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A tragédia entre Apolo e Dionísio: o esteticismo contra o historicismo

preconceito contra o drama barroco alemão

2.3. A tragédia entre Apolo e Dionísio: o esteticismo contra o historicismo

No caminhar evolutivo dessa história cultural e seu processo de formação, a interpretação filosófica do trágico ganharia mais um capítulo no final do século XIX. Da mesma maneira que acompanhamos a normatização classicista da tragédia dar vez à filosofia do trágico, vemos agora a concepção iluminista e especulativa desta filosofia moderna do trágico, que forneceu novos contornos sistemáticos e morais à tragédia, dar lugar às apreensões sobre o trágico que visavam a substância estética e histórica do próprio trágico. Como toda filosofia tem época datada, a filosofia do trágico também testemunhou sua derrocada no período de transição para o século de Benjamin. Na representação do trágico enquanto ideia, pelos compêndios de uma tradição epigonal da tragédia, foi percebida uma perda do valor substancial do trágico enquanto objeto da obra de arte, na medida em que, em busca de autonomia, uma racionalização formal extrema passou a interpretar o trágico como uma ordem ética do mundo e como reconciliação com uma natureza de que a humanidade se afastara. Por sua vez, do ponto de vista filosófico, ao desenvolver como conceito geral do trágico uma espécie de moralidade, se poderia perder o efeito de sua tragicidade puramente estética, ao mesmo tempo em que, do ponto de vista normativo, se poderia correr o risco de uma naturalização da tragédia que a destituía de historicidade. Foi em resposta ao problema ético-filosófico do trágico que apareceram as perspectivas histórico-filosóficas, ao modo como Benjamin buscou apresentar em Origem do drama

barroco alemão, e, um pouco antes, como Friedrich Nietzsche busco retratar em O Nascimento da Tragédia (Die Geburt der Tragödie, 1872)207.

A proximidade entre os estudos já indicada em seus títulos não era mero acaso. Pelo nascimento ou pela origem, os dois autores buscavam dar à luz o mesmo problema da filosofia da tragédia com certo interesse na história e seu contexto. Enquanto Nietzsche, mais voltado a uma metafísica do artista e seu renascimento na estética alemã, tenta constituir filosoficamente a origem da tragédia ática e os motivos históricos de sua decadência para, então, propor seu renascimento na música de Richard Wagner, Benjamin, mais voltado para uma fenomenologia da história, realizava uma história da filosofia da tragédia mostrando a incompreensão da tradição clássica alemã da tragicidade do drama barroco que, a seu ver, constituía um novo gênero. Por mais que interpretassem a história de maneira diferente, como veremos, não podemos ignorar a presença de Nietzsche na empreitada de Benjamin. É certo que Nietzsche tenha influenciado Benjamin em seu estudo. Em um texto de juventude, Diálogos sobre a religiosidade do nosso tempo (Dialog über die Religiosität der Gegenwart, 1912), nosso autor coloca Nietzsche, ao lado de Leon Tolstói e August Strindberg,

167 como profeta do tempo presente (Cf. BENJAMIN, DRT, p.50; GS II p.34)208. No início do século,

havia entre os estudantes o que se denominou de Nietzsche-Kult, um fascínio em torno do autor niilista – que talvez exista até hoje entre os jovens – que influenciou intelectuais de diversos matizes de pensamento: do conservadorismo do Círculo de Stefan George, que o tomavam como um mito, ao fascínio distante de Walter Benjamin pelo Nascimento da tragédia. Nietzsche não passa despercebido no hermético estudo de Benjamin, que colocou todo seu respeito ao autor ao analisá- lo de maneira crítica e não mística, apontando as distâncias das duas filosofias.

Da mesma maneira que Benjamin, a empreitada trágica de Nietzsche pode ser compreendida como resposta ao debate estético que se desenvolvia desde o classicismo de Winckelmann nas universidades alemãs. A tragédia já não era um tema propriamente original, mas, fundamentalmente, um tema a ser passado por qualquer erudito que almejasse inserção e reconhecimento nos círculos acadêmicos da época. O jovem Nietzsche não se privou de tratar com interesse particular da temática. As preocupações dos temas gregos se fizeram presentes em seu pensamento: as conferências sobre O drama musical grego (Das griechischen Musikdrama, 1870),

Sócrates e a tragédia (Sokrates und die griechischen Tragödie, 1871) e o ensaio A visão dionisíaca do mundo

