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Eunucos : fontes, realidades, representações e problemáticas da antiguidade oriental ao período bizantino

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE LETRAS

EUNUCOS: FONTES, REALIDADES, REPRESENTAÇÕES

E PROBLEMÁTICAS DA ANTIGUIDADE ORIENTAL AO

PERÍODO BIZANTINO

JOANNE BARBOZA FERREIRA

Tese orientada pelo Prof. Doutor Nuno Simões Rodrigues,

especialmente elaborada para a obtenção do grau de Mestre em

História Antiga.

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AGRADECIMENTOS

Gostaria de agradecer primeiramente à minha mãe, Anne Jacqueline, quem em realidade também sempre foi também pai, irmã e melhor amiga. Obrigada por, antes de mais nada, proporcionar o apoio financeiro sem o qual minha experiência em Portugal não seria possível. Obrigada por acreditar e investir sempre em mim e por me apoiar em todos os caminhos que trilhei até hoje. Mesmo passando por inúmeros problemas pessoais e de saúde, por momentos nos quais não possuía mais forças nem para si, sempre buscou oferecer o melhor para mim. Sem o seu exemplo de ser humano, eu jamais me tornaria a mulher que sou hoje.

Sou imensamente grata também ao meu marido, Adrien Bonn, quem me proporcionou o apoio emocional sem o qual eu jamais poderia ultrapassar as dificuldades que encontrei enquanto estudante e mulher brasileira em Portugal. Obrigada por ser sempre o meu maior fã, por acreditar no meu potencial e por ter sido o meu porto seguro enquanto eu enfrentava um quadro quase sem fim de burnout e depressão.

Agradeço ao meu professor e orientador Dr. Nuno Rodrigues por ter sugerido este tema que nunca imaginei trabalhar, mas com o qual me identifiquei e me apaixonei logo que comecei a aprofundar. Obrigada também por ser o único na faculdade que não apenas acreditou na possibilidade da pesquisa, mas que também se ofereceu para ajudar. Sobretudo, obrigada por entender os problemas pelo qual estive passando, meu burnout e por ter a paciência inesgotável de lidar com as diferenças entre os portugueses do Brasil e de Portugal. Enfim, reservo um agradecimento especial ao meu grande amigo, Bernat Bardagil, por ter me ajudado de forma inimaginável, como um verdadeiro tutor, não só em questões relativas à estrutura do texto acadêmico, mas principalmente por me dar forças e alimentar o amor pela História e pela pesquisa quando eu mais precisava. Obrigada por ter o cuidado de ler meu trabalho, me aconselhar e, sobretudo, por acreditar no meu potencial.

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RESUMO

Este trabalho pondera sobre algumas noções de gênero, sexualidade e corpo na Antiguidade Oriental e Ocidental (englobando em especial as civilizações da Suméria, Assíria, Babilónia, Pérsia, Roma, Grécia e Bizâncio), e toma como objeto de estudo as representações que cada uma dessas sociedades possuíam acerca dos eunucos. Para isso, elege o corpo documental compreendido entre os séculos V a.C e XII d. C. e, com o apoio teórico dos estudos de gênero e sexualidade, analisa as experiências corporais, sexuais e identitárias de homens que foram castrados ou decidiram deliberadamente se emascularem com a intenção de mudarem sua circunstância e/ou estatuto social. Por meio da abordagem metodológica da análise crítica do discurso, explora as fontes a partir de seus aspectos enquanto textos literários e enquanto interpretações subjetivas concernentes a um contexto histórico-cultural específico de cada espaço e tempo.

Palavras-chave: Eunucos, castração, gênero, sexualidade, Mesopotâmia, Roma Antiga, Grécia Antiga, História Antiga.

