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Gabinetes de curiosidades

1.4 Histórico evolutivo da ilustração científica

1.4.1 Gabinetes de curiosidades

Em meados do século XVI, as coleções públicas e privadas começaram a produzir seus livros impressos e manuscritos. Surgiu assim um novo gênero literário, denominado “catálogo”. Trata-se de um livro que reúne diferentes objetos separados por categorias com índice detalhado, no qual o todo é mostrado em pormenores e com a indicação de suas origens (LUGLI, 1998).

FIGURA 16 – Gabinete de Curiosidades Fonte: GOLDSTEIN, 200828.

De certo modo, essas coleções representavam a aspiração de poderio sobre a natureza. O colecionismo estava na moda, e muitos eram os objetos naturais cobiçados pelos colecionadores, em especial os mais raros e de terras distantes. Um bom exemplo disso é a coleção do boticário Albertus Seba (1665-1736), em Amsterdam, e a coleção de flores de Josephine de Beauharnais (1763-1814), esposa de Napoleão Bonaparte, em Paris, que originou o hoje denominado Jardin de la Malmaison.

Com o tempo, essas coleções [foram] virando sinônimo de poder e de destaque social, ancorando-se cada vez mais no caráter científico, sem, no entanto, perder de vista a mola propulsora de tais ajuntamentos: tentar decifrar o mistério da criação, possuir aquilo que configurava-se, até então, inalcançável. A ponte entre o “visível e o invisível”, como bem descreveu K. Pomian29 (POSSAS, 2005, p. 151).

No entanto, o caráter efêmero das coleções e o modo como foram se formando e se perdendo exigiam que o colecionador cuidasse de registrar seu inventário, o que permitiu a manutenção da informação por mais tempo por meio das representações iconográficas de seus tesouros. Isto porque, com o tempo, as coleções se deterioravam e, com a morte ou o deslocamento do colecionador, muitas se dispersavam.

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GOLDSTEIN, Ilana. Reflexões sobre a arte primitiva: o caso do Musée Branly. Horizontes

Antropológicos, v. 4. n. 29, Porto Alegre, jan./jun. 2008.

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Desta forma, a partir do século XVI, paralelo ao crescimento do interesse pela natureza e pelos objetos provenientes das terras descobertas pelos navegadores portugueses, observa-se um maior empenho dos enciclopedistas em registrar tais objetos. Em 1728, o boticário Albertus Seba reúne a sua valiosa coleção, cujo inventário foi ilustrado em mais de 440 pranchas, na obra intitulada Loccupletissimi rerum thesauri accurata descriptio – Naaukeurige beschryving van het schatryke kabinet der voornaamste seldzaamheden der natuur, na qual as espécies animais e vegetais foram ilustradas com notável fidelidade científica.

FIGURA 17 – Albertus Seba (1665-1736) – boticário de Amsterdam, colecionador e editor de catálogos ilustrados, reuniu mais de 400 pranchas sobre Botânica e Zoologia de vários continentes.

Fonte: WIKIPEDIA, 201230.

Foi a necessidade de organizar esse novo acervo que incentivou o surgimento dos gabinetes de curiosidades em várias cidades da Europa, onde os objetos coletados eram gravados e indicados de modo organizado, com critérios às vezes subjetivos para a classificação sistemática. De acordo com Lugli (1998), as coleções dos gabinetes dos séculos XVI e XVII foram então

organizados em dois grandes eixos – o Naturalia e o Mirabilia. Do primeiro, fazem parte exemplares dos reinos animal, vegetal e mineral. Já o segundo, divide-se por sua vez em duas seções: os objetos produtos da ação humana (Artificialia) e as antiguidades e objetos exóticos que remetem a povos desconhecidos, normalmente vendidos aos colecionadores ou presenteados por viajantes e marinheiros (LUGLI, 1998 apud POSSAS, 2005, p. 153).

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Em muitos casos, os gabinetes de curiosidade eram convertidos em espaços de estudo, disponibilizando estantes de livros manuscritos para pesquisa. Em vista disso, segundo Possas (2005, p. 156), um gabinete “era a expressão da cultura do colecionador, do poder e da glória do conhecimento”, transformando em “guardiões da memória, aqueles que estavam em condições especiais e favoráveis para que o entendimento do processo da criação fosse [alcançado] e, conseqüentemente, dominado”. Tem-se, pois, que

Esses espaços serviram para a legitimação de “novos” cientistas, que escreviam e divulgavam seus esforços de estabelecimento de diferentes métodos de classificação, de descoberta de novos espécimes, de contribuições para o entendimento do mundo, muito mais vasto do que se podia supor antes (POSSAS, 2005, p. 158).

Assim, a partir do século XVII, os gabinetes de curiosidades passaram a contribuir para o desenvolvimento científico e cultural. Com o tempo, a própria imagem dos objetos colecionados passou a ser a síntese do conhecimento da História Natural, sendo os acervos ou espólios desses gabinetes a origem dos atuais museus de Ciências e História Natural.

Neste processo, a criação e difusão dos catálogos das coleções constituídos de ilustrações dos objetos expostos nos gabinetes de curiosidade dotou a ilustração científica de uma nova didática de conhecimento, promovendo o crescimento do inventário visual. De acordo com Ulisse Androvandi (1522-1605), naturalista de Bolonha, trata-se de “uma importante auxiliar na memória, desde que ela seja uma imagem autêntica, verdadeira e fiel, e que não venha fazer uma cópia repetida de um lugar distante; deverá se reportar diretamente a um modelo através de observação direta” (LUGLI, 1998). Mas deve-se a José Joaquim Freire e seus pares a focalização da ação ilustrativa noutra vertente,

a da História Natural, cujo leque de intervenção era também por si plural, oscilando entre os registros de intenção essencialmente científica e os encadeados num processo de prospecção a que estavam instruídos, seguindo os mais elementares princípios enciclopedistas de uma disciplina potenciada na produtividade e na utilidade de uma economia vegetal e animal (FARIA, 2001, p. 73).

Tem-se, assim, que a ilustração científica contribuiu para que, ainda no século XVI, a partir da década de 1580, o norte da Europa passasse a ser reconhecido como o principal centro de botânica e agricultura. Países como a Holanda e Inglaterra promoviam festas anuais dos floristas, eventos que ocorreram até meados do século XVII. Era intenso o comércio de flores entre os diversos países europeus, e muito comum que o mesmo espécime animal ou vegetal recebesse nomes diferentes em vários lugares.

FIGURA 18 – Byrsonimal sp. – Herbarium Brasiliense – LISU31 Fonte: Original desta pesquisa – Foto da autora, 2011.

Já naquela época alguns catálogos de botânica estavam sendo confeccionados com o uso da gravura em metal e da litografia, o que permitia, além de grandes tiragens, a disseminação das imagens florísticas e zoológicas. Catálogos de plantas baseados na classificação proposta por Linneo foram publicados, disseminados e usados como obras de referência para a consulta de estudiosos e demais interessados em Botânica.

O que se pode concluir é que o surgimento da ilustração científica juntamente ao desenvolvimento dos estudos de História Natural e das ciências médicas promoveu questionamentos sobre as diferentes visões de mundo, reunindo a ciência e a arte em interesses semelhantes e em busca do saber.