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1- O QUE É UM EUNUCO?

2.4. Os gala sumérios

Os primeiros sacerdotes a travestirem-se parecem ter sidos chamados de gala no período sumério. Os gala são atestados desde o Período Dinástico Arcaico, onde aparecem numa tabuinha arcaica de Ur145, numa lista de distribuição de grãos de Fara146, e num texto de Girsu147, no qual é mencionado o jardim do gala-mah (lit. o grande especialista de lamentos). Eles podiam atuar em grandes grupos, de até 176 pessoas, bem como pertencer a variadas classes econômico- sociais, desde escravos até nobres. Ademais, os gala são associados a uma diversidade de templos, dedicados a uma multiplicidade de deuses.148

Desempenharam grandes papéis como cantores e músicos em listas lexicais, como profissionais de culto e em rituais fúnebres. Tocavam uma série de tambores e instrumentos de corda, e seu repertório abrange músicas de vários gêneros, incluindo o BALAG149 (geralmente

traduzido como "lamentação") e o ÉR.ŠEM5.MA (lamento do tambor šem). As músicas cultuais dos

144 TIM 9.59 // LKA 71 // LKA 72:obv. 14–16.

145 UET 2 352 (Na última linha da primeira coluna, lê-se DUR

2.GIŠ, que pode ser entendido por GIŠ3:DUR2 gala.

146 DEIMEL WF 74. 147 VAS 14, 100.

148 COHEN. 2005, p. 52; GELB. 1976, p. 64-74; HENSHAW. 1994, p. 105-13; SUTER (Ed.). 2008, p. 20. 149 Balag (harpista em sumério), é um gênero literário sumério que Consiste em hinos para os deuses apresentados pelos sacerdotes. Além disso, é o primeiro exemplo conhecido de repetição litúrgica. Foi um gênero vital desde o início do 2º milênio a.C. até a escrita cuneiforme.

55 gala, bem como as do assinnum, também são compostas em eme-sal. Uma das hipóteses para que

isso ocorresse é para que eles, sendo homens, pudessem recitar as palavras de deusas femininas.150 De acordo com o mito registado em uma antiga tabuinha da Babilônia (BM 29616), o gala era uma categoria criada por Enki, deus da sabedoria, para cantar hinos a Inanna, com objectivo de acalmar a ira da deusa151. O poema presente na tabuinha consiste num apelo à deusa Inanna para dar um basta em sua fúria, que perturbava tanto os humanos quanto os outros deuses:

O que seu coração forjou? Como atormentas céu e terra!

Hierodula, o que seu coração forjou? Como tormentas céu e terra! O que seu coração furioso forjou? Como tormentas céu e terra!

O que seu coração, furioso como uma enchente, forjou? Como tormentas céu e terra!

Ao ouvir o apelo, Enki decidiu-se então por criar os gala e os pôs em cargo de uma variedade de cantos, orações e lamentos, pondo em suas mãos um tamborim e um timbale. Então, Enki enviou um mensageiro à Inanna/Ishtar, que a impeliu a se sentar calmamente em seu trono enquanto o gala a acalmava com seus cantos que traziam paz ao espírito.152

Porém, não era somente a Inanna/Ishtar que os gala tinham o poder de acalmar. Eles também serviam para tranquilizar qualquer um que estivesse passando por um momento de perturbação. Assim sendo, Ur-Nammu, fundador da terceira dinastia de Ur, parece suplicar a eles para que acalmassem sua mulher: lu2 nig2-dug4-ga-ga2 i-lu balag-di-gin7 he2-na-du12-uš153 “que aqueles que contam minhas coisas cantem um lamento pra ela como um pranteador profissional (lit. como um tocador de lira)”.

150 TAYLOR. 2008, p. 175; KRAMER. 1979, p. 91. 151 ORTEGA. 2015, p. 3.

152 KRAMER. 1979, p. 91 153 Morte de Ur-Nammu 194.

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Entretanto, a natureza exata dos gala e a evolução de seu papel no culto da Mesopotâmia ao longo dos milênios continuem sendo tópicos de controvérsia. Fontes do segundo milênio, por exemplo, indicam que em suas primeiras aparições mulheres também poderiam ocupar a posição de gala. Por outro lado, outras evidências sugerem que a sociedade mesopotâmica considerou que os gala possuíam características transgênicas.