(Die dionysische Weltanschauung, 1870) já davam o tom único e polêmico com que o filósofo se colocava diante do tema e que se seguiria no impacto de seu primeiro livro. Nietzsche já tinha percebido a decadência da filosofia do trágico do ponto de vista alemão, por isso que, além de buscar uma especulação filosófica de como a tragédia nasceu entre os gregos, também são referências centrais no seu estudo uma investigação sobre o assassinato da tragédia ática por uma tradição racionalista e a pretensão de seu renascimento na música de Richard Wagner. Por conseguinte, a publicação de Nascimento da tragédia, como a obra de Benjamin, também não deixou de ser acompanhada por uma rejeição feroz dos “mandarins alemães”, principalmente de Ulrich von Wilamowitz-Möllendorff209 que no irônico ensaio Filologia do futuro210, dividido em duas partes, acusa o filósofo de não se apresentar “como um pesquisador científico: sua sabedoria, conseguida por via da intuição, é exposta ora no estilo de um pregador religioso, ora em um

raisonnement que só tem parentesco com os jornalistas, escravos da folha do dia” (WILAMOWITZ-

208 BENJAMIN, Walter. Diálogos sobre a religiosidade do nosso tempo. In. O capitalismo como religião e outros textos.

Op. Cit. 2014; Op. Cit. II Dialog über die Religiosität der Gegenwart. p.p.16-34.

209 Colega de estudos filológicos de Nietzsche em Bonn, Wilamowitz-Möllendorff tinha conquistado grande

prestígio no meio acadêmico alemão ao publicar Introdução à tragédia ática, fundado nos preceitos da tradição de estudos Clássicos. Em muitos pontos, Benjamin concorda com Wilamowitz-Möllendorff, tendo-o como referência importante no livro do Barroco e também contra alguns argumentos de Nietzsche.

210 A denominação do ensaio Filologia do Futuro não foi dada por acaso por Wilamowitz-Möllendorff, ela era uma

paródia de Música do futuro que por sua vez já era uma paródia de A obra de arte do futuro, um livro de Richard Wagner de 1850, forte influência do pensamento nietzschiano. (Cf. MACHADO, M. Nietzsche e a polêmica sobre O nascimento da tragédia. Rio de Janeiro: Zahar, 2005, p.22).

168 MÖLLENDORFF, 2005, p.56)211. De modo sarcástico, assumindo o ‘insulto de homem socrático’,

Wilamowitz-Möllendorff denunciava, na apreensão de Nietzsche sobre a tragédia, a pouca proximidade com os métodos científicos e históricos capazes de compreender seu desenvolvimento como um fenômeno inscrito nas condições de sua época. A seu ver, em uma concepção puramente intuitiva guiada pela mística de um deus – a saber, Dionísio –, o jovem Nietzsche se embriagava de modo a observar de maneira torta as contribuições helenistas para a ciência da Antiguidade: “Evidentemente, Aristóteles e Lessing não entenderam o drama. O senhor Nietzsche entendeu” (WILAMOWITZ-MÖLLENDORFF, 2005, p.57). Na áspera crítica de Wilamowitz-Möllendorff, não havia uma má compreensão do filósofo, mas uma tomada de posição perante as consequências que Nietzsche, propositalmente, quisera sustentar em seu texto: a crítica do racionalismo científico em nome de uma vontade na arte e na estética e, por conseguinte, uma relação de hierarquia entre a filosofia e a filologia, representada como ciência (MACHADO, 2005, p.34). Desse modo, colocando-se ao lado “da orgulhosa ciência de nossos helenistas clássicos” (WILAMOWITZ-MÖLLENDORFF, 2005, p.57), Wilamowitz-Möllendorff percebeu, na apresentação pouco tradicional da obra nietzschiana, a instrumentalização da filologia para exposição dos pensamentos filosóficos, o que valorizava mais a poética e a estética do trágico do que seu rigor gramatical, próprios da ciência filológica da época.

