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A translação da tragédia para filosofia: o símbolo romântico e os fragmentos da crítica

preconceito contra o drama barroco alemão

1.2 A translação da tragédia para filosofia: o símbolo romântico e os fragmentos da crítica

Um espectro ronda a Europa, o espectro da imitação. Na paródia de Karl Marx88, Phillipe

Lacoue-Labarthe89 apontava o sentimento pelo qual os modernos miravam os antigos no século das

luzes. Na Alemanha, o signo desta Querelle correspondeu à figura de Winckelmann. Como vimos, o milagre de Winckelmann foi ter descoberto a Grécia para os alemães. Sentindo os gregos como um grego (Cf. SCHLEGEL, 1997, At. 271, p.95), o autor parecia deter “a chave para o entendimento do espírito grego em sua natureza, ela mesma uma relíquia da antiguidade clássica aberta por acaso à nossa atmosfera moderna” (PATER, 2014, p.207)90. A veia grecofílica aberta pelo helenista foi

assimilada por estetas, filósofos e poetas das épocas subsequentes, fazendo da exaltação do antigo e seu ideal de beleza o verdadeiro modelo para a constituição de uma arte genuinamente alemã, tal como para a formação da identidade cultural do país. Por mais que nem sempre tenha sido aceita sem críticas ou objeções91, “a Grécia de Winckelmann foi o fator de desenvolvimento da poesia

alemã ao longo da segunda metade do século XVIII e todo o século XIX” (BUTLER, 1935, p.6) e pavimentou o helenismo no pensamento germanista. A sua zona de influência permaneceu intocada por diversos períodos da história da literatura alemã, sendo um cânone celebrado pelo Classicismo de Weimar de J. W. Goethe e F. Schiller e também pelo idealismo especulativo de românticos, com visões tão distintas, como os irmãos August e Friedrich Schlegel e F.W.J. Schelling92. A solidez winckelmanniana foi tamanha que mesmo os períodos da literatura alemã que

87 BENJAMIN, Walter. Obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. São Paulo: LP&M, 2014; Op. Cit. VII, Das

Kunstwerk im Zeitalter seiner technischen Reproduzierbarkeit, p.p 431-508.

88 Cf. MARX, K Manifesto do Partido Comunista, Boitempo: São Paulo, 2011, p.37.

89 Desta maneira Lacoue-Labarthe iniciou sua apresentação “Hölderlin e os gregos” no colóquio “I Greci: nostri

contemporani?”; parte da 12ª Rassegna internazionali dei teatri stabili. (Cf. LACOUE-LABARTHE, P, A imitação dos modernos. São

Paulo: Paz e Terra, 2000, p.211.

90 Cf. PATER, Walter. O Renascimento: estudos sobre arte e poesia. São Paulo, Iluminuras, 2014.

91 Eliza Butler descreve melhor as críticas e distanciamentos de Lessing para com Winckelmann em relação a poesia e

a tragédia, que já indicamos, em Laocoon Again (Cf. BUTLER, 1935, p.p.56-70).

92 Sobre a importância de Winckelmann, Goethe escreve um ensaio chamado Winckelmann e seu século (Winckelmann und

65 poderiam ser considerados ‘anticlássicos’ em suas aspirações foram o desabrochar daquilo que foi considerado o Renascimento alemão; o que era para ser uma reação ao clássico, nas suas influências gregas, tornou-se o auge do Classicismo. Não por acaso, Eliza Butler aponta uma tirania dos gregos sobre os alemães, inaugurada pela recepção de Winckelmann: “A Grécia tinha modificado profundamente todas as tendências da civilização moderna, impondo seu pensamento, os seus padrões, suas formas literárias, as suas imagens, as suas visões e seus sonhos, onde quer que ela estivesse” (BUTLER, 1935, p.6). O ocidente foi moldado pelo critério dos helenos, mas, se “os gregos foram tiranos, os alemães foram os seus servos predestinados” (BUTLER, 1935, p.6). Ao contrário do resto do mundo, que também bebeu nas fontes do Peloponeso, a obsessão alemã pela imitação e assimilação da cultura grega deu maior intensidade ao triunfo do pensamento grego sobre sua própria cultura, tornando suprema essa tirania espiritual.

