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A tradução mitológica para os modernos: o romantismo cristão e a cesura trágica

preconceito contra o drama barroco alemão

1.3. A tradução mitológica para os modernos: o romantismo cristão e a cesura trágica

Na passagem entre a poética trágica dos antigos para a filosofia do trágico dos modernos, outras revoltas se deram de maneira a ideologizar o seu conteúdo filosófico para fins políticos. Agora, os inimigos não estavam há séculos de distância, não estavam mais naquele céu grego, mas em próprio solo, invadindo e ocupando suas terras para além de suas fronteiras. Desde a Querelle des

anciens et des modernes já se observava uma certa influência francesa sobre o modo de pensar alemão,

uma influência que ganhou força com os ventos da Revolução Francesa e tornou-se hegemônica com as invasões napoleônicas sobre a Alemanha em 1806125. “O grupo de Jena, após um período de

sedução e não sem sofrimento, renega muitas das suas concepções em um primeiro momento” (PAZ, 2012, p.246)126; os reflexos dessa ocupação repercutiram em um sentimento de repulsa aos

franceses pelos autores do pós-kantismo e do romantismo alemão, que responderam à dominação política a partir de um combate no campo cultural127. No essencial, a concepção de liberdade do

idealismo alemão, baseada na autonomia da razão, não era muito diferente da ilustração francesa, ambas se opunham às restrições do pensamento e da ação por forças estranhas à razão e fontes externas128. Entretanto, a liberdade oriunda dos liberais franceses, neste contexto, fora vivenciada

pelos alemães como se fosse diametralmente oposta ao pensamento tradicionalista que tinham em uma nação pouco desenvolvida, quase que feudalista. Orientados pela postura crítica de J.G. Herder frente ao iluminismo, os românticos de Jena perceberam na ideologia liberal um levante do

assim como a poesia já é ela mesma crítica” (SELIGMANN-SILVA, 1999, p.75) Márcio Seligmann-Silva percebe a potência criadora da crítica ao citar passagem de Novalis que inspira seu trabalho Ler o livro do mundo.

125 Logo após a Revolução Francesa, testemunhamos, nas ambições imperialistas de Napoleão Bonaparte, o

prenúncio de diversas guerras contra nações europeias que afirmaram o poderio militar e influência política dos franceses. Este período, que durou de 1803 à 1815, ficou conhecido como guerras napoleônicas. A Prússia entrou oficialmente na guerra em 1806 quando viu a sua independência ameaçada pela criação da Confederação do Reno, que integrava algumas regiões do sudoeste da Alemanha que, desde 1790, já estavam sob domínio de Napoleão e incorporara regiões do nordeste ameaçando a estabilidade política regional “(Cf. HAGEMANN, Karen Revisiting Prussia’s

War against Napoleon. Cambridge. Cambridge University Press, 2015, p.16).

126 PAZ, Octávio. O arco e a lira. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

127 Ao revisitar a guerra da Prússia com o Império Napoleônico, a historiadora Karen Hagemann mostra com

precisão o nascimento do chauvinismo nacional que se expressou de maneira francofóbica em diversos periódicos nacionais. A revista Minerva, com tiragem de mais de 5.000 exemplares e extremamente popular entre o público intelectual, funcionários públicos e militares, torna-se o grande expoente destas ideias que também se propagaram até em jornais considerados moderados como Das neue Deutschland (houve jornais que se manifestaram contra a alimentação do ódio, caso do Politsche Flugblätter, mas que tiveram menor alcance). Em diversos artigos, como Libertação e Salvação da Alemanha (1813), Apelo aos prussianos (1813); Outra palavra sobre a França e nós (1814), O Reno, rio da Alemanha, mas não fronteira da Alemanha (1814) e muitos outros, se poderia ver impressas diversas manifestações públicas de ódio: “a nação francesa nos visitava em sua arrogância e fomentava o mais sangrento ódio de todas as nobres almas alemãs”; “Um grito soou em toda Alemanha: ódio aos franceses e ruína a sua vergonhosa tirania” (HAGEMANN, 2015, p.p.115-119). Esses artigos, em uma análise mais restrita, não deixavam de ser uma propaganda de guerra com objetivos específicos de disseminar e universalizar o ódio ao invasor para os fins políticos de unificação. Para Ernst Moritz Arndt, em vistas de unir o país e restaurar o esplendor alemão, este ódio era o paládio da liberdade alemã (Cf. HAGEMANN, 2015, p.p.115).

