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O desenvolvimento e consolidação do ensino comercial no Brasil vincula-se ao contexto de cada época e, enquanto permaneceu como colônia de Portugal, percebe-se que não há um sistema educacional estruturado. Essa estruturação, conforme nos revela a historiografia, teria início a partir de 154925, quando os jesuítas iniciam o processo educacional, permanecendo até 1759 com duas diretrizes educacionais básicas: a formação cultural dos indígenas e da elite colonial (LEITE, 2005).

A exemplo do que ocorrera em Portugal, também o Brasil foi influenciado pelas reformas pombalinas, no sentido de erradicação do processo educacional conduzido pelos jesuítas. A expulsão dos jesuítas, em 1759, resultou no fechamento de todos os colégios da Companhia de Jesus, que totalizavam, de acordo com Cunha (2007), 25 residências, 36 missões e 17 colégios e seminários maiores, além de número não determinado de seminários Sobre a instrução na colônia, Silva (2005, p. 57) explica que, após a expulsão do jesuítas

25Em 1549, foi nomeado como primeiro Contador Geral das terras do Brasil Gaspar Lamego, para o controle

contábil dos armazéns alfandegários (LEITE, 2005). Contador geral era a expressão utilizada para denominar os profissionais que atuavam na área pública.

a instrução primária oferecida ao povo, às custas do governo colonial, ficou muito abaixo do que se possa imaginar. Os estudos secundários somente eram oferecidos nos seminários episcopais e em um pequeno número de seminários civis, onde se ensinavam as seguintes disciplinas: aritmética, álgebra, geometria, latim e grego, retórica e um pouco de filosofia. A continuação dos estudos deveria ser realizada em Portugal.

Enquanto atividade profissional, ainda que de forma incipiente, a contabilidade faz-se presente no Brasil desde o período colonial quando o ensino formal desse saber inicia-se com a transferência da sede do reino português para a cidade do Rio de Janeiro, em 1808 (COELHO, 2007; RODRIGUES, 2013; FERREIRA, 2014). Cunha (2007) explica que o período compreendido entre 1808 a 1821, quando D. João VI permanece no Brasil, foi efervescente em termos de mudanças das mais diversas ordens, que influenciaram a conjuntura que estava estabelecida na até então colônia. E é a partir de então que começa a ocorrer a estruturação e ampliação do aparelho administrativo e militar, da produção agrícola e manufatureira, das atividades mercantis, comerciais e culturais, similares ao que existia em Portugal (CUNHA, 2000; 2007).

Curiosamente, é a educação de nível superior não eclesiástica que é priorizada como se observa na Tabela 3, no Apêndice C, onde são sumarizados os cursos específicos criados à época. No período de permanência de D. João VI no Brasil 1808 a 1821 , são criados sete cursos de educação superior e, até 1889, ano da Proclamação da República, eram 19 (dezenove) os cursos de educação superior. Corroborando essa constatação, Bielinski (2000) explica que um novo cenário cultural para abrigar a corte se configura, a imprensa floresce e é o ensino superior que terá a primazia.

A mentalidade preconceituosa da época ligava os trabalhos manuais e mecânicos aos trabalhos realizados pelos escravos e pela classe mais humilde, criando assim fortes barreiras ao ensino técnico-profissionalizante. Formar-se doutor era ter a possibilidade de subir no status social e econômico, mas tornar-se fabricante, negociante ou lavrador era situação não desejável para a maioria dos jovens. Essas profissões, segundo opinião geral, eram destinadas aos menos inteligentes ou deserdados da fortuna [...] O povo, por sua vez, acreditava que para trabalhar nas oficinas, no comércio, ou na agricultura, não era necessário ir à escola. O orçamento da casa pobre recebia o reforço advindo do trabalho juvenil e mesmo infantil, o que contribuía para que a educação fosse considerada um luxo nas famílias mais humildes. (BIELINSKI, 2000, p. 2).