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ABSTRACT

This work considers some notions of gender, sexuality, and body in Eastern and Western Antiquity (encompassing especially the civilizations of Sumer, Assyria, Babylon, Persia, Rome, Greece, and Byzantium), and takes as its object of study the representations that each of these societies had about eunuchs. For this, it chooses the documentary body comprised between the 5th century BC and XII AC. and, with the theoretical support of gender and sexuality studies, analyzes the bodily, sexual and identity experiences of men who have been castrated or deliberately decided to emasculate themselves with the intention of changing their circumstances and/or social status. Through the methodological approach of critical discourse analysis, it explores sources from their aspects as literary texts and as subjective interpretations concerning a specific historical-cultural context of each space and time.

Keywords: Eunuchs, castration, gender, sexuality, Mesopotamia, Ancient Rome, Ancient Greece, Ancient History.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 7

1- O QUE É UM EUNUCO? ... 11

2 - EUNUCOS NA MESOPOTÂMIA ... 32

2.1. A transgeneridade das rainhas ... 43

2.2. Eunucos na Babilônia ... 48

2.3. Kurgarrûm e Assinnum: os sacerdotes de Inanna/Ishtar ... 50

2.4. Os gala sumérios ... 54

2.5. Ša Rēši X Ša Ziqni ... 58

2.6 Eunucos na Assíria ... 62

2.7 Eunucos na Pérsia ... 66

2.8 A tradução em pauta ... 68

2.9 Eunucos nas Cortes ... 71

2.10 Eunucos fora da corte ... 74

2.11 Declínio do Império Assírio: o lugar dos eunucos ... 77

2.12 Eunucos e conspirações ... 80

3 – EUNUCOS NO MUNDO GRECO-ROMANO ... 85

3.1. O Problema da Ambiguidade de Gênero ... 91

3.2. Origens da Castração em Roma: o Sincretismo Romano ... 93

3.3. A Legislação ... 96

3.4. Eunucos nas Cortes: Poder e Influência ... 98

(6)

4 - EUNUCOS NO IMPÉRIO BIZANTINO ... 109

4.1. Eunucos: cortesãos ideais ... 125

4.3. Eunucos no Meio Eclesiástico ... 131

4.4. Os eunucos aos olhos da sociedade ... 132

4.5. O novo ideal de masculinidade ... 140

4.6. A castração ... 144

CONCLUSÃO ... 148

(7)

7

INTRODUÇÃO

A castração enquanto prática social de privação de androgênio no corpo masculino está presente em diversas culturas. Mesmo assim, os efeitos dessa prática nas vidas sociopolíticas e culturais dos homens que passam por essa mudança biológica ainda continuam insuficientemente compreendidas.

O entendimento do fenômeno da castração se torna ainda mais complexo se atentarmos para o facto de o próprio conceito de sexualidade ser demasiado contemporâneo. Ora, esse conceito, bem como os conceitos de heterossexualidade e homossexualidade surge somente no início do século XIX.1

Conclui-se então que, para as sociedades antigas, o entendimento da sexualidade não apresenta valor epistemológico. Assim sendo, as concepções desses indivíduos acerca do corpo e do sexo são inevitavelmente diferentes das que se têm nos dias atuais. Por conseguinte, estaríamos a cometer um anacronismo e chegaríamos a conclusões inexatas se fôssemos atribuir noções pertinentes à nossa sociedade para essas outras, de outra época.

Logo, a aplicação do termo sexualidade, entendido no presente estudo como uma atividade fundamentalmente cultural e historicamente variável de acordo com os contextos socioculturais de cada povo, só se torna apropriada na medida em que se analisa de que forma os valores culturais daquelas sociedades antigas interferem na maneira como as pessoas se relacionavam com o próprio corpo e com os seus desejos e sentimentos. Isso inclui, claramente, as diversas práticas e identidades sexuais construídas culturalmente em cada uma delas.

Além de mudar um indivíduo biologicamente, a castração resulta também em uma aparência exteriormente diferente da de um homem que desenvolve plenamente suas características sexuais secundárias (como pelos corporais e faciais, tônus muscular, rigidez da pele, concentração de gordura etc.).