128 Muitas linhas já foram escritas sobre a importância da Revolução Francesa no pensamento de Kant. Em

Resposta à pergunta: O que é o esclarecimento? (Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung?, 1784), vemos relação direta da influência do iluminismo francês na fé na razão e no desenvolvimento do conceito de autonomia.

91 “universalismo em oposição à crença no caráter particular de cada Volk129; do secularismo em oposição à religiosidade; de uma forma peculiar de racionalidade que virou as costas para a história; do egoísmo e a busca de si em oposição ao corporativismo e ao altruísmo” (OLSON, 2008, p.114)130.

Essas distinções criaram um sentido de unidade que erigiu um nacionalismo cultural centrado em uma unificação política da nação, que, por sua vez, tomou os contornos da apropriação nacionalista das filosofias especulativas de Schelling e Schlegel.

Por um lado, vemos que, muito longe de suas preocupações iniciais, as filosofias idealistas baseadas na polaridade estrutural e unidade simbólica puderam ser adaptadas em torno de um místico organismo social e nacional e serviram de fundamentação teórica para a propaganda política da época. Ao lado da pretensa unidade simbólica, a incorporação de algumas noções das ciências naturais e uma ênfase no orgânico na filosofia de Schelling, o que ficou conhecido como filosofia da natureza (Naturphilosophie) e que influenciou tanto Goethe em seus estudos sobre botânica e as cores, como os primeiros românticos nas suas inserções sobre a natureza em busca do belo originário, foram cruciais para o entendimento que se fez durante a guerra da nação alemã como um “organismo, uma entidade singular guiada por uma única ideia ou espírito que a diferenciava de outras nações” (OLSON, 2008, p.114), um organismo ao modo de uma criatura, cujo fim não está fora, mas dentro de si. Nessa ideia de nação, víamos o orgânico e, ao mesmo tempo, a unidade absoluta: tínhamos um corpo em metamorfose que se desenvolvia através do tempo dirigindo e congregando os conflitos internos. “Como parte do organismo da nação germânica, os alemães devem entender a si próprios como uma criação pela e para a nação – como contribuintes para uma síntese mais rica, e não como indivíduos em busca de si para quem a nação nada mais era que um mal necessário, justificada unicamente pela necessidade de proteção de suas propriedades” (OLSON, 2008, p.114). A doação pelo caráter orgânico da pátria foi o que caracterizou o völkisch e os ideais de germanidade que se espalharam por toda Alemanha.

No calor da guerra, de outro lado, por mais que possamos inferir uma má interpretação na adequação do teor metafísico, estético e epistemológico das filosofias especulativas para construção da germanidade, também devemos reconhecer que muitos de seus autores contribuíram para a difusão política destas ideias ao se vincular ao projeto conservador de nação. As oscilações e circunstâncias históricas que tiveram como “contrapartida as crises e convulsões revolucionárias do Terror ao Termidor, e sua culminação final na aventura de Bonaparte” (PAZ, 2012, p.246) foram determinante para que alguns românticos aderissem à proteção da Santa Igreja

129 Os românticos buscaram redescobrir na arte e na mitologia um caráter cultural para a nação. Entretanto, essa

unidade, inserida no modelo fragmentário de conexões, não dissolveu a expressão individual de cada região como parte importante da nação (HAGEMANN, 2015, 277). Por outro lado, o cosmopolitismo francês baseado em uma política imperialista ia na direção contrária ao patriotismo e afirmação cultural da Alemanha.

92 e dos príncipes. É assim que, na primeira década do século XIX, o primeiro romantismo mudou completamente a direção de seu pensamento. Atento às tendências da época, Schlegel troca o jacobinismo de Sobre o conceito de republicanismo (Versuch uber den Bergriff des Republikanismus, 1792) pela edição dos Anuários da Monarquia Prussiana sob reinado de Frederico III (Jahrbücher der preußischen

Monarchie unter der Regierung Friedrich Wilhelms III) (Cf. HAGEMANN, 2015, p.159), a autorreflexão e suas conexões, as mônadas e o panteísmo de sua primeira filosofia, encontraram seu absoluto em um Deus cristão e o entusiasmo revolucionário de sua juventude deu lugar ao reacionarismo proveniente de sua conversão e de seu companheiro Novalis ao catolicismo. Na maturidade, os papeis de destaque entre Schlegel e Novalis se alteram, é em A Cristandade ou Europa (Die