Por conseguinte, fiel às regras precisas da filologia, a Wilamowitz-Möllendorff passou despercebida a novidade que Nietzsche trazia ao pensamento trágico. Nietzsche não rompia definitivamente com a tradição helenista, pelo contrário, buscava salvá-la. Em Nascimento da

tragédia, ele reconhece o valor que deveria ser “atribuído à nobilíssima luta de Goethe, Schiller e

Winckelmann pela cultura”, mas também salienta que “desde aquele tempo e depois das influências imediatas daquela luta, tornou-se cada vez mais fraca, de maneira incompreensível, a aspiração de chegar por uma mesma via à cultura dos gregos” (NIETZSCHE, 2007, §20, p.118). Nietzsche diagnostica que, diante do enfraquecimento do projeto de imitação dos clássicos, iniciado no Classicismo como modelo de formação, cabe uma resposta, que não é o completo abandono, mas sim uma mudança de rumo. O caminho traçado por Wincklemann e Lessing, contornado por Goethe e Schiller, ganha uma alternativa com a música de Richard Wagner e, sobretudo, com a filosofia de Arthur Schopenhauer. Nietzsche apropria-se do sistema metafísico de Schopenhauer e retira conclusões próprias, em direção contrária a um certo pessimismo que se estabelece com relação à vontade, confeccionando o seu próprio modelo filosófico sobre a tragédia.

De partida, em vez de apoiar o estético da arte em um único princípio, ordenador e universal, como os helenistas clássicos, a estética nietzschiana fundamenta-se na relação de dois

211 WILAMOWITZ-MÖLLENDORFF, U. Filologia do futuro. In. MACHADO, M. Nietzsche e a polêmica sobre O

169 pilares: ao lado da serenidade de Apolo teremos a juventude de Dionísio. Para Nietzsche, “o contínuo desenvolvimento da arte está ligado à duplicidade do apolíneo e dionisíaco, da mesma maneira como a procriação depende da dualidade dos sexos, em que a luta é incessante e onde intervêm periódicas reconciliações” (NIETZSCHE, 2007, §1, p.24). Logo no parágrafo inaugural do Nascimento da tragédia, o filósofo se apropria do par conceitual schopenhaueriano de mundo da representação e mundo da vontade212 sob as vestes de duas divindades gregas, Apolo e Dionísio,

que estão em constante luta e vão dar à luz a tragédia ática. Como mundo da representação, a arte de Apolo é marcada pela figuração, pela capacidade figurativa da imaginação humana, pela bela aparência na sua produção onírica de imagens, tal como um sonho, e pela serenidade tranquilizadora da contemplação de sua arte. Nietzsche o descreve da seguinte maneira:

Apolo, na qualidade de deus dos poderes configuradores, é ao mesmo tempo deus divinatório. Ele, segundo raiz do nome o ‘resplandente’, a divindade da luz, reina também sobre a bela aparência do mundo interior da fantasia. A verdade superior, a perfeição desses estados, na contraposição com a realidade cotidiana tão lacunarmente inteligível, seguida da profunda consciência da natureza reparadora e sanadora do sono e do sonho, é simultaneamente o análogo simbólico da aptidão divinatória e mesmo das artes, mercê das quais a vida se torna possível e digna de ser vivida” (NIETZSCHE, 2007 §1, p.26)

