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O gênio artístico e suas afinidades eletivas: Goethe e a dimensão alegórica do símbolo

preconceito contra o drama barroco alemão

2.1. O gênio artístico e suas afinidades eletivas: Goethe e a dimensão alegórica do símbolo

Na mesma medida em que a teoria da tragédia de orientação neoclássica se ocupava “em encontrar no drama trágico [barroco], como seus traços essenciais, elementos da tragédia grega – a fábula trágica, o herói trágico e a morte trágica” (BENJAMIN, ODTA, p.101; GS I, p.279), ela foi, ao mesmo tempo, “sem qualquer consideração pelos fatos históricos, construída como uma teoria da ordem ética do mundo, adentro de um sistema de sentimentos gerais que se julgava logicamente fundados no conceito de culpa e expiação” (BENJAMIN, ODTA, p.101; GS I, p.279). Baseada na noção de simbólico e no debate filosófico entre a necessidade e a liberdade, inscritos em Schelling, na filosofia do trágico não se percebia “a articulação das normas éticas transcendentes com a matéria propriamente histórica” (NEWMAN, 2011, p.74). Ao contrário do que Benjamin percebeu nas cesuras das tragédias de Hölderlin, que mostram a impossibilidade de se escrever uma tragédia à moda dos antigos em seu tempo, na filosofia do trágico, “quis-se ver na tragédia, e concretamente na grega, uma forma primitiva do drama trágico [barroco], na sua essência aparentado a este último” (BENJAMIN, ODTA, p.101; GS I, p.279). Como vimos, ingenuamente, a tragédia e o barroco alemão foram aproximados em uma progressão linear, ressaltando uma evolução do pensamento moderno adaptado às formas dos gregos que desbocaram, também, nos dramas de destino. Quando a atualização das tragédias por uma filosofia do trágico apresenta, de forma arrogante, “a visão moderna de mundo como único elemento em que o trágico pode se desenvolver livremente de todas as suas forças e consequências” (BENJAMIN, ODTA, p.102; GS I, p.279), ficam escancarados o anacronismo e a dissociação transcendental dessa filosofia em relação à materialidade histórica em que se apresentavam as tragédias. “Pelo simples fato de o teatro moderno não conhecer nenhuma forma de tragédia comparável à dos Gregos”, só de conceber, descabidamente, a possibilidade de “escrever tragédias ainda hoje” (BENJAMIN, ODTA, p.101; GS I, p.280), pretender fazer com que homens modernos, não orientados pela competência do sensível, experimentem, com reservas, “os efeitos estéticos das formas que os povos antigos e os tempos passados deram ao destino trágico em suas obras” (BENJAMIN, ODTA, p.101; GS I, p.280) e deles façam juízo, já se demonstrava o caráter suspeito e problemático dessa adaptação pela visão moderna do trágico. É nesse sentido que Benjamin pode afirmar que “a filosofia da história foi

118 excluída” (BENJAMIN, ODTA, p.103; GS I, p.280) da teoria da tragédia. É nesses termos que se inscreve o testemunho a-histórico de uma ordem ética da filosofia do trágico, descrita por Johannes Volkelt em Estética do trágico (Ästhetik des Tragischen, 1897):

Na dependência da dramaturgia naturalista, a teoria poética e epigonal da segunda metade do século XIX assimilou, com surpreendente ingenuidade, essa ordem ética do mundo a uma ordem causal da natureza, transformando assim o destino trágico numa condição “que se manifesta na interação do indivíduo com um universo regido por leis” (BENJAMIN, ODTA, p.102; GS I, p.279). À medida que a visão moderna de mundo passa a ver, na relação do herói com o poder transcendente, “alguém inscrito numa ordem insustentável, incapaz de resistir a uma visão mais despojada, e reconhecer que a humanidade que ele representa traz em si a marca da estreiteza, da opressão e da não liberdade” (BENJAMIN, ODTA, p.102; GS I, p.279), como observamos no conflito do herói barroco e dos dramas de destino, perdeu-se o que, verdadeiramente, caracterizaria a tragédia ática. Benjamin não nega a relação entre o herói e as forças do destino nas tragédias gregas, mas desconfia do entendimento moral sobre elas baseado em um jogo de culpa e expiação tipicamente barroco. É nesses termos que ensaia Destino e Caráter (Schicksal und Charakter, 1919)166,