Christenheit oder Europa, 1799) que entendemos a guinada dos românticos em seu apoio irrestrito

ao catolicismo frente à reforma luterana. Em vistas à fragmentação da Alemanha, Novalis é direcionado ao catolicismo como forma de unir a Europa, assolada pelo “mal-estar da civilização” creditado à França e seu saber iluminista que separou a filosofia da crença. Enquanto, no catolicismo, Novalis encontrava a nostalgia de um mundo medieval e mitológico, na Alemanha reformada, buscava a possibilidade de unidade pela cultura. Ao que tudo indica, esse movimento de conversão ao catolicismo vai de encontro a Germanomania, termo cunhado por Saul Ascher em

Germanomania: Esboço para um retrato dos tempos de 1815. O literato percebeu que, nos primeiros

anos do fim das guerras napoleônicas, entre 1813 e 1819, a busca por unificação da nação enfatizara com ímpeto a língua partilhada e a história comum entre os povos germanos, glorificando a germanidade de maneira religiosa. A religião não era apenas uma figura de linguagem, mas a pretensão própria de uma Alemanha que se viu cindida entre protestantes e católicos e que buscava na unificação, ressaltada pela guerra, a reconstituição de uma Alemanha Cristã (Cf. HAGEMANN, 2015, p.p.113-114). Enquanto judeu, Ascher não deixou de reconhecer os perigos do nacionalismo implícito nesta pretensão absoluta que cuidava de excluir aquilo que se punha como estranho ou antitético frente à unidade da nação131. Ainda que não possamos,

sobremaneira, atribuir a Schlegel e Novalis uma atuação neste sentido, no contexto da guerra, o nacionalismo de Fichte, por sua vez, alimentava aos temores de Ascher132. “A Revolução Francesa

131 Segundo Karen Hagemann: “Ascher iguala o fanatismo excludente contra judeus àquele contra os franceses.

Ambos se basearam na intenção de apagar qualquer coisa estranha ao solo alemão. Ele diagnosticou com clareza o coração da Germanomania como ódio de todas as coisas diferentes, baseada no pensamento antitético amigo e inimigo” (HAGEMANN, 2015, p. 113). Dessa perspectiva, ao lado da francofobia já se manifestava o germe de um sentimento antissemita que foi revivido depois em proporções ainda maiores na época de Benjamin, quando relacionadas ao Tratado de Versailles e à ocupação francesa das minas de carvão na região do Ruhr, que intensificou a insatisfação com a social-democracia weimariana e contribuiu para ascensão do conservadorismo, de Hitler e sua perseguição aos judeus (Cf. KLEIN Claude. Weimar. São Paulo: Perspectiva, 1995, p.45-46).

132 Ainda que Ascher nos dê um forte testemunho da existência do antissemitismo já naquela época, não devemos

incorrer em simplificações. Enquanto Johann G. Fichte e Schelling se confundiam com posições antissemitas pela defesa da hierarquia e superioridade de raças (POLIAKOV, Léon. O mito ariano. São Paulo: Perspectiva, 1974), o conservadorismo político de Schlegel e Novalis nunca fora reconhecido como referência para aqueles que, depois,

93 pôs os melhores alemães entre a espada e a parede, como fez com os espanhóis”, agora “defender a Alemanha das invasões napoleônicas era lutar contra a opressão estrangeira, mas também fortificar o absolutismo interno” (PAZ, 2012, p.246). Tal como as mudanças que ocorreram na primeira geração de românticos, os ideais iluministas e cosmopolitas da Revolução Francesa que inspiram seu conceito de liberdade e que pareciam liberar a humanidade inteira se tornaram passado frente a uma autonomia nacionalista excludente manifesta em seu Discurso para

nação alemã (Reden an die deutsche Nation, 1808). Lá vemos expresso “para alemães somente, e de

alemães simplesmente” que “apenas por meio dos traços comuns da germanidade é que podemos evitar a queda da nossa nação, ameaçada pela confluência com povos estrangeiros e mais uma vez recuperá-la para o que é autossustentável e incapaz de dependência estrangeira” (FICHTE, 2008, p.11)133. O mesmo caminho nacionalista é tomado por Ernst Moritz Arndt, Friedrich Ludwig

Jahn, Friedrich Schleiermacher, Johan von Görres e outros autores da intelligentsia germânica da época, que se esforçaram em mobilizar a opinião pública na promoção do germanismo e consolidar no imaginário social um destino de grandeza prometido à nação.