As coleções de provérbios sumérios em geral retratam os gala como ridículos, além de frequentemente ironizarem a impotência deles como homens. Nesse sentido, Alster154 interpreta o seguinte provérbio como uma piada grosseira: gala-e bìd-da-ni ḫa-ba-an-da-zé-er / èm ga-ša-

an-an-na ga-ša-an-mu / ba-ra-zi-zi-dè-en-e-še (Um sacerdote de lamentação limpou o ânus e disse

“Não devo despertar o que pertence à rainha do céu, minha dama”). O discurso citado contém as formas emesais ÈM para NIG̃, “coisa”, e GAŠAN para NIN, “dama”. Segundo autor, a origem da ironia estaria relacionada à origem da sigla GALA.

Em sua análise da origem da sigla suméria para gala UŠ.TUŠ, Steinkeller155 fornece evidências do estatuto original de sua transgenicidade. Ele observa que a sigla UŠ.TUŠ (mais correctamente, GÌŠ.DÚR, correspondente a “pênis + ânus”) seria o equivalente homossexual da sigla SAL.UŠ (que designava a palavra “genro” na suméria, geralmente escrita mussaxSAL.UŠsá). A palavra genro contém o logograma SAL.UŠ (mais corretamente: GAL4.GÌŠ, que corresponde a “vagina + pênis”) e é usado em fontes do terceiro milênio para escrever várias palavras relacionadas à idéia de relação heterossexual.156

No entanto, a conclusão de Steinkeller pode ser precipitada. Deve-se levar em conta que GÌŠ3.DÚR2 pode não significar que os gala de facto eram homossexuais. Em vez de ser um verdadeiro rótulo descritivo, GÌŠ3.DÚR2 poderia simplesmente significar uma denominação insultuosa, pois existem gala que aparecem casados com mulheres e tendo filhos.157

154 Coleção de provérbios sumérios 2, 100, ed. Alster 1997, 1, 65. 155 STEINKELLER. 1992, p. 37.

156 TAYLOR. 2008, p. 175. 157 COHEN. 2005, p. 54.

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Com efeito, a masculinidade dos gala é contestada em várias fontes do primeiro e segundo milênios.158 Entre elas, Gelb159 cita documentos administrativos160 do período de Ur III que agrupam provisões referentes aos gala junto com as referentes às mulheres.

Essa contestação da sua masculinidade provém provavelmente de evidências que apontam que eles se travestiam (ou melhor, não se vestiam como os outros homens). As poucas representações dos gala ou cantores (nar) existentes os diferenciam dos outros homens. Em Mari, por exemplo, há duas estátuas representando um homem chamado Urnanše designado como nar. Nelas, ele é representado sem barba, com cabelos longos, usando calças curtas, folgadas, amarradas na cintura e com bainhas.161

Nesse caso, usar o termo “travestir”, como é corrente na bibliografia, é perigoso, pois pode nos levar a pensar que eles se vestiam como as mulheres. No entanto, as roupas que Urnanše aparece vestindo nessas estátuas distinguem ele tanto dos outros homens quanto das mulheres representadas em outras estátuas. Ele se assemelha mais, portanto, a um terceiro género.

Em vista do exposto, não podemos saber ao certo se os gala tinham ou não relações sexuais, se praticavam sexo anal e, caso fosse o caso, se era uma regra ou algo isolado. O que podemos constatar, entrementes, é que eles foram por vezes socialmente classificados como mulheres (ou equivalentes a mulheres) e que, por outras vezes, possuíam um estatuto liminal na estrutura de gênero, como na representação de sua vestimenta nas estátuas de Mari.162

Além disso, como a sexualidade possuía uma componente religiosa na Mesopotâmia, havia em alguns templos, conhecendo nós mais referências para a Babilônia, a presença de uma prostituição ritual, levada à prática tanto por homens, como por mulheres e por

158 SLADEK. 1974, 86-99. 159 GELB. 1976, 66-74. 160 StOr 46. 161 COHEN. 2005, p. 55. 162 COHEN. 2005, p. 54.

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eunucos. Essa prostituição incluía, por sua vez, tanto os gala como os posteriores kurgarrūm e

assinnum. Sabemos, no entanto, que nem todos os que a praticavam eram eunucos.163