Além disso, quanto mais cedo se é privado de androgênio, mais provável é que o indivíduo apresente alterações que afetem seus ossos longos, pelve e crânio. Estas diferenças fisionômicas (visíveis externamente), portanto, geralmente fazem com que esses homens sejam

1 FOUCAULT. 1984, p. 9.

(8)

8

classificados de maneira diferente dentro da matriz de gênero das sociedades onde a prática foi realizada, por vezes até sendo enquadrados no que tem sido chamado de liminaridade de gênero.

A liminaridade, por sua vez, seria um estado ambíguo e indeterminado em que os indivíduos escapam às classificações que determinam estados e posições num ambiente cultural. Na liminariedade, os atores sociais caracterizam-se como uma “lousa em branco”, na qual aspectos pertinentes ao novo “status”, ao novo grupo, à nova situação se inscrevem e se reafirmam.2

No entanto, há de se observar que, da mesma maneira que o conceito de sexualidade, o entendimento de gênero só veio surgir no século XX, portanto ainda depois que os conceitos de sexualidade. Ou seja, apenas muito recentemente os estudos de gênero (ou de relações de gênero) passaram a ocupar algum espaço nas discussões acadêmicas.

Em busca de legitimação, muitos grupos e núcleos de estudos recorrem a instrumentos e propostas teórico-metodológicas diferentes, traçando caminhos não apenas distintos, mas muitas vezes contraditórios. Para alguns desses grupos, talvez mais diretamente herdeiros da militância feminista, a denominação "estudos de gênero" é ainda pouco aceitável. Entendem que essa esconde aquela que é o seu verdadeiro objeto de estudos (a mulher), já usualmente negada ou marginalizada numa ciência androcêntrica.3

Num primeiro momento, as feministas anglo-saxãs que passam a empregar o conceito de gênero têm como alvo os partidários das interpretações biologistas. Ou seja, aqueles que atribuem as distinções sociais às diferenças biológicas, ou melhor, que ancoram na biologia os arranjos sociais desiguais e hierarquizados de homens e mulheres. O uso do conceito tem também, a princípio, uma motivação estratégica, no sentido de tentar contribuir para a legitimação dos estudos sobre a mulher, conferindo-lhes um caráter mais acadêmico e menos militante.4

Não há dúvidas que a corrente feminista trouxe inúmeros avanços e esclarecimentos para a História do Gênero (e para o próprio entendimento do conceito de gênero), porém as consequências de limitar os estudos à História da Mulher fez com que a historiografia do gênero caísse no mesmo erro que cometera quando encarou a História apenas a partir da perspectiva do homem: o erro da exclusão. Em outras palavras, um campo de pesquisa que deveria ser plural,

2 CICHOWICZ. 2010, p. 133. 3 LOURO. 1995, p. 102. 4 Id. Ibidem, p. 102.

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tornou-se excessivamente reduzido a apenas um dos seus diversos objetos de pesquisa: desta vez, a mulher.

Além disso, uma compreensão mais ampla de gênero exige que pensemos não somente que os sujeitos se fazem homem e mulher num processo continuado, dinâmico (portanto não dado e acabado no momento do nascimento, mas sim construído através de práticas sociais masculinizantes e feminilizantes, em consonância com as diversas concepções de cada sociedade); como também nos leva a pensar que gênero é mais do que uma identidade aprendida, é uma categoria imersa nas instituições sociais (o que implica admitir que a justiça, a escola, a igreja, etc. expressam as relações sociais de gênero).5

É nesse sentido que o presente estudo se mostra fundamental. Mesmo possuindo o homem como objeto de estudo, a pesquisa permite analisar um gênero ainda não profundamente compreendido pelas sociedades antigas nem pelas atuais. Um personagem, pois, essencialmente fluido, que perpassa os limites da concepção binária de gênero. Ou seja, mesmo que centralize seu foco no homem, o estudo não corre o risco de voltar à uma historiografia androcêntrica, pois o gênero do eunuco não se mostra invariavelmente masculino, mas fundamentalmente liminar.