A combinação dos anseios de unidade política e de unidade cultural com elementos das paixões nacionalistas constituiu a percepção da Bildung como formação de uma superioridade científico-cultural alemã e a sua missão civilizadora, que deveria liderar a Europa. No limiar desse período, “sente-se que as ciências e as artes estão em fermentação” (NOVALIS, 1991, p.39)134 para

o desenvolvimento do espírito e que, na Alemanha, provedora de um ambiente supostamente tranquilo na política e fértil para investigações filosóficas, elas “nunca estiveram em melhores mãos” (NOVALIS, 1991, p.39). Enquanto outros países “andam envolvidos em guerras, em especulações ou em quezílias partidárias, o povo alemão eleva-se com o maior dos zelos à condição de contemporâneos de uma época superior na formação dos homens, e, este avanço dar-lhe-á, certamente, com o correr do tempo, uma grande preponderância sobre os outros povos” (NOVALIS, 1991, p.39). Tinha-se que a Alemanha, diligentemente, educava a si mesma para testemunhar uma época de alta cultura e progresso que lhe daria superioridade em relação a outras nações, que se perdiam em preocupações menores, e aqui já estava expressa a manifestação da Kultur, afastada e distanciada da concepção política da história, mas não de pretensão política de uma história cultural. As palavras de Novalis não se diferenciavam das pretensões de Fichte,

quiseram se apropriar do romantismo como profetas do antissemitismo e do totalitarismo (FRANK, Manfred. The philosophical foundantions of early German romanticism. New York: University of New York Press, 2004, p.159). O cuidado de Phillipe Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy é mais do que recomendado quando autores e ideias são deslocados de seu tempo e contexto para justificar pontos de vistas ideológicos e anacrônicos: “Existe um abismo entre uma tradição de pensamento e ideologia que vem, sempre de modo abusivo, inscrever-se sobre ela. O nazismo não está mais em Kant, em Fichte, em Hölderlin ou em Nietzsche (todos pensadores solicitados pelo nazismo) (...) do que o Gulag está em Hegel ou Marx. Ou o Terror, com toda simplicidade, em Rousseau” (LACOUE-LABARTHE; NANCY, 2002, p.28).

133 FICHTE, Johann Gottlieb. Adresses to german nation. Cambrigde University Press: Cambridge, 2008. 134 NOVALIS, G.P.F. A cristandade ou a Europa: um fragmento. Lisboa: Hiena, 1991.

94 segundo o qual “o espírito alemão abrirá novos raios, trará a luz do dia aos abismos profundos dos estrangeiros, das rochas de seu pensamento, as eras vindouras construíram sua morada (...) o espírito alemão será uma águia que impele seu corpo para o alto e paira no ar com asas fortes, colocando-se mais perto do sol que a deleita” (FICHTE, 2008, p.69). Todavia, vemos que o “impacto esmagador do nacionalismo orgânico foi promover um sentido da nacionalidade alemã e identificação racial que separou a mentalidade e espiritualidade dos alemães como superior à de outros povos” (OLSON, 2008, p.121), ao mesmo tempo em que, a partir de um sentimento völkisch em oposição ao iluminismo francês, “fortaleceu o poder e a autoridade das instituições religiosas e das tradicionais, aristocráticas decisões da elite” (OLSON, 2008, p.121). Desse modo, a adoção da perspectiva orgânica, da unidade sintética simbólica que foi tirada do pensamento de Schelling e da mitologia e doutrina histórica tomada dos românticos de Jena para constituição nacional de um ponto de vista cultural e filosófico, por mais que não almejasse, acabou contribuindo também para a constituição de uma identidade étnica do alemão, que, motivada pela sugestão mitificada de sua superioridade cultural, acabou mistificada em um nacionalismo extremo.

Por conseguinte, “na sua luta comum para criar unidade nacional através da construção de uma nação cultural alemã”, os representantes do romantismo “implantaram a história, ou melhor, um passado nacional mitificado, juntamente com a linguagem, o costume e a religião cristã.” (HAGEMANN, 2015, p.277), isto é, redescobrir o passado distante dos germânicos como mitologia. A universalidade dessa mitologia tinha a inspiração romana, mas não era mera volta aos antigos, pois se fundava em uma medievalidade que se fazia ainda “viva e intacta nas

profundezas da alma alemã” (PAZ, 2012, p.245); sua forma não era vazia e sua substância estava

presente nos hábitos e costumes, na fé e devoção, na linguagem e poesia, de uma Alemanha

moderna que beirava ao feudalismo. Como “um grande Concílio de Paz que reconciliará a