em que busca dissociar a ligação causal entre esses conceitos e os registros no qual foram inseridos em uma concepção tradicional. De uma maneira geral, o destino, irrefletidamente, aparecia atrelado ao caráter como sua consequência; estabelecia-se uma relação de causalidade completamente arbitrária, segundo a qual se “o caráter de uma pessoa, isto é, também a sua maneira de reagir, fossem conhecidos em todos os seus pormenores (...) então se poderia dizer com exatidão tanto o que aconteceria a esse caráter quanto o que seria realizado por ele” (BENJAMIN, DC, p.89. GS II, p.171). As consequências dessa conexão arbitrária desse par conceitual acabaram por determinar equivocadamente o contexto em que se encontram: para Benjamin, “o caráter (...) usualmente inserido em um contexto ético, enquanto o destino em um contexto religioso” (BENJAMIN, DC, p.92; GS II, p.173) devem ser banidos dessas esferas equivocadas para as quais foram transportados.

“No que se refere ao conceito de destino, este erro deve a sua ligação com o de culpa” (BENJAMIN, DC, p.92; GS II, p.173), aí encontrava-se o erro dos tragediólogos alemães que apontavam o destino “como um conceito que nos é dado, por meio de uma moral” relacionada ao erro e percepção de culpa do herói, “da qual não há nenhuma via pensável de libertação” BENJAMIN, DC, p.93; GS II, p.174). Para contrapor-se à culpabilidade religiosa, na qual “a infelicidade fatídica é vista como resposta de Deus” (BENJAMIN, DC, p.92; GS II, p.173), Benjamin reflete sobre o conceito de inocência para mostrar que, “na formulação clássica dos

166 BENJAMIN, Walter. Destino e Caráter. In. Escritos sobre mito e linguagem. Trad. CHAVES, Ernani. São Paulo,

119 gregos da ideia de destino, a felicidade que cabe a um homem não é compreendida de forma alguma, como confirmação de sua vida inocente” (BENJAMIN, DC, p.92; GS II, p.174), mas pelo atrevimento de sua hybris. Não se encontra aqui a culpa como uma infelicidade animada pela religião ou uma ligação causal com o destino, ao contrário, é na heresia e na coragem frente ao destino que o herói era feliz: “ser culpado é a honra do grande caráter” (BENJAMIN, ODTA, p.135; GS I p.310). De um modo paradoxal, o herói romperia com o fluxo do destino em sua morte, sem que isso significasse uma reconciliação com o mundo, com os deuses, ou consigo mesmo pela expiação de culpa. Com a sua morte, o mundo é chacoalhado, “não se trata de dizer aqui que a ordenação ética do mundo será novamente restaurada, mas que, no estremecimento deste mundo doloroso, o homem moral, ainda mudo, ainda na minoridade – como tal, ele é chamado de herói – quer se pôr de pé” (BENJAMIN, DC, p.94; GS II p.175). Nesse aspecto, mais do que um fundo religioso de resignação, o destino infeliz do herói nas tragédias áticas revela a infantilidade moral do homem, que não era nem culpado nem inocente, de se elevar sobre a dor do mundo, o que foi confundido ou reinterpretado, posteriormente, do ponto de vista da transcendência e da moralidade de culpa e expiação do homem por vir. Quando atinge a sua maioridade pelo esclarecimento, a morte do herói, que agora se faz moderno, passa de um castigo dos deuses à interiorização como expiação, “expressão da entrega da vida em culpa à lei natural” (BENJAMIN, ODTA, p.135; GS I p.310). Longe de se libertar da servidão natural e das amarras do destino, o herói moderno é consciente de sua culpa e de que, em sua interioridade, regido pela razão, não há culpa exterior. Mesmo dirigido ao acaso que circunda o mundo, é ele quem, em sua transcendência, não consegue desfazer o nó do destino. Assim, presos em sua interioridade, os heróis modernos “são figuras não trágicas, mas adequadas ao drama de caráter lutuoso” (BENJAMIN, ODTA, p.136; GS I p.311), uma vez que, sem conseguir determinar o rumo dos acontecimentos, assumem a responsabilidade e a culpa para si, fazendo do destino nexo de culpa dos viventes a partir de uma visão moral e religiosa.