O presente trabalho tem como objectivo, portanto, investigar os efeitos da castração nos homens e o consequente papel que eles deverão ocupar nas sociedades, que será invariavelmente diferente a partir da sua emasculação. Além disso, almeja analisar o imaginário de diferentes sociedades antigas no que toca às construções das noções de masculino e feminino (identidades sexuais e de gênero inclusas) para observar de que formas suas visões a respeito do eunuco divergem e quais os principais aspectos que contribuem para essas diferenças.

Nesse sentido, o primeiro capítulo da pesquisa (O que é um eunuco?), analisa o que significa ser um eunuco, como se davam as primeiras formas de castração, os motivos, quais os tipos de eunucos e quais as principais consequências disso para o indivíduo e para a sociedade em que ele se insere. Para isso, tem como seu principal referencial teórico Charles Ancillon (1718), Mathew Kuefler (2001), Kristina Augustin (2002), Gary Taylor (2002), Shaun Tougher (2008) e Adam Renner (200-?), apoiados por fontes como Luciano de Samósata (séc. I d.C.), Juvenal (séc. I-II d.C), Suetónio (I-II d.C.), Dião Cássio (séc. II-III d.C.), Tertuliano (séc. III d.C.), Ulpiano (séc. III d.C.), Amiano Marcelino (séc. IV d.C.) e Claudiano (IV-V d.C.).

5 LOURO. 1995, p. 102.

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No segundo capítulo, intitulado Eunucos na Mesopotâmia, procura-se primeiro entender o contexto geopolítico do Próximo Oriente Antigo, depois analisar os conceitos de sexualidade e gênero de acordo com a moralidade dessas sociedades, aprofundar os temas de androgenismo e gênero liminar, para finalmente analisar mais especificamente os eunucos nas regiões da Babilônia, Assíria e Pérsia, bem como quais eram os seus papéis e estatutos sociais. Além disso, como muitas das fontes que se possui são ocidentais, o estudo analisa também o que ficou conhecido como orientalismo, ou seja, como o ocidente percebia o oriente e quais as razões e consequências disso.

Para isto, utiliza-se como referencial teórico em especial Charles Ancillon (1718), Karen L. Nemet-Nejat (1998), Gary Taylor (2002), Andrew C. Cohen (2005), Ana Claudia Romano Ribeiro (2006), Bruce L. Gerig (2010), Dale Launderville (2012), Dominique Lenfant (2012), Ilan Peled (2014), Marc Van de Mieroop (2015), O. N'Shea (2016), Matt Waters (2017), embasados em Heródoto (séc. V a.C.), Ctésias (séc. V-IV a.C.), Xenofonte (séc. V-IV a.C.) Diodoro Sículo (séc. I a.C.), Plutarco (séc. I-II d.C.).

No terceiro capítulo, intitulado Os Eunucos no Mundo Greco-Romano, a pesquisa discorre primeiramente sobre questões relacionadas à sexualidade, gênero, sexo e a moralidade existente a respeito desses temas na Grécia e Roma antiga, para depois discutir como os romanos tiveram acesso ao fenômeno do eunuquismo, as legislações existentes em relação a isso e a opinião dos gregos e romanos sobre os eunucos. Para tal, utiliza-se do seguinte referencial teórico principal: Charles Ancillon (1718) , Edith Pimentel Pinto (1952), Thomas Laqueur (1990), Mathew Kuefler (2001), Géraldine Puccini-Delbey (2007), Shaun Tougher (2008), Larissa Tracy (2013), Brittany E. Wilson (2015) e Steven F. Kruger (2015), apoiados em autores como Cátulo (séc. I a.C.), Ovídio (séc. I a.C. - séc. I d.C.), Marcial (I d.C.) e Justiniano Mártir (séc. II d.C.).