Contudo, no mais tardar do século, na Alemanha “começa-se a falar em aurora”93

(LACOUE-LABARTHE, 2000, p.212). Os ruídos do Iluminismo eram poesia aos ouvidos de jovens alemães ansiosos pelos novos tempos da modernidade: “A Revolução Francesa, a doutrina da ciência de Fichte e o Meister de Goethe são as maiores tendências da época. Alguém que se choca com essa combinação (...) ainda não se alçou ao alto e amplo ponto de vista da história da humanidade” (SCHLEGEL, 1997, At.216, p.83). Um ânimo revolucionário que se contentou, como todas as transformações daquele chão, com uma reforma no espírito, o que não diminui sua importância94. Havia uma resistência e, mesmo que ela não tenha conseguido escapar das

posturas clássicas erigidas sobre o pensamento alemão a partir de Winckelmann95, crendo estar se tornar o ‘Winckelmann da poesia’ em seus dois ensaios de juventude, Sobre o valor do estudo dos gregos e romanos (Vom Wert des Studiums der Griechen und Römer, 1796) e Sobre o estudo da poesia grega (Über das Studium der griechischen Poesie, 1795) (Cf. WELLEK, Rene. História da crítica moderna. São Paulo: Herder, 1967, p.6). Já Schelling o destaca no seu discurso Sobre a relação entre as artes plásticas e a natureza (Über das Verhältnis der bildenden Künste zu der Natur, 1807) no qual ressalta a relação entre beleza ideal e a natureza estabelecida pelo neoclássico. A passagem de Winckelmann a Schelling é precisamente colocada no artigo Winckelmann e Schelling: da alegoria ao símbolo de Márcio Suzuki. (Cf. SUZUKI, 2014 p.p. 26-38).

93 Lacoue-Labarthe lembra do termo Morgenrot: “A velha palavra de Jakob Böhme terá grande circulação, em todo

caso, ali onde as coisas, nesses dez anos de fim de século serão decididas (...) Ou seja, sob o controle de Weimar, em Jena” (LACOUE-LABARTHE, 2000, p.212), apontando seu uso na influência de Schiller sobre os primeiros românticos.

94 Não podemos desprezar a esperança e admiração que a Revolução Francesa desempenhou nos autores do

idealismo alemão, mas, como vimos, foram os impactos da Reforma que verdadeiramente moldaram o espírito alemão. Com o desencadear da violência revolucionária, decerto que o espírito reformista se tornou preferível ao revolucionário em alguns autores. G.W. Hegel é o exemplo mais paradigmático. Ao traçar as duas maneiras de tomada da consciência do espírito na política, ou temos o despertar do povo ou um despertar dos governantes para as mudanças necessária. A primeira, revolucionária, é tão imediata quanto o corte da guilhotina, a segunda é mais lenta, mas preferível porque não traz cortes e rupturas sociais. A revolução foi o caminho traçado pelos franceses, a reforma pelos prussianos. Na época, diante dos horrores da Revolução, Hegel testemunhava as reformas de cunho próprio que a burocracia alemã adotou após os acontecimentos na França em 1789. (HEGEL, On English Reform Bills. In. Political writings. New York: Cambrigde Press University, 2009, p.321, nota de rodapé 20).

95 No artigo de abertura de seu Fragmentos sobre Literatura e Filologia (Fragmente zur Literatur. Zur Philologie, 1797-1803) F.

Schlegel reverencia o primado de Winckemann como moderno: “A diferença entre o clássico e o progressivo é de origem histórica, por isso ela está ausente na maioria dos filólogos. Também nesse aspecto Winckelmann começa uma época inteiramente nova. [Meu mestre] Ele viu a diferença imensurável, a natureza da própria Antiguidade. Não teve seguidores” (SCHELGEL, Friedrich. Fragmentos sobre poesia e literatura; Conversa sobre poesia. São Paulo: Unesp, 2016 p.9).

66 em dia com a história, os seus seguidores deram margem para o desenvolvimento de uma filosofia própria aos alemães, que, ao mesmo tempo, sob os olhares atentos de Benjamin, curiosamente, também deu uma sobrevida ao drama barroco alemão, como veremos mais à frente. Quando tomamos a questão do trágico, vemos que o paragone winckelmanniano, ainda que não tenha se preocupado de maneira adequada com a compreensão da tragédia, permitiu o desenvolvimento de uma teoria moderna sobre ela. A obediência firme ao princípio de imitação dos antigos manteve a poética de Aristóteles como uma régua inquestionável para justificação da tragédia e, também, condenação do próprio barroco alemão enquanto forma trágica. Mas, na mesma proporção, também pudemos observar os traços da modernidade que circundavam a sua interpretação sobre a alegoria – antecipando a maneira simbólica como a arte foi compreendida pelo romantismo –, como também o caráter limitado e fechado de sua mitologia da arte, que, de certa forma, se relacionava com a liberdade e a autonomia da obra de arte, desenvolvida posteriormente nas filosofias idealistas especulativas. Ainda que timidamente, a modernidade já estava circunscrita na forma de pensar de Winckelmann96 e foi o seu reconhecimento e o

desenvolvimento pela geração tutelada por ele que deu contornos próprios ao problema do trágico, proclamando, se não independência, uma transcendência alemã à colonização grega.