Embora se tenha priorizado a educação superior, a constatação da necessidade de qualificação dos profissionais para organização da economia da Colônia levou ao estabelecimento, em 23 de fevereiro de 1808, na cidade do Rio de Janeiro, da primeira

Cadeira26 e Aula Pública dedicada ao ensino de Economia Política, principalmente devido à abertura das fronteiras ao comércio internacional (CANABRAVA, 1984a, p. 23). Foi designado como seu professor o economista José da Silva Lisboa27. Sobre seus desdobramentos quanto à duração e tempo que ficou sob a responsabilidade desse Lente os estudos em fontes documentais se mostraram inconclusivos28.

Também no ano de 1809, para amenizar os efeitos da falta de profissionais para o atendimento às exigências decorrentes da demanda instalada pelos órgãos administrativos e públicos criados, como a Real Junta do Comércio, Banco do Brasil, Casa da Moeda, Biblioteca Nacional e outros, é publicado o Álvara de 15 de julho de 1809, que institui, na Corte do Rio de Janeiro e na Academia Militar, a Aula de Comércio29

quiserem entrar nesta útil prof , como

explica Canabrava (1984b .

Registros historiográficos evidenciados em estudos de Ericeira (2003), Peleias et al. (2007) e Araújo (2013) confirmam a instalação das aulas em outros estados, mas atentam para as condições de realização das mesmas, que, devido à dificuldade de contratação dos lentes (Bahia e Pernambuco) e, também, à incapacidade de alguns desses professores para ministrar tais aulas, foram suspensas (Maranhão em 1820).

26Leite (2005) explica que as aulas e cadeiras ou cátedras foram as primeiras unidades de ensino superior no

Brasil. Eram unidades, que podiam ser agrupadas em cursos, nos quais um professor lecionava para seus alunos em lugares improvisados hospitais, órgãos do Estado ou até em sua própria residência. A estruturação desse modelo de ensino teve início na França e sua adoção se justificava devido à percepção que os governantes portugueses consideravam que as conquistas continentais napoleônicas eram decorrentes da reforma instituída no sistema de ensino francês. Esse modelo de ensino, organizado em cadeiras e cátedras, marcou tanto o ensino português quanto o brasileiro até a década de 1970, como discute-se no Capítulo III e V desta pesquisa.

A origem da denominação remonta à Idade Média, em que os professores das universidades sentavam-se em suas cadeiras, colocadas em um plano elevado, de onde lecionavam. A disposição da cadeira também marcava a hierarquia dos papéis sociais assumidos. Ser um professor catedrático indicava distinção, pois era o topo da carreira docente nas instituições de ensino superior (RIBEIRO, 2009a, p. 41).

27José da Silva Lisboa (1756-1853), o Visconde de Cairu, formou-se em Direito em Coimbra. Voltou para o

Brasil em 1780 e trabalhou em Ilhéus e Salvador como advogado e professor. Foi pioneiro em direito comercial e economia política, tendo ocupado, no país, diversos cargos administrativos (ROCHA, 2001).

28Canabrava (1984a, p. 23) esclarece que, em contraste com o conhecimento que se tem das várias obras de José

da Silva Lisboa, objeto de numerosos estudos que revelaram sua personalidade intelectual e a originalidade de suas ideias, perdeu-se a memória da Aula Pública, da qual se conservou apenas o texto oficial que a estabeleceu.

29A Aula do Comércio em Portugal foi originalmente criada pelo Decreto de 30 de setembro de 1755, que

também criou a Junta do Comércio do Reino e seus Domínios, mas só foi efetivamente organizada em 1759, quando recebeu seus estatutos. Em 1808, o Alvará de 23 de agosto criou no Brasil a Real Junta do Comércio, mas não se fazia referência ao estabelecimento ou organização de uma Aula de Comércio no país. No entanto, esse mesmo documento dispunha que a Real Junta deveria regular-se por todas as leis, alvarás, ordens régias e regimentos estabelecidos sobre essa matéria em Portugal (BIELINSKI, 2000).

Sobre as Aulas de Comércio no Brasil, há, na literatura, um desencontro de informações. Ricardino Filho (2001) assevera que, sobre a criação dessas Aulas,

uma incógnita sua localização, programa e c , enquanto Santana (1974, p. 4)

Em contraponto, cita-se Araújo (2013, p. 12), a qual informa que, em 1820, Genuino Barbosa Bettâmio, Lente da Aula de Comércio da Bahia,

anos, devido a já existirem vários Compêndios que abordavam as matérias ensinadas na Aula , propondo que, no 1º ano, fossem ensinados os conteúdos Aritmética e Álgebra até as equações do 2º grau e, no 2º ano, redução das moedas, pesos e medidas estrangeiras, câmbios, uso das Letras, Seguros, Avarias, Escrituração dos Livros e Geografia (SANTANA, 1989). Conclui-se, então, que havia organização e, nos parece, similar à Aula de Comércio de Portugal, visto que não se havia um estatuto para as aulas na colônia, essas seriam ministradas no mesmo formato que em Portugal.

Como instrução técnica, as aulas de comércio destinavam-se ao ensino prático e ao conhecimento de procedimentos mercantis usuais nos mercados nacionais e internacionais (CHAVES, 2011). A técnica das partidas dobradas30, método italiano, considerada essencial para o aprendizado em contabilidade, era o ponto alto dos novos estudos. O alvará que determinava o uso do sistema contábil por partidas dobradas na escrituração mercantil pelos Contadores Gerais da Real Fazenda apresentava a seguinte justificativa:

[...] ordeno que a escrituração seja mercantil por partidas dobradas, por ser a única seguida pelas nações mais civilizadas, assim pela sua brevidade, para o manejo de grandes somas como por ser mais clara e a que menos lugar dá a erros e subterfúgios, onde se esconde a malicia e a fraude dos prevaricadores. (Carta de D. João VI citada por SILVA; MARTINS, 2008, p. 109).

Já se percebia, por esse documento, que deveria haver uniformidade nos registros e, novamente, a natureza essencialmente prática e técnica da contabilidade. Essa reprodução (BORDIEU; PASSERON, 1970) que, de certa forma, caracteriza a prática contábil, visava a manter o poder simbólico do Estado (ALTHUSSER, 1987) sobre aqueles guarda-livros admitidos como Contadores Gerais na área pública e, também, sobre a colônia, ao exigir que

30O método de registo conhecido por Digrafia ou Partidas Dobradas é um método de registro contábil em que

toda e qualquer alteração de valor, ocorrida em qualquer conta, provoca invariavelmente uma alteração noutra ou noutras contas de igual valor, o que traduz o constante equilíbrio das alterações (CARQUEJA, 1993).

se ensinasse e praticasse, no Brasil ao menos durante o período em que a Corte aqui se instalara , uma escrituração equânime à Corte e demais países europeus. O uso desse método, conforme praticado nas Aulas de Comércio portuguesas, tornaria a máquina administrativa mais operante e manteria o poder fiscalizatório do Estado por meio da Real Junta de Comércio.

Se, nos anos iniciais, a implantação das Aulas de Comércio nos mesmos moldes das Aulas da corte portuguesa não se mostraram exitosas, Peleias et al. (2007) ressaltam que, a partir da década de 1830, identifica-se, de modo mais claro, o que eram tais Aulas, visto que, nesse período, o governo imperial, por meio de decretos, aprovou, estabeleceu e modificou as condições de oferta dessas Aulas. É, no entanto, a partir de 1846, que, efetivamente, se (re) estruturariam as Aulas de Comércio da Corte do Rio de Janeiro e Academia Militar, como se discute mais adiante. É possível, no entanto, assegurar que se dava, na colônia brasileira, alçada à condição de Corte por um curto espaço temporal, o estágio inicial do ensino comercial que, anos mais tarde, resultaria no ensino superior de contabilidade, tal como ocorreria em Portugal.