Por sua vez, “a fundamentação do conceito de caráter deverá estar relacionada, em todo caso, a uma esfera natural que tem pouco a ver com a ética ou a moral tal como o destino com a religião” (BENJAMIN, DC, p.95; GS II, p.176). O caráter deste homem que não é nem culpado nem inocente aparece mais relacionado a sua vida natural do que amparado na relação de causalidade com o destino ou no acento moralista tomado pelos modernos. Se havia alguma coligação do caráter com o destino, ela se constituía nessa conexão com a vida natural: “ambos dizem respeito ao homem natural, melhor dizendo: à natureza do homem, que se anuncia nos signos da natureza, dados em si mesmos ou produzidos experimentalmente” (BENJAMIN, DC, p.95; GS II, p.176). Já a concepção de caráter entre os modernos é completamente diferente deste

120 contexto originário, na medida em que empreende uma ligação superficial com uma compreensão de destino que não existia entre os antigos, de onde se tira a moralidade. Em sua ligação com a malha do destino, o caráter não pode ser medido pelas qualidades individuais do herói, que só fazem sentido inseridas no contexto religioso: “nos fios dessa trama, um entendimento fraco acreditou finalmente ter se apropriado da essência moral do caráter em questão e nele distinguir as boas e más qualidades. Mas cabe à moral mostrar que jamais a qualidade, mas somente as ações podem ter peso moral” (BENJAMIN, DC, p.96; GS II, p.177), porque é nelas, e não no dogma, que se torna visível a liberdade do herói. De um lado, teríamos uma moralidade baseada no essencialismo religioso que, despropositadamente, infere a predição do destino a partir das qualidades individuais do herói como se fosse um karma; a desgraça recai sobre aqueles que são maus. Ora, preso ao destino, pouco importa se o homem é bom ou mau, ele se encontra em um estado de inocência que é anterior à instituição moral, de modo que não podemos observar aqui a liberdade em suas ações para inferir as consequências do destino. De outro lado, e muito mais importante para nossos fins, percebemos uma moralidade filosófica constituída pela autonomia do entendimento que dirige as ações do herói e o caracteriza em sua liberdade. Para se chegar ao conceito de caráter era necessário abstrair esse entendimento deficiente de valoração da moral para chegarmos a sua verdadeira fundamentação, depositada na razão prática, e sua depuração no juízo, por onde deveria se desenrolar o conflito trágico moderno. Supostamente “enquanto o destino desenrola a imensa complicação da pessoa culpada, enquanto ele expõe a complicação e o elo constrangedor de sua culpa, o caráter dá, em contraposição a essa servidão mítica, a resposta do gênio” que, em sua singularidade, rompe com o círculo mágico do destino, fazendo “a complicação tornar-se simples, o fatum, liberdade” (BENJAMIN, DC, p.97; GS II, p.178). Todavia, o que Benjamin vislumbra na comédia (Lustspiel) não chega a se confirmar no Trauerspiel, onde se mostra problemática qualquer intenção de “tornar racionalmente concebível a possibilidade de predição do destino” (BENJAMIN, DC, p.91; GS II, p.172) ou seu controle a partir da ação do herói. De tal maneira, Benjamin exalta a contradição entre um mundo interior, que é o do caráter, e um mundo exterior, que é o destino. Eles interagem e se interpenetram e, por isso, aparentam ser vistos um no outro como se fossem identificados, mas, diferentemente do que propõe a solução iluminista, “nenhum conceito do mundo exterior se deixa definir em oposição às fronteiras do homem que age” (BENJAMIN, DC, p.91; GS II, p.173). Com isso, no decorrer da ação trágica, sem conseguir transcender as fatalidades do destino, o personagem encontra a sua submissão ao mundo do qual não consegue escapar e a naturalização da culpa, a qual não consegue expiar.

A tragédia do herói moderno, estabelecida no conflito entre a purgação do destino, que não controla, e a necessidade de transcendência, a partir de suas ações e seu caráter, revela, mais

121 profundamente, o drama em que o próprio espírito filosófico e artístico se insere: o conflito entre o mundo exterior e a subjetividade, a imitação natural e a liberdade do gênio. A tragédia era o reflexo do pensamento filosófico da época que procurava a síntese entre o que era interior e exterior, a unidade entre o determinado e o indeterminado. A relação do destino com o caráter entre os modernos espelhava, respectiva e inocentemente, o casamento entre determinismo naturalista e uma ordem ética do mundo transposta para o trágico. No âmbito estético, essas questões não poderiam ser evidenciadas de maneira mais clara por Johann Wolfgang von Goethe:

Como poderia a arte sustentar uma tese cuja defesa é atribuição do determinismo? Se uma obra de arte acolhe em si determinações filosóficas, estas deverão referir-se ao sentido da existência; são irrelevantes as doutrinas sobre a factualidade natural da ordem do mundo, mau grado e seu alcance universal. Uma visão determinista não pode ser determinante para nenhuma forma de arte. Outro é o caso da genuína ideia de destino, cujo motivo decisivo deveria procurar-se no sentido eterno daquela determinabilidade. Nesta perspectiva, ela não necessita se submeter às leis da natureza para se realizar: também um milagre poder mostrar esse sentido, que não enraíza a inevitabilidade factual. O cerne do destino é antes a convicção de culpa – neste contexto sempre culpa da criatura, isto é, em termos cristãos, o pecado original e não o erro moral de quem age – desencadeia, ainda que através da manifestação fugidia, a causalidade como instrumento de uma série de fatalidades incontroláveis. O destino é a enteléquia do acontecer da peça. (BENJAMIN, ODTA, p.133; GS I p.308)

Na visão estética sobre o gênio, Goethe não poderia aceitar a posição passiva do autor frente à causalidade, por conseguinte, vemos que, “por mais que essa ideia seja repetida, não se pode aceitar que a função do dramaturgo seja a de desenvolver o teatro no acontecimento como se fosse inerente à necessidade causal”, uma vez que “aquilo que tem caráter de destino não é cadeia inelutável da causalidade” (BENJAMIN, ODTA, p.133; GS I p.308). Quando aponta que a culpa não está no agir moral, mas incrustada, desde o começo, pela convicção de pecado original, ele quer demonstrar que a decorrência dos acontecimentos necessários que se desenrolam na tragédia não está na natureza, mas na consciência culpada e galvanizada como destino na ação da peça. No pano de fundo dessa discussão está uma concepção plenamente moderna e paradoxal: a liberdade do sujeito diante da necessidade objetiva do mundo. O que Goethe parece mostrar é que o conflito entre a contingente vontade do herói ou do dramaturgo e a implacável necessidade dos acontecimentos do destino ou históricos não é intransponível, porque não se dá como uma necessidade natural, mas como um cunho da rigidez que moldou pela moral religiosa uma consciência psicológica culpada nas formas trágicas alemãs como o barroco. Esta é:

A razão por que Goethe exige o estudo de Calderón não é assim, a da indulgência pela relatividade dos seus condicionamentos, mas a tomada de consciência do modo absoluto como se liberta deles. Este ponto de vista é decisivo para compreensão do drama de destino, porque o destino não é um acontecimento puramente natural, nem

122 tão pouco puramente histórico. Por detrás das vestes pagãs ou mitológicas, o destino se torna inteligível como categoria histórico-natural no espírito da teoria restauracionista da Contrarreforma. É força elementar da natureza no processo histórico, um processo que não é totalmente natureza porque o estado da Criação reflete ainda o sol da Graça – mas a superfície desse espelhamento é a lama da culpa adamítica” (BENJAMIN, ODTA, p.133; GS I, p.308)

Goethe tomava Calderón de la Barca como um aliado importante para desvencilhar a repercussão negativa da filosofia do trágico de origem alemã que acabou por influenciar o julgamento dos dramas considerados variações descendentes do barroco: os dramas políticos de pompa e circunstância (Haupt und Staatsaktionen), os dramas de destino (Schickalsdrama) como o de Calderón e o próprio teatro da Sturm und Drang167, no qual Benjamin percebe de modo surpreendente as potencialidades latentes do desenvolvimento da tragicidade histórica do barroco alemão. Enquanto a estética do trágico de Volkelt, em oposição a Calderón, ressaltava “que esse poeta escrevia sob a pressão de uma fé católica intransigente e de uma ideia de honra absurdamente exagerada” (BENJAMIN, ODTA, p.132; GS I p.307), lamentando, então, as limitações das representações do soberano e as aproximando das formas fechadas da estética e da moral cristã estrita do barroco alemão, cabia a Goethe mostrar que os dramas de destino, à sua maneira, conseguiram escapar do determinismo estético extremo, imposto pela rigidez do catolicismo, sem com isso abdicar do processo histórico em que estavam inseridos. “Pense-se em Shakespeare e Calderón! Eles estão aí, sem mácula, resistindo à mais alta instância do julgamento estético”, mostrando aos críticos “as imagens da nação e do tempo para os quais trabalharam, obtendo com isso, não apenas nossa compreensão, mas também os louros pela forma feliz que conseguiram adaptar-se ao tempo e ao lugar” (BENJAMIN, ODTA, p.p.132-133; GS I p.p.307-308). Com essas palavras, Goethe esboçava um primeiro distanciamento entre o condicionamento causal de acontecimentos, que o determinismo ético-naturalista cobrava aos dramas de destino, e o artifício, como recurso do artista. Enquanto Volkelt condenava as soluções do espanhol, que dissipavam “a impressão de destino quando nos deparamos com coincidências improváveis, situações artificiais, intrigas demasiado complicadas” (BENJAMIN, ODTA, p.134; GS I p.309), Goethe reverenciava essa representação do destino que se mostrava mais rebuscada aos vários domínios dos acontecimentos, sejam eles de natureza histórica, sejam eles de natureza astral. Por sua vez, a manipulação artificial do autor sobre o destino que marcava a dramaturgia de Calderón, e principalmente os elementos da astrologia, revelam não apenas uma importante diferença em relação ao barroco alemão, como também a pretensão de correção de seu fazer artístico.

167 Movimento pré-romântico alemão que tem em seus grandes destaques J.W. Goethe, J.G. Herder, F. Schiller.

Sturm und Drang, que pode ser traduzido por Tempestade e Ímpeto, tem seu nome atribuído a uma peça Maximilian Klinger, entretanto, atribui-se seu início a partir da publicação da coletânea Sobre a mais recente literatura alemã (Über die neuere Deutsche Literatur) organizada por Herder em 1767.

123 A criação artística do drama barroco alemão estava indissoluvelmente amarrada aos valores da religião, muito mais do que os dramas de destino católicos, o que impediu o desenvolvimento estético mais apurado da ideia da representação do destino. O teatro de Calderón, em seu teor factual, também era fortemente cristão, mas, influenciado pela visão teológica do catolicismo, desenvolve a mais perfeita forma do drama, “no qual os traços barrocos se manifestam mais ofuscante e mais marcada, mais feliz, neste país de cultura católica, resolve os conflitos em um estado destituído de Graça de certo modo à escala reduzida e lúdica de uma corte secularizada para qual se passou o poder salvífico” (BENJAMIN, ODTA, p.78; GS I p.260). Ao lado do condicionamento religioso, “Calderón confere pequenos fragmentos de vida e eficácia de um destino astral ou mágico” (BENJAMIN, ODTA, p.134; GS I p.309), um caráter pagão que a mera convicção cristã e a intenção teológica honesta dos dramaturgos alemães, ainda que não o suprimisse em suas várias fontes gregas, egípcias e bizantinas, tinham surpreendente dificuldade de conceber. “O drama trágico do barroco alemão, pelo contrário, caracteriza-se pela grande pobreza de ideias não cristãs. Por isso – quase somos tentados a dizer: apenas por essa razão – ele não conseguiu chegar ao drama de destino” (BENJAMIN, ODTA, p.134; GS I p.309), retratando-o, no curso dos astros, apenas como subordinação à natureza e não como manifestação divina transcendental que ilumina a natureza e agracia o soberano que a transcende. De tal maneira, podemos ver, ao lado do barroco alemão, que “nas peças do autor espanhol, o destino desenvolve-se como espírito elementar da história”, no qual apenas a majestade soberana, “só o rei, o grande restaurador da ordem perturbada da Criação, pode aplacá-la” (BENJAMIN, ODTA, p.134; GS I p.309). Mas também, e por outro lado, que haveria em seu drama de destino um componente astral, que em suas conjunções mais rebuscadas se afastava da natureza completamente desprovida de Graça, uma marca tipicamente alemã. Assim, a tentativa de escapar de uma escatologia e a rigidez apresentada pela moralidade cristã dos dramas barrocos alemães perdem o caráter lúdico e de irrealidade que dão graça à natureza, de maneira que também se evidencia nos seus dramaturgos, na sua própria pretensão de escrever a história, a condição psicológica dos modernos e os limites da transcendência de sua própria arte.

O drama trágico [barroco] não alcança a perfeição nos casos em que é mais canônico, mas naqueles em que passagens jocosas deixam ouvir o timbre da comédia. É por isso que Calderón e Shakespeare conseguiram criar dramas trágicos mais importantes que os do século XVII alemão, que nunca foram além da tipificação rígida da forma. ‘Pois o drama cômico e o trágico ganham muito e tornam-se verdadeiramente poéticos apenas quando entram numa delicada ligação simbólica’ diz Novalis, tocando numa verdade essencial, pelo menos, para o drama trágico [barroco] (BENJAMIN, ODTA, p.131)

124 Por mais trágico que fosse, Benjamin não deixa de ressaltar o caráter cômico que apresentam os dramas de Shakespeare e Calderón: no tom da comédia estava a possibilidade de