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CAPÍTULO 1 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

1.1 A Teoria das Representações Sociais (TRS): breves reflexões

1.1.2 A gênese das representações sociais

Moscovici (1978) entendeu que as pessoas organizam e elaboram suas ações cotidianas partindo das suas experiências concretas e daquelas relatadas pelos sujeitos que estão diretamente relacionados consigo. Estas concepções empíricas são difundidas pelo diálogo intersubjetivo ou por mecanismos de comunicação em massa, tais como a TV, o rádio, os livros, as revistas e atuam na construção de uma realidade social.

[...] Uma frase, um enigma, uma teoria, apanhados no ar, aguçam a curiosidade, prendem a atenção. Fragmentos de diálogo, leituras descontínuas, expressões ouvidas algures retornam ao espírito dos interlocutores, misturam-se às suas impressões; brotam as recordações, as experiências comuns apossam-se delas. Graças a esses falatórios, não só as informações são transmitidas e os hábitos do grupo confirmados, mas cada um adquire uma competência enciclopédica acerca do que é objeto da discussão. As atitudes ordenam-se, os valores tomam seus lugares, a sociedade começa a ser habitada por novas frases e visões. E cada um fica ávido por transmitir o seu saber e conservar um lugar no círculo de atenção que rodeia aqueles que ‘estão ao corrente’, cada um documenta-se aqui e ali para continuar no ‘páreo’ [...] (MOSCOVICI, 1978, p. 53).

Jodelet (2001) informou que a vinculação a um determinado grupo é afirmada à medida que seus membros partilham uma idéia ou representação social. Este compartilhar somente é possível graças aos mecanismos de comunicação que transformam percepções em conceitos do senso comum e vice-versa.

À medida que qualquer novidade se apresente nos significados já instituídos por um conjunto social, a contribuição das representações sociais para a formação de uma identidade grupal é abalada (JODELET, 2001; MOSCOVICI, 1978).

Um novo conhecimento torna-se inquietante, movimenta os valores da coletividade, aquilo que se entende por certo ou errado no grupo. Assim, dois mecanismos são tomados pelo corpo social, na tentativa de representar e incorporar esse conceito emergente: a objetivação e a ancoragem (JODELET, 2001; MOSCOVICI, 1978).

Esses mecanismos ou processos de construção das representações sociais fazem do elemento desconhecido um conceito familiar e permutável nas comunicações. Para isso, o objeto e os sujeitos se transformam, bem como as representações previamente instituídas no grupo (JODELET, 2001; MOSCOVICI, 1978; 2001a).

A objetivação recoloca o objeto, que se torna algo quase concreto, comum e controlável. A ancoragem permite que se estabeleçam relações entre o estranho e o familiar, fazendo com que o novo seja transferido para a esfera do cotidiano de modo a ser comparado e interpretado de acordo com o conhecimento previamente constituído e operante no senso comum do grupo.

1.1.2.1 A Objetivação

Berger; Luckmann (1985, p. 53 - 54) explicaram que

A expressividade humana é capaz de objetivações, isto é, manifesta-se em produtos da atividade humana que estão ao dispor tanto dos produtores quanto dos outros homens, como elementos que são de um mundo comum. Estas objetivações servem de índices mais ou menos duradouros dos processos subjetivos de seus produtores, permitindo que se estendam além da situação face a face em que podem ser diretamente apreendidas. [...] Estes índices estão continuamente ao alcance da vista na situação face, e esta é precisamente a razão pela qual me oferecem a situação ótima para ter acesso à subjetividade do outro.

Segundo Jodelet (2001), a objetivação se constitui em três etapas: a construção seletiva, a esquematização estruturante e a naturalização.

A primeira etapa relaciona-se ao fato do objeto ser construído segundo referenciais de quem o representa. Assim, ele é passível de defasagem, de sofrer modificações conceituais quanto a determinadas características que inicialmente o constituíam. O grupo seleciona aspectos do objeto para adequá-lo em seu campo simbólico (JODELET, 2001; MOSCOVICI, 1978).

Na pesquisa de Moscovici sobre as representações sociais da psicanálise, as questões sobre sexualidade, da teoria freudiana, que não concordavam com o sistema de valores vigentes no grupo, não eram mencionadas (JODELET, 1985).

A construção seletiva é um forte mantenedor da identidade grupal, conforme explica Moscovici (1978, p. 103), quando fala sobre o mundo do saber.

[...] ele é severamente limitado e sua circulação submetida a regras rigorosas. Os grupos e os indivíduos diferenciam com precisão:

a) o que se supõe que se deva saber do que se supõe que se deva ignorar; b) aquilo que se fala daquilo de que não se fala.

Para diminuir a distância entre as imagens e as palavras que as significam, parte-se para a segunda etapa, que se refere à ligação dos vocábulos às idéias que eles representam. Constrói-se desta forma, um núcleo figurativo, um complexo de imagens que se reportam a um outro, de idéias (JODELET, 2001; MOSCOVICI, 1978).

A naturalização das noções sobre o objeto, faz com que ele seja visto como uma realidade concreta, uma verdade absoluta. O que era conceito em uma geração passa a ser verdade na seguinte (JODELET, 2001; MOSCOVICI, 2001a).