212 De maneira bem resumida, em O mundo como vontade e representação (Die Welt als Wille und Vorstellung, 1865),

Schopenhauer retoma a distinção kantiana entre fenômeno e númeno em seu sistema metafísico, descobrindo na representação o conceito de vontade que se lhe opõe: “num primeiro ponto de vista, com efeito, este mundo apenas existe absolutamente como representação; noutro ponto de vista ele apenas existe como vontade” (SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação. São Paulo: Contraponto, 2001, Livro I, §1, p.11). Como representação o mundo é como aparece ao sujeito, com toda a sua diversidade e multiplicidade de elementos. Essa variedade de elementos aparece para o sujeito articulada e orientada pelas noções de espaço e tempo, tal como a intuição transcendental kantiana. Contudo, essa organização articulada se daria por um princípio de individuação (principium individuationis), segundo o qual, na junção do tempo com o espaço, vemos como os fenômenos se individualizam, e por um princípio de razão suficiente (principum rationis suficientis), entendido em quatro raízes – o devir, a causalidade, o ser e o agir – por meio do qual compreendemos como os fenômenos aparecem explicáveis em relação ao espaço-tempo, suas transformações, suas causas e efeitos, suas razões de ser e de se manifestar. Quando temos o principum rationis suficientis como ordenador da representação no tempo e no espaço, não temos acesso direto ao mundo empírico, de modo que não atingimos a essência do mundo. Baseado em um processo que não chega a tocar na verdade essencial do ser, mas sempre será a aparência de um objeto para um sujeito que é indissolúvel, o mundo enquanto representação aparece como uma ilusão, um vazio, um sonho em que não se pode encontrar mais o real. Todavia, Schopenhauer vai caracterizar uma realidade ainda mais íntima do que a representação, que chamará de vontade. O mundo da vontade é aquele que vai “além de representação, ou seja, como coisa em si” (SCHOPENHAUER, Arthur. Metafísica do Belo. São Paulo: Unesp, 2003, p.29), aquilo que é encontrado imediatamente enquanto ideia. Schopenhauer faz uma diferenciação entre o fenômeno, produto mediado da representação que individualiza a multiplicidade das coisas e a ideia, tomada com um caráter mais geral, ao modo platônico, com o arquétipo das coisas particulares, uma “objetividade imediata da coisa si” ou “objetividade adequada da vontade” que, de tal modo, possuem “realidade propriamente dita”. À primeira vista podemos, orientados pela razão, perceber a vontade enquanto fenômeno, objetificada enquanto representação, mas a vontade também se apresenta para nós enquanto essência ou coisa em si, quando longe da representação do espaço e do tempo ela aparece internamente para nós em nossa vida afetiva, como um impulso cego e sem razão, como força que primordial da natureza, como um desejo que anima o homem para a vida. Por constituir-se como unidade primitiva, a vontade estaria relacionada objetivamente de maneira imediata ao conceito de idéia e mediata com o mundo dos fenômenos que apesar da diversidade da individuação e da razão, seriam representações da expressão da vontade. Essa vontade como expressão primordial da existência estaria relacionada ao corpo, no modo de sentir a dor primordial ou o prazer tranquilizante, a decepção abissal ou o desejo insaciável. De tal maneira é a arte, ao tocar nossa sensibilidade, ao expressar nossos desejos mais fundos, ao suspender o princípio de razão que ganharia um estatuto privilegiado no âmbito da representação e do conhecimento.

170 Com um véu de Maya213, Apolo reina sobre a experiência onírica da arte, sobre a aparência

alegre e amistosa que ela nos proporciona. Luminoso, a arte apolínea faz-se para ser contemplada em suas agradáveis imagens. Nisto está seu caráter divinatório, a experiência de sonho de sua arte contemplativa é contraposta à triste e sombria realidade que desfaz sua fugaz sensação de aparência. Aquele com aptidão filosófica sabe que é um sonho, mas prefere continuar a sonhar214. Apolo

vincula, ao mesmo tempo, a alegria da bela aparência com uma instância ordenadora do caos, dos impulsos, da dor selvagem da existência, de modo que, como um barqueiro confia em sua frágil embarcação “em meio ao mar enfurecido que, ilimitado em todos os quadrantes, ergue e afunda vagalhões bramantes (...), da mesma maneira, em meio a um mundo de tormentos, o homem individual permanece calmamente sentado, apoiado e confiante no principium individuationis” (NIETZSCHE, 2007, §1, p.27) como expressão sublime e tranquilizante do apolíneo.

Por sua vez, Dionísio poderia aparecer do mesmo movimento, caracterizado pelo estado mais puro de vontade que se apodera do ser humano quando ele rompe com o princípio de individuação. Quando o homem sabe que está sonhando, mas prefere sonhar, sob a representação apolínea da realidade temos na aparência do sonho a aparência de uma outra realidade para a qual não queremos acordar. Essa realidade aterrorizante da existência, da vontade mais íntima, é tranquilizada por Apolo pelo princípio de individuação como aparência, de modo que nosso sonho nada mais é que a aparência de uma aparência. Contudo, “se a esse terror acrescentarmos o delicioso êxtase que, à ruptura do principium individuationis, ascende do fundo mais íntimo do homem, sim, da natureza, ser-nos-á dado lançar um olhar à essência do dionisíaco” (NIETZSCHE, 2007, §1, p.27). O dionisíaco seria caracterizado, então, por um lugar de embriaguez pelo qual a subjetividade cai no próprio esquecimento se impregnando de alegria, vida e em unidade com a natureza.

Sob a magia do dionisíaco torna a selar-se não apenas o laço de pessoa a pessoa, mas também a natureza alheada, inamistosa ou subjugada volta a celebrar a festa de reconciliação com seu filho perdido, o homem. (...) Se se transmuta em pintura o

213 No véu de Maya, Schopenhauer retoma a filosofia indiana como metáfora para opor à noção de representação o

conceito de vontade: “E Maya é o véu da ilusão, que, ao cobrir os olhos dos mortais, lhe faz ver o mundo que não pode dizer se existe ou não, um mundo que se assemelha ao sonho, à radiação do sol sobre a areia, onde, de longe, o viajante acredita ver uma toalha de água, ou ainda a uma corda atirada por terra, que ele toma como uma serpente” (SCHOPENHAUER, 2001, I, §3 p.14).

214 No apolíneo, Nietzsche vai relacionar o homem de aptidão filosófica com a ingenuidade de Homero. Para Nietzsche, diante dos horrores da Moira, os gregos precisaram criar os seus deuses como uma realização onírica e apolínea para poder viver. “Quão indivisivelmente sublime é por isso Homero, o qual, como indivíduo, está para a cultura apolínea do povo como o artista individual do sonho está para aptidão onírica do povo e da natureza geral. A ingenuidade homérica só se compreende como triunfo completo da ilusão apolínea (...). Nos gregos a vontade queria, na transfiguração do gênio e do mundo artístico, contemplar-se a si mesma: para glorificar-se, suas criaturas precisavam sentir-se dignas de glorificação, precisavam se rever numa esfera superior, sem que o mundo perfeito da introvisão atuasse como imperativo ou como censura. Tal é a esfera da beleza, em que eles viam as suas imagens especulares, os Olímpicos. Com esse espelhamento da beleza, a vontade helênica lutou contra o talento, correlato do artístico, em prol de sofrer e da sabedoria do sofrer: e como monumento de sua vitória ergueu-se Homero, o artista ingênuo” (NIEZSCHE, 2007, §3, p.35), tomado aqui à maneira de Schiller em seu ensaio Poesia ingênua e sentimental.

171 jubiloso hino beethoveniano à “Alegria” e se não se refreia a força da imaginação, quando milhões de seres frementes se espojam em pó, então é possível acercar-se do dionisíaco. Agora o escravo é livre, agora se rompem todas as rígidas e hostis delimitações que a necessidade, e arbitrariedade ou modo imprudente estabelecem entre os homens. Agora, graças ao evangelho da harmonia universal, cada qual se sente não só unificado, conciliado, fundido com seu próximo, mas um só, como se o véu de Maia tivesse sido rasgado e, reduzido a tiras, esvoaçasse diante do misterioso Uno-primordial. (...) O homem não é mais artista, tornou-se obra de arte: a força artística de toda natureza, para deliciosa satisfação do Uno-primordial, revela-se aqui o frêmito da embriaguez” (NIETZSCHE, 2007, §1, p.28)

Dionísio é o deus do caos, da deformidade, do fluxo da vida. No estado dionisíaco, o homem, como que sob efeito de bebidas narcóticas, deixa-se tomar por suas mais íntimas emoções, rompendo as suas barreiras individuais e subjetivas para se encontrar em comunhão com seus iguais e com a natureza. Entorpecido, o homem desfigura o princípio de individuação para encontrar o que nele há de mais primitivo e originário, o querer e a vontade como expressão de sua natureza, esta vontade originária é o que chamamos de Uno-primordial. Por isso, o homem não é mais artista, mas a própria obra de arte: como expressão pura e ilimitada da vontade, a arte dionisíaca deixa de lado a personalidade do gênio, do artista individual para fundi-lo no frenesi da natureza. Na sua obra, tomada de emoção, pulsa o querer da vontade primordial da natureza que contagia a todos de prazer e alegria, reconciliando o homem pródigo com o mundo natural. O mundo dionisíaco não poderia se manifestar pela contemplação tranquilizadora da arte figurativa, mas sim pela força do impulso abstrato que toma conta de nós com a música. Com a música, a arte, definitivamente, ultrapassa a representação para mostrar a vontade; o efetivo, para mostrar o fundamento do ser215.

A seus dois deuses da arte, Apolo e Dionísio, vincula-se a nossa cognição de que no mundo helênico existe uma enorme contraposição, quanto a origens e objetivos, entre a arte do figurador plástico, a apolínea, e a arte não figurada da música, a de Dionísio: ambos os impulsos tão diversos caminham lado a lado, na maioria das vezes em discórdia aberta e incitando-se mutuamente as produções sempre novas para se perpetuar nelas a luta daquela contraposição sobre o qual a palavra comum