liberdade com o papado, a razão filosófica com a imaginação. Novamente, por vias inesperadas, a poesia com a história” (PAZ, 2012, p.245), o mito, para os românticos, aparecia como genealogia da nação. A mitologia nada mais era que a perspectiva histórica que se dispunha como material a

ser decifrado pela arte: a cultura poderia desvelar a nação. Nesse sentido histórico, o

desenvolvimento da mitologia no romantismo merece destaque, porque terá repercussões importantes tanto pelo regresso aos gregos, agora pela tradução das tragédias, como também no resgate do barroco alemão como apreensão das lendas nacionais e valorização da cultura germana. Em F. Schlegel, a mitologia aparecerá como uma plataforma na qual se consolidam as diversas faces de seu pensamento – a juventude filológica de influência winckelmanniana, a guinada filosófica de matiz idealista e traços da conversão religiosa futura de orientação catolicista – como vemos já esboçado em sua Conversa sobre poesia.

95 Winckelmann ensinou a considerar a Antiguidade como um todo, dando um primeiro exemplo de como se deveria fundamentar uma arte pela história e sua formação. A universalidade de Goethe proporcionou um suave reflexo da poesia de quase todas as nações e épocas; uma sequência inesgotavelmente instrutiva de obras, estudos, esboços, fragmentos, ensaios em todos os gêneros e das mais diferentes formas. Em poucos passos audazes, a filosofia conseguiu chegar a entender a si mesma e ao espírito humano na profundeza da qual se descobriu a fonte da fantasia e do ideal de beleza, sendo assim obrigada a reconhecer nitidamente a poesia, cuja essência e existência, ela até então não havia sequer pressentido. (SCHLEGEL, 2016, p.506)

O discurso proferido por Andrea mostra que, enquanto a compreensão filosófica da arte, representada na ambição da reflexão à unidade do absoluto, tem claras influências do Iluminismo, a compreensão histórica da arte, que também está embebida em noções da filosofia da época, não deixa de valorar o trabalho antropológico daquele que foi o mais grego dos alemães. Na concepção sistemática absoluta de arte, os românticos viram Winckelmann como “o primeiro a sentir a antinomia entre antigos e modernos” (SCHLEGEL, 2016, Fr. 236, p.120), foi sua sistemática descritivo-normativa que evidenciou para os modernos a distinção de sua arte em relação ao ideário universal dos gregos, o primeiro grau da reflexão. Agora, a crítica romântica pensava realizar o próximo passo nessa escalada, sua execução metódica, ao buscar “o ponto de vista e as condições da identidade absoluta que existiu, existe e existirá entre antigo e moderno” (SCHLEGEL, 1997, At.149, p.71), isto é, encontrar o ponto de encontro entre eles em um procedimento reflexivo unificador que era, ao mesmo tempo, história da arte e filosofia da arte. Nesse sentido histórico, os românticos não se viam como opositores, mas contribuindo com o percurso aberto pelo helenista que ainda precisava ser consolidado por sua geração, para a qual “faltava um apoio firme para atuar, um solo materno, um céu, um ar vital. Tudo isso o poeta moderno tem que elaborar e tirar do seu interior, e muitos fizeram magnificamente, mas até agora, cada um sozinho, cada obra foi como uma nova criação desde o princípio, a partir do nada” (SCHLEGEL, 2016 p.513). De fato, havia uma legítima preocupação romântica com a formação de uma doutrina poética que pudesse inspirar e servir de apoio aos poetas e autores das gerações futuras – é assim também que devemos ler o elogio a Goethe, que, além de passar pela universalidade de seus escritos como um cânon para os alemães, não deixa de evidenciar em seus estudos, esboços e escritos, também o autor como um

órganon135 para a Bildung – no terrível diagnóstico que se impunha sobre a revolução estética que pretendiam os românticos. “Salta aos olhos que os feitos da poesia moderna não alcançou ainda o

135 Márcio Suzuki nos indica a diferença entre cânon e órganon de um ponto de vista kantiano. Ao se referir a uma

passagem dos cursos de lógica de Kant da década de 70, onde se lê “todas as belas-artes, por exemplo, poesia, estética, etc, não permitem, portanto, nenhuma doutrina, mas apenas uma crítica, pois não se pode aprender o gosto por meio de regras” (SUZUKI, 1998, p.20), ele aproxima o cânon da crítica como uma chave de interpretações da razão a partir de conceitos que não se aprendem por meio de regras particulares e predefinidas e o órganon da doutrina