupo e a forma como as questões foram encaminhadas possibilitaram a discussão e não a reprodução de uma atividade típica de sala de aula (alunos realizando individualmente uma atividade, seguindo instruções da professora). Os adolescentes eram instados a opinar, argumentar e a se posicionar diante das questões.

4.2.1 Os adolescentes que participaram do grupo focal

Eric tinha 16 anos e morava em um bairro de classe média da região oeste de Belo Horizonte (bairro Carlos Prates) com a avó, o tio e um dos seus três irmãos. Proveniente de uma cidade do norte de Minas Gerais, estava em Belo Horizonte há três anos e frequentava o terceiro ano do terceiro ciclo. Quanto a sua trajetória escolar, entrou com atraso na 1ª série e foi reprovado na 5ª série. O adolescente justificou sua reprovação considerando seu desinteresse pelo estudo e a falta de atenção às aulas. A paixão por carros é que gerou seu interesse pela leitura e sempre carregava consigo revistas automobilísticas. Eric demonstrava responsabilidade em suas atividades escolares e afirmou ter lido todos os livros da série Harry Potter, O senhor

dos Anéis e Código da Vinci. Frequentava o curso de mecânica no SENAC no horário noturno

às segundas, quartas e sextas-feiras. Para Eric, participar do projeto significava “interatividade com os amigos e estudo”, considerando que ficava sozinho em casa, um dos motivos de sua entrada para o projeto.

Ana Julia

Ana Júlia tinha 13 anos e residia no Aglomerado do Morro das Pedras, região oeste de Belo Horizonte. Morava com a mãe, o padrasto e um irmão mais novo. Afirmou ter lido todos os livros da biblioteca do projeto e destacou alguns: O diário de Ana Cristina e De menina para

menina. Com trajetória escolar sem reprovações, Ana Júlia sempre estudou na mesma escola,

próxima de sua casa. Ao ingressar para o terceiro ciclo, passou a frequentar a escola pesquisada e estava no 2º ano do terceiro ciclo. A entrada para o projeto foi influenciada pelas amigas, que decidiram frequentar o projeto. Interessada pelas atividades e “muito tagarela” como ela mesma se caracterizou, participava das aulas e sempre levantava o dedo quando estava com alguma dúvida. Quanto ao projeto de vida, Ana Júlia argumentou: “eu penso em formar em Educação Física, quando eu tiver na faculdade eu vou ter que ler muitos livros, é muito mesmo, fazer muitos trabalhos. E também na Educação Física não é só esporte, se não me engano anatomia”.

Patrick

Patrick, 14 anos, vivia com a avó, o tio, a irmã e o primo no bairro Serra (região centro-sul de Belo Horizonte). Ao se referir à mãe, indignava-se: “Minha mãe não tá nem aí pra mim, minha mãe tá presa, não sei se tá morta, se tá viva”.

Justificou sua entrada para o projeto como uma forma de ampliar sua rede de amizades, mas em todos os encontros afirmava que não gostava de ninguém do projeto, que todos eram falsos. E acrescentou “ser mais educado, porque eu sou muito direto com as pessoas, eu sou muito grosso. Ah! O que me pergunta eu respondo. Ah! Eu tô feia hoje? Tá horrorosa! Falo mesmo, pergunta e eu respondo”.

Sabrina

Sabrina, 13 anos, morava com os pais, a avó e seus quatro irmãos no bairro Grajaú, região oeste de Belo Horizonte. Estava cursando o primeiro ano do terceiro ciclo. Anteriormente estudou em uma única escola, também da Rede Municipal, próxima de sua casa. A adolescente afirmou que gostava de ler histórias de guerra e romances, mas não soube nomear nenhum título, apenas revelou um dos enredos: “histórias de pais que não deixavam a filha namorar”. Quanto ao futuro, afirmou: “Quero estudar, passar de ano e fazer o curso de polícia. Eu quero ser do GATE” (Grupo de Ações Táticas Especiais da Polícia Militar). Na entrevista, Sabrina se limitava a responder às questões apresentadas pela pesquisadora e no grupo focal somente se posicionava com a intervenção da pesquisadora.

Vicente

Vicente, 14 anos, estava frequentando o terceiro ano do terceiro ciclo e afirmou que “matava muita aula, eu não fazia nada dentro de sala, eu e meus colegas só ficava brincando, principalmente na aula de matemática, ficava jogando bolinha, até o ventilador nós conseguimos derrubar”. Mostrava-se muito ansioso nos encontros e sempre tentava garantir a atenção dos colegas, falava alto, cantava, interrompia a fala dos colegas e fazia piadinhas. O adolescente afirmou que após ingressar no projeto: “não troco m antes de p e b. E também, por exemplo, passageiro, é porque tem palavra que a gente coloca SC, ou um S ou dois S, mas eu nunca acertava o SC.”