Já antecipamos as razões histórico-filosóficas que inspiraram essa transformação. No entanto, para aqueles alemães, havia uma outra revolução que operava a síntese entre todas as referências da modernidade: a revolução copernicana de Immanuel Kant. A vanguarda romântica que emergia nos círculos da Universidade de Jena97 foram alimentadas pelo pós-kantismo de Johann G. Fichte98, vendo no despertar do sono dogmático da filosofia kantiana, que, contra a

monarquia dogmática e anarquia cética, declarou a autonomia da razão e as fronteiras do

96 Em seu Fragmentos sobre Filologia II (Zur Philologie II) vemos a modernidade da Antiguidade de Winckelmann:

“Winckelmann é o histórico da doutrina da Antiguidade. Tudo começa com os modernos, e ao que parece, com a história. Minha intenção vai daqui até uma mitologia da doutrina da Antiguidade (SCHLEGEL, 2016, 224, p.85)”.

97 A cidade de Jena aparece como o berço da primeira geração de críticos e poetas românticos alemães. Ali, mais ao

norte, se encontrava um ambiente de paz, longe dos conflitos iminentes da Prússia contra a França e, ao mesmo tempo, havia um ambiente acadêmico e universitário com grande liberdade, no qual aparecem G.W. Hegel, F.Schiller, F.Schelling e J.G.Fichte. Influenciados por ideias desses filósofos e pela modernidade iluminista que brotava da efervescência universitária, os irmãos Friedrich e August Schlegel e companheiro Friedrich Novalis encabeçaram o projeto da revista Athenäum marcando o surgimento do romantismo.

98 Em 1794, Fichte foi designado a aceitar uma posição em Kiel como sucessor de Karl Leonhard Reinhold, tornando-se

um dos nomes mais proeminente do pós-kantismo na Universidade de Jena. (PINKARD, Terry. German Philosophy 1760- 1860: The legacy of Idealism. Cambridge: Cambridge University Press, 2008 p.107) Pode-se considerar a formação iluminista dos românticos a partir do contato com ele, “através de Schlegel, Fichte se torna decisivo para toda evolução do romantismo, entusiasmado-se mesmo o filósofo, ao menos em um momento inicial, com uma escola que fecundava o seu pensamento e absorvia as preocupações da melhor parte da jovem elite intelectual da época. Encontraram em Fichte um romantismo pré-figurado, uma antecipação que vinha a definir as suas próprias aspirações” (BORNHEIM, Gerd. Aspectos filosóficos do Romantismo. Porto Alegre: Secretária de Educação e Cultura, Divisão de Cultura, Instituto Estadual do Livro, 1956, pp.34,35), De tal maneira, Gerd Bornheim aponta que “Fichte pode ser considerado um dos fundadores do movimento, embora não se tenha proposto a fundar a escola romântica. (BORNHEIN, 1956 p.34).

67 conhecimento99, o próprio despertar do gênio frente à imitação proclamar a autonomia da obra

de arte. Na filosofia crítica de Kant, a autonomia e a liberdade nasciam de maneira negativa pela capacidade da razão de inferir limite ao seu próprio âmbito e escopo, e não da vontade infinita e ilimitada do pensamento sobre os objetos do conhecimento; era na aceitação das leis dadas pela própria razão que estava a garantia da ciência, da moral e do belo. Na estética, o conceito de crítica herdado de Kant, fundado pela reflexão, permitiu que o juízo estético abandonasse a mera questão do gosto, para fundar a “teoria do Belo e da Arte, a tentativa de constituição de um grande lirismo filosófico, o remanejamento da poética e dos modos e assim, a sistematização da poética dos gêneros, a problemática em geral da obra (Absoluta) ou do Órganon” (LACOUE- LABARTHE, 2000, p.187), em outras palavras, já não se podia falar de uma obra de arte sem sua reflexão. Manifesta “no autoengendramento da obra como Sujeito” (LACOUE-LABARTHE, 2000, p.187) desenvolvia-se uma doutrina orgânica da arte como ciência do absoluto que reverberou, de maneira romântica, no casamento entre poesia e filosofia. Assim, no estabelecer dos limites sobre si própria, a relação filosófica com a literatura permitiu entender a poética com autonomia em sua própria teoria e autoconcepção, o que marcava uma postura importante de superação do mimetismo dos antigos e que permitia destacar com propriedade o moderno.

Nos diversos significados e pontos de vista filosóficos que animaram o idealismo pós- kantiano, basicamente foi essa concepção de autonomia que permeou o século, “desde os ensaios de estética de Schiller e o Athenäeum aos cursos de Schelling e os propósitos de Goethe” (LACOUE- LABARTHE, 2000, p.187). Essa ideia de autonomia se faz presente em boa parte dos escritos românticos, apresentando-se como a estrutura comum programática do romantismo em torno da ilustração kantiana. Ao emprestá-la de Kant, os românticos acreditavam complementar a filosofia transcendental encontrando o absoluto no âmbito da arte e da estética a partir do que chamaram intuição intelectual. Segundo tal ideia, era na manifestação sensível da arte que poderíamos encontrar a identidade entre sujeito e objeto, unidade entre natureza e espírito, contingência e liberdade, condicionado e incondicionado, finito e infinito, e todas as variações presentes na série de oposições derivadas da dialética transcendental. A intuição inteligível também era um conceito retirado de Kant e desenvolvia um importante papel na dedução transcendental do conhecimento na medida em que aparecia, ao lado do entendimento, como uma das fontes do conhecimento. “Intuição e conceitos constituem, pois, os elementos de todos os nossos conhecimentos, de tal modo nem conceitos sem intuição que de qualquer modo lhe corresponda, nem intuição sem conceitos pode dar um conhecimento (...) pensamentos sem conteúdos são vazios; intuição sem conceitos são cegas” (KANT, 2010, A51, B75, p.88). Enquanto os conceitos estavam no pensar sobre

68 a representação, relacionada com a sensibilidade, para Kant, a intuição apresentava um modo imediato da representação do objeto, que podia se dar de modo empírico, por meio das sensações, ou de maneira pura, quando diante da presença do objeto percebemos as formas puras da sensibilidade que precedem sua constituição empírica, o tempo e o espaço (KANT, 2010, A22, B36, p.63). Essa apreensão pura da sensibilidade, para se tornar conhecimento, tinha necessidade de passar pela mediação da imaginação até o entendimento que o representaria como conceito. Com a palavra final sobre o conhecimento, na filosofia transcendental, estava na universalidade do entendimento do sujeito e não na intuição do objeto a instância a priori do absoluto. Quando sustenta na arte a possibilidade do absoluto, o romantismo inverte o panorama kantiano, buscando demonstrar não no entendimento, mas na intuição intelectual, o lugar do absoluto do conhecimento; uma faculdade que, mesmo sem a mediação geral do entendimento, de maneira autodeterminada e autônoma, também produz um objeto segundo legislação própria, mais condizente com a liberdade implicada na ideia de absoluto100. Como expressão da sensibilidade e da

liberdade, na estética, mais do que na moral e na teoria do conhecimento, prevalecia a intuição intelectual pela qual o absoluto se revela. Dessa maneira, a experiência proporcionada pela sensibilidade intelectual da arte como condição de possibilidade do absoluto se constituiu como um ponto pacífico do movimento romântico, mesmo que, em constante mutação, a organicidade do pensamento romântico estivesse distante de uma homogeneidade101.

As duas experiências de pensamento que delineiam melhor o impacto dessas mudanças na estética em relação à tragédia e ao drama barroco alemão são: o simbólico, presente no sistemático

100Em Kant, a intuição era fundamental como requisito para o conhecimento, mas não era um tipo de conhecimento.

Como uma faculdade do sujeito, ela era um dos elementos para o processo de conhecimento que dependia da mediação do entendimento como forma do conhecer. Já em Schelling, a intuição intelectual se torna conhecimento absoluto na medida em que apresenta o incondicionado onde, ainda sem a mediação dos conceitos do entendimento, o absoluto se encontra em máxima liberdade determinando a si mesmo. Schelling vê o absoluto acima da dicotomia sujeito e objeto que se estabeleceu nas filosofias representativas da modernidade, de tal modo, o absoluto não se apresenta nem na finitude do objeto e nem pode ser objetificado, condicionado como conceito. Assim, o absoluto só pode aparecer de maneira imediata no incondicionado, ou seja, por uma intuição intelectual (Cf. MACHADO, Roberto. O nascimento do trágico: de Schiller a Nietzche. Rio de Janeiro: Zahar, 2006, p.82).

101 A primeira geração de românticos tinha interesse diversos no estudo da história, da filosofia e da crítica literária, o que

possibilitava uma multiplicidade de interpretações em autores pouco sistemáticos e muitas vezes contraditórios em seus fragmentos. Apesar do panteísmo e da ideia de unidade ser atribuída aos românticos, não podemos afirmar propriamente que, na unidade programática entre eles, havia uma completa identificação de pensamento. Publicado nos últimos dois cadernos da revista Athenäum, Conversa sobre poesia (Gespräch über die Poesie, 1800) aparece como um belo exemplo da diversidade romântica, se apresentando como uma paródia do próprio Círculo de Jena na medida em que seus personagens representam o pensamento de seus membros. Antônio é atribuído ao próprio autor, F. Schlegel, Andréa a seu irmão August; Ludovico reconhecido como Schelling e Lothario pode responder também por Novalis. O prólogo do diálogo confirma também a distinção: “Assim é a presente conversa, que deve contrapor opiniões completamente diferentes, cada uma das quais podendo mostrar seu ponto de vista, sob um novo prisma, o espírito infinito da poesia, cuja verdadeira essência quase todos, ora deste lado, ora daquele, aspiram a penetrar” (SCHLEGEL, 2016 p.486). Quando tomamos a vanguarda do primeiro romantismo, a escrita fragmentária de F. Schlegel muitas vezes se mostrava paradoxal e confusa, apresentando diferenças de um jovem Schlegel ainda preso aos estudos dos antigos com um autor mais maduro da revista Athenäeum. Uma mesma transformação pode se atribuir ao itinerário intelectual de Schelling, dividindo sua filosofia em três fases, a filosofia da natureza (Cartas filosóficas sobre o dogmatismo e o criticismo, 1795-96), filosofia transcendental (O sistema do idealismo transcendental, 1800) e filosofia da identidade (Filosofia da Arte, 1802-03). (Cf. MACHADO, 2006, p.p.83,89).

69 Schelling, e o conceito de crítica, disponível no primeiro romantismo de Schlegel e Novalis. Dos passos que puderam ser dados para além do esquematismo do kantismo, a solução teórica que condensava o modelo de representação e autonomia de maneira mais marcante e significativa para a tragédia foi o conceito de simbólico desenvolvido por Schelling, entendido como princípio interno unificante entre significante e significado. O simbólico, apresentado dessa forma, se solidariza com as pretensões de totalidade do idealismo especulativo que buscara a transcendência como afirmação e conjunção do Sujeito, da Arte e da História enquanto absoluto, ao mesmo tempo em que, fechado em si mesmo, atende às condições de possibilidade para a produção mitológica, tornando-se também um conceito chave, manipulado como prova ideal e decisiva contra o barroco alemão no tribunal da razão. “De fato, com a notável exceção de Schlegel, para quem a alegoria era o centro da peça e da aparência poética, o romantismo foi estranho à expressão alegórica em sua forma original” (BUCI-GLUCKSMANN, 1984, p.67)102. É contra essa posição majoritária do romantismo

alemão que Benjamin polemiza no Trauerspielsbuch e, sobretudo, é por esse motivo que reivindica Schlegel como testemunha de defesa nessa corte. Na crítica filosófica de Schlegel, Benjamin não deixará de encontrar os vícios da especulação partilhada pelo romantismo alemão no desenvolvimento de sua filosofia como a ideia de unidade, da imediatidade da reflexão pela intuição inteligível ou no despertar de uma mitologia puramente alemã, mas também encontrará virtudes, descobrindo, mais do que resquícios do barroco alemão no romantismo, o legado romântico para sua própria filosofia. É esse itinerário que percorremos agora.

Na filosofia de Schelling o simbólico aparece como uma evolução sintética das formas conhecidas de exhibitio que, escalonadas hierarquicamente, se apresentam das seguintes maneiras: como alegoria, defendida por Benjamin da acusação de destituir o sentido próprio do mito ao permitir outras significações a sua representação103; como símbolo, representação direta daquilo

que é, como definido por Schelling; e, no meio desse par conceitual, de modo intermediário, como esquematismo fundado na capacidade de julgar da razão herdada de Kant, que aponta de maneira indireta e analógica à afinidade entre o fenômeno e sua semelhança externa, que sujeita a figura à sua forma conceitual (TORRES FILHO, 2004, p.113). Na contraposição entre a alegoria

102 BUCI-GLUCKSMANN, Christine. La raison baroque: de Baudelaire à Benjamin. Paris. Editions Galilée, 1984.

103 No seu ensaio O simbólico em Schelling (TORRES FILHO, R. In. Ensaios sobre filosofia ilustrada. São Paulo: Iluminuras,

2004), Rubens Rodrigues Torres Filho aponta a alegoria vinculada à escola de Christian George Heyne que Schelling acusava de sequestrar a independência poética da mitologia travestindo-a com um outro sentido. Aqui são apontadas