No quarto e último capítulo (Eunucos no Império Bizantino), a pesquisa apresenta os cargos ocupados por eunucos em Bizâncio e aqueles aos quais os eram interditos, quais as suas origens, a legislação existente relativa à castração. Rodolphe Guilland (1943), S. Harvey (2000), Kathryn M. Ringrose (2003), Shaun Tougher (2008), D. Woods (2012) e Michael Edward Stewart (2016), embasados, entre outros, em Xenofonte (séc. IV-V a.C.), Terêncio (séc. II a.C.), Suetônio

(séc. I-II d.C.), Dião Cássio ( séc. II-III d.C.), Amiano Marcelino (séc. IV d.C.), Procópio de Cesareia (séc. VI d.C.) e João Zonaras (séc. XII d.C.).

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1- O QUE É UM EUNUCO?

A palavra “eunuco” origina do latim eunuchus, a qual por sua vez é proveniente do grego εὐνοῦχος. O vocábulo grego é composto de εὐνή, que significa “cama” ou “tálamo”, e ἔχω, “guardar”. “Eunuco” é assim entendido como um “guardião da cama matrimonial”. Epistemologicamente, segundo o Dicionário Aurélio de Português Online6, define-se a palavra “eunuco” como:

1 – guardião castrado de um harém;

2 – homem estéril ou impotente para o coito; 3 – ministro, válido (em certos países asiáticos); 4 – aquele que foi castrado;

5 – estéril, impotente; 6 – inútil;

7 – flor que não tem gineceu nem estame.

Como podemos perceber, o eunuco nem sempre é definido pela sua condição biológica exterior, i.e. homem cujos testículos e/ou pênis foram/foi removido(s) ou que são/é congenitamente não-funcional(is), mas também pela função que exercia.

Ademais, as origens da castração de homens com o intuito exclusivo de se criarem eunucos são desconhecidas. Alguns historiadores modernos sugerem que essa prática seria uma transferência da castração a partir do campo da criação animal, ou então um desenvolvimento a partir do uso da castração simplesmente como uma forma de punição.7

A própria palavra “castração”, data pelo menos do início do século XV no Oxford

English Dictionary, originada do latim castrare, presumivelmente relacionado à palavra sarîs em

6 Disponível em: ‹https://dicionariodoaurelio.com/eunuco›. Acesso em: 15 Nov. 2017

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hebreu, que por sua vez significa “eunuco,” e à palavra em sânscrito nirasta ou asri, que significa “faca”. Já o verbo no sentido médico de castração é registrado pela primeira vez na tradução de Agostinho de A Cidade de Deus, em 1610.8

Ulpiano9, jurista do século III d.C., usa spado como um termo geral para homens com genitais comprometidos, mas diferencia entre eles três subcategorias, baseando-se na metodologia usada no ato da castração. Assim, descreve os spadones, ou aqueles que o eram por natureza, i.e. aqueles que nasciam desse modo, e aqueles que, embora estéreis, permaneceriam com a aparência “normal” ou “natural” dos seus órgãos genitais.

Esses últimos são classificados pelo jurista como thlibiae – termo grego radicado em thlibein (“pressionar com força ou confinar”) -, e como thlasiae – do grego thlan (esmagar). O primeiro termo consiste10 na prática de amarrar firmemente o escroto com o objectivo de o separar do canal deferente. Esse era um procedimento bem menos perigoso do que a amputação. Já o segundo consiste numa prática que desabilita os testículos de forma mais eficaz e imediata do que a anterior, através do corte das veias que servem para fortalecer e fortificar os testículos de modo que, embora na realidade não fossem removidos, provavelmente não poderiam ser mais de uso ou serviço daquele que os possuía.

No Evangelho de Mateus (19, 12), da mesma forma, embora com propósitos diferentes, podemos encontrar também três categorias diferentes de eunucos: “os eunucos que nasceram assim do ventre materno, os eunucos que foram feitos eunucos pelos homens, e os eunucos que se fizeram eunucos por causa do Reino dos Céus.”