O real passa a ser visto como algo concreto, os valores parecem ser estáticos. Os objetos parecem encontrar essências próprias, na visão popular. Cria-se o que Werner (1997) denomina de realismo ingênuo, em que as explicações para os fatos e para as coisas são imanentes; próprias da natureza, da constituição dos fatos e coisas. O autor exemplifica sua discussão mostrando uma epígrafe com o clássico verso de Gertrude Stein: Uma rosa é uma rosa, é uma rosa4.

1.1.2.2 A Ancoragem

A ancoragem confere um significado e uma utilidade ao objeto e à representação social, também, promove a adequação desse elemento ao sistema de pensamento pré-existente, no grupo (JODELET, 1985).

Mais complexo e fundamental do que poderia parecer, o processo de ancoragem, situado em uma relação dialética com a objetivação, articula as três funções básicas da representação: função cognitiva de integração da novidade, função de interpretação da realidade e função de orientação das condutas e das relações sociais (JODELET, 1985, p. 4865).

Com base no enunciado anterior, Jodelet (1985) decompôs o processo de ancoragem em três modalidades: a ancoragem como enraizamento no sistema de pensamento, a ancoragem como atribuição de sentido e a ancoragem como instrumentalização do saber.

Segundo Moscovici (2001a; 2003), Jodelet (1985), para ancorar é necessário classificar o novo objeto, aproximá-lo de uma classe pré-existente de conceitos e dizer se ele é normal ou anormal diante destes padrões. Esta classificação envolveria a primeira modalidade, a ancoragem como enraizamento no sistema de pensamento.

4 Original em inglês, traduzido por Werner (1997). A rose is a rose is a rose.

5 Original em Espanhol, traduzido pelo autor desta pesquisa. Más complejo y fundamental de lo que ha podido

parecer, el proceso de anclaje, situado en una relación dialéctica con la objetivización, articula las tres funciones básicas de la representación: función cognitiva de integración de la novedad, función de interpretación de la realidad y función de orientación de las conductas y las relaciones sociales.

Quando os sujeitos aproximam o novo elemento, a uma classe de conceitos pré-existentes, eles o relacionam com um protótipo, constituído com base nestas noções que lhes são familiares (MOSCOVICI, 2001a; 2003; JODELET, 1985).

Após definir o protótipo, o objeto é comparado a este modelo padrão segundo o qual, será qualificado na escala de valores sociais. Ao avaliar a novidade, o grupo toma determinados posicionamentos, aceitando ou rejeitando o elemento.

A classificação é feita de duas formas, por generalização ou particularização. No primeiro caso, seleciona-se uma característica do objeto ao acaso e se generaliza como elemento essencial deste (MOSCOVICI, 2001a).

Por exemplo, no Brasil, há uma tendência a se qualificar pessoas com características físicas orientais. Um indivíduo com olhos amendoados, cabelos lisos e negros, acaba sendo qualificado, no senso comum, como japonês, coreano ou chinês, independente de sua real nacionalidade.

Ao particularizar, os sujeitos tomam uma semelhança entre dois objetos e identificam em que aspectos eles diferem, segundo ensinou Moscovici (2001a; 2003).

Por exemplo, na época da invasão européia às Américas, questionava-se a humanidade dos índios por acreditarem que eles eram privados de alma, por isso, selvagens. Neste caso, a ausência da alma seria o diferenciador entre o índio (objeto desconhecido) e os europeus (protótipo).

A atribuição de sentidos, segundo mecanismo de ancoragem, vincula-se a uma relação entre os subgrupos de um conjunto social. Cada subconjunto atribui uma acepção ao objeto, embasando-se em referenciais próprios, sejam eles sociais, culturais, econômicos, religiosos, ideológicos, emocionais. Enfim, o grupo apresenta sua identidade de acordo com o significado que imprime ao objeto (JODELET, 1985).

Observa-se que a explicação de Jodelet (1985), acerca da ancoragem, enquanto atribuição de sentido, encontra similaridades nas considerações de Bourdieu (1989), para quem os sujeitos constroem sua realidade segundo pontos de vista, objetivos e valores orientados pela posição que ocupam na sociedade, procurando manter ou transformar essa posição.

Por exemplo, o termo ficar para jovens de comunidades rurais de orientação sexual católica, é entendido como um encontro descompromissado, entre duas pessoas, que pode culminar em alguns beijos e abraços. Contudo, para muitos jovens, o mesmo termo pode significar uma relação entre duas pessoas, que embora seja fugaz, pode chegar ao ato sexual.

A ancoragem também pode ser um mecanismo de instrumentalização do saber, “conferindo-lhe um valor funcional para a interpretação e gestão do ambiente” (JODELET, 2001, p.39).

Falado a respeito de ancrage, palavra francesa que é traduzida em português como ancoragem ou amarração, Moscovici concluiu:

[...] Numa palavra, a objetivação transfere a ciência para o domínio do ser e a amarração a delimita ao domínio do fazer, a fim de contornar o interdito da comunicação. [...] Eis uma diligência fundamental. Depois que a pedra foi transformada em machado e o sílex em fogo, o homem sempre transformou as coisas e as criaturas em instrumentos úteis (MOSCOVICI, 1978, p. 174).