No mesmo sentido, haveriam igualmente três tipos de eunucos11:

i) os congénitos ou aqueles que, por conta de alguma má-formação em seus órgãos reprodutores, nasceram como tal;

8 TAYLOR. 2002, p. 12.

9 Ulp. Dig., 50.16.128. 10 KUEFLER. 2001, p. 34. 11 ANCILLON. 1718, p. 14.

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13 ii) aqueles que, por força, por consentimento ou por suas próprias mãos, se utilizaram de algum método de castração; incluindo os que, por causa de alguma doença, foram obrigados a passar por um procedimento cirúrgico que os tenha levado a esse estado;

iii) aqueles que, não tendo removido seus testículos, estes se tornaram tão frígidos que quase desaparecerem.

A castração que tornava um indivíduo eunuco era feita cortando a veia que transmite o suporte e a alimentação adequados aos testículos, o que se refere aos já mencionados Thalsiae, ou colocando o paciente em um banho de água morna para suavizar e tornar os seus testículos mais maleáveis, pressionando depois as veias jugulares até que o processo se concretizasse numa espécie de apoplexia.12

Os Persas, e várias outras nações, tinham um diferente método para cortar, ou fazer um eunuco, do que aquele praticado na Europa: eu digo fazê-los porque isso não era sempre feito através de um corte; cicuta e outras ervas o fariam, como podemos ver em um livro publicado por Paul Eguiette, que trata particularmente desse assunto, especialmente o VI livro desse curioso e erudito tratado. (ANCILLON. 1718, p. 14)

Além dessas diferenças, ainda podemos distinguir os eunucos que foram castrados antes da puberdade e aqueles que passaram por esse procedimento posteriormente. Os primeiros seriam facilmente distinguíveis dos outros homens, devido aos efeitos provocados pelos baixos níveis androgênicos que apresentam. Com efeito, esses homens ficam suscetíveis, entre outras coisas, a curvaturas na coluna vertebral e à osteoporose, apresentando normalmente uma pele mais macia, propensa a rugas prematuras, e tendências para o aumento de depósitos de gordura no

12 ANCILLON. 1718, p. 14.

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abdômen, nas mamas e nas nádegas, o que os fazia apresentar, assim, atributos normalmente relacionados com o corpo feminino.13

Além disso, geralmente, esses eunucos não apresentavam as características sexuais secundárias desenvolvidas por um homem, como o crescimento de pelos faciais e o aumento de pelos pelo corpo, e o desenvolvimento de uma voz grave. Outrossim, esses homens castrados ainda crianças poderiam nunca sequer sentir desejos sexuais.

Esse fato, obviamente, tornava a questão do eunuco ainda mais confusa e ambígua, pois, quando pensamos em eunucos, tendemos a imaginá-los como seres assexuados. Principalmente, quando os percebemos como sendo muitas vezes utilizados como guardas da integridade sexual de mulheres, por norma, integradas em haréns régios, tanto no que diz respeito à manutenção da sua virgindade quanto à asseguração da sua fidelidade para com o marido. Sabemos, no entanto, que os eunucos costumavam trabalhar, em sua maioria, a serviço de homens e não de mulheres, como ficará mais claro ao decorrer dos capítulos, pois, afinal, até mesmo quando asseguravam mulheres, os eunucos o faziam a mando de homens.

Em contrapartida, aqueles que fossem castrados depois da puberdade conservariam essas características sexuais secundárias supracitadas e provavelmente também poderiam continuar a sentir desejos sexuais, pois teriam ainda resquícios das hormonas masculinas associadas aos órgãos sexuais, desenvolvidas durante a pubescência, em seu organismo. A esse respeito, o escritor cristão do século III, Tertuliano14, duvida que ocorresse qualquer tipo de repressão das paixões sexuais nesse processo de castração.

Da mesma forma, para Taylor:15

13 KUEFLER. 2001, p. 34.

14 Tert. Adv. Marcionem, 1.29. 15 TAYLOR. 2002, p. 16.

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15 Eunucos não são de fato impotentes, mas poderosos; eles são frequentemente sexualmente ativos, e capazes de ereção; castração não suprime tanto o eros como redireciona-o e em alguns meios libera-o; castração não necessita ter nada a ver com o pênis (TAYLOR. 2002, p. 16.).

Tendo isso em vista, os Antigos não sabiam ao certo em que categoria sexual e de género deveriam colocar os eunucos, se como penetradores ou penetrados. Com efeito, alguns ainda podiam sustentar uma ereção, ainda que sem a possibilidade de procriação.A partir disso, instalou-se um certo senso de medo, impotência e indignação combinados, pelo facto de esses indivíduos estarem sempre tão próximos das mulheres, sendo assim muitas vezes imaginados como seus amantes licenciosos, assim como também de homens.

Juvenal demonstra essa preocupação ao afirmar que o eunuco “provar-se-á viril o suficiente na cama; lá ele removerá sua máscara (...) eu aposto que você é cada centímetro um homem16”. Assim, segue aconselhando os homens a ficarem sempre alertas, pois esses eunucos, devido à proximidade, exerceriam forte poder de influência sobre as mulheres, criariam uma relação de cumplicidade e, como não haveria guardas que guardassem os próprios guardiões, os homens deveriam “trancar a porta, e mantê-la[s] perto17” (, em razão de que eles seriam parceiros ideias para as mulheres, com “seus beijos sempre gentis, e suas barbas esperançosamente nunca a serem preenchidas”18 e pelo fato de não haver a necessidade de se utilizar com eles quaisquer métodos contraceptivos.

Isto posto, através dos textos gregos e romanos, percebemos como os eunucos emergem como figuras ambíguas, que se movem tanto no domínio privado feminino quanto no público masculino. Luciano de Samósata19, satirista do século II d.C., demonstra essa ideia no passo em que Licino, um eunuco, cita o discurso de Díocles contra Bagoas, no qual afirma que

16 Juv. Sat 6, 370-73.

17 Id. Ibidem, 376. 18 Id. Ibidem, 380.

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“um eunuco não era nem homem nem mulher, mas algo composto, híbrido, e monstruoso, alheio da natureza humana”.

Ademais, como incorporavam as características dos homens efeminados, os eunucos também podiam ser considerados por alguns Antigos como não merecedores dos privilégios masculinos, devendo também ser excluídos do seu meio. Nesse sentido, observamos Díocles, no mesmo discurso supracitado:

(...) não era de todo admissível que Bagoas reivindicasse a filosofia e as recompensas de mérito advindas dela, uma vez que ele era um eunuco; tais pessoas deveriam ser excluídas, ele pensava, não simplesmente de tudo isso, mas igualmente dos templos e das taças de água sagrada e todos os lugares de assembleia pública, e ele declarou isso um mau agouro, mau presságio se ao primeiramente sair de casa pela manhã devesse colocar os olhos em qualquer dessas pessoas. (Luc. Eun. 1947-1957, v. 5, p. 331-345)

Moralmente falando, os eunucos também aparecem como ambíguos e eram retratados pelos autores do Império Romano tardio como também equivalentes à mulher, quando se tratava de seus traços de personalidade. Assim, esses indivíduos eram tidos como irracionais, voluptuosos, entregues às suas paixões, inconstantes, e assim por diante.20 Verificamos esse fato no que Amiano Marcelino diz sobre o eunuco Eutério, que exibia, para sua surpresa, características masculinas:

Voltando aos copiosos registros do passado, eu não encontrei nenhum eunuco com quem eu pudesse compará-lo. Houve alguns em tempos remotos que eram leais e honestos, embora muito poucos, mas suas características foram vistas de outras maneiras. Misturado com qualidades boas adquiridas ou naturais que qualquer um deles possuía estava rapacidade, ou maneiras brutalmente desprezíveis, ou a propensão para infligir danos, Ou excessiva obsequiosidade para o grandioso, ou a soberba que surge com a posse do poder. (Amm. Marc. 16.7.4,8.)

20 KUEFLER. 2001, p. 24.

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A partir disso, vemos que era esperado, pelo menos por alguns, que um eunuco apresentasse características femininas, e que qualquer um que fugisse desse paradigma seria considerado uma mera exceção à regra, tanto que Marcelino diz não se recordar de nenhum outro como Eutério.

Assim, durante a República e o Principado em Roma, os eunucos ainda não eram comuns nas cortes e na esfera política. Se estivessem presentes, era mais provável que estivessem ligados ao culto de Cíbele ou que fossem atendentes domésticos e tutores para aqueles mais abastados. A partir das reformas de Diocleciano, contudo, e evidenciando-se no segundo regime de Constantino, sua presença nessas áreas de atuação cresceu continuamente até o século XII. Isso aconteceu principalmente nas cortes bizantinas, nas quais era oferecida uma grande diversidade de cargos e estatutos sociais a esses eunucos.21 Niceforitzes terá sido o último grande exemplo disso, no século XI. Depois dele, a importância dos eunucos parece ter diminuído.22

A principal função desses eunucos nas cortes ou nas casas dos que deles podiam dispor era a de servos. Entretanto, nem todos os eunucos, mesmo aqueles em serviço, eram escravos, havendo os que se castravam por consentimento próprio ou de sua família e, embora as elites das cortes helenísticas e romanas compartilhassem um gosto por eles, eunucos escravos eram artigos de luxo, mais caros que os escravos comuns, e simbolizavam o alto status daquele que os possuía.23 Renner24 afirma que “eles [eunucos] tendiam a ter (ou adquirir) um número de diferentes disciplinas que ajudavam no seu avanço dentro da corte. (...) Eles eram tipicamente educados em grego como um verdadeiro ‘homem dos sete ofícios’”.

Além disso eles também não desempenhavam as mesmas funções que esses escravos no trabalho braçal, por exemplo. Deles era sobretudo esperado a promoção de um prazer estético. Esse fato era, por sua vez, tão fundamental, que algumas fontes indicam que a beleza era um dos principais requisitos a ter em atenção aquando da aquisição desses eunucos25.

21 RENNER. 200-?, p. 02. 22TOUGHER. 2008, p. 11. 23 Id. Ibidem, p. 26. 24 RENNER. 200-?, p. 03. 25TOUGHER. 2008, p. 27.

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Embora muitas vezes ignorada pela historiografia, a prática da castração de escravos também podia ser encontrada no Império Romano com o intuito de prolongar a sua beleza e assegurar a juventude para fins sexuais. Assim sendo, e considerando a grande importância dada à atratividade dos jovens, não seria tão surpreendente encontrar referências a essa prática com propósitos sexuais.26

Nesse sentido, podemos apontar que a relação sexual/amorosa entre eunucos e outros homens não era uma prática incomum27, pois até mesmo o imperador Domiciano, oprimeiro a tornar a castração ilegal, teria tido uma paixão por um eunuco chamado Earino, assim como o imperador Titus e também Nero, que se teria casado com o eunuco Esporo. 28

Nero também “se casou formalmente com Sporus;” de acordo com Dião Cássio29, “e atribuiu a ele um dote regular de acordo com o contrato; e os

romanos assim como outros povos celebraram publicamente o seu casamento.” “Todos os gregos realizaram uma celebração em honra ao casamento;” Cássio clamou, “expressando todos os bons desejos costumeiros, Até mesmo a ponto de orar para que crianças legítimas pudessem nascer deles”. (KUEFLER. 2001, p. 100)

Além da sua utilização como escravos, eunucos passaram a ocupar também posições de privilégio dentro das cortes, o que levou muitos a se castrarem com esse intuito. Segundo o autor, os eunucos eram principalmente camareiros (cubicularii), o que significa literalmente "aquele que se encontra ao lado" ou "vigia ao lado" e responsáveis pelos quartos sagrados (praepositus sacri cubiculi). Estas eram consideradas das mais altas posições que um indivíduo poderia preencher, na qual era possível exercer grande influência política, pois, por exemplo, aqueles que quisessem ter acesso ao imperador teriam que impreterivelmente passar por

26 KUEFLER. 2001, p. 99.

27 Id. Ibidem, p. 100.

28 A esse respeito, ver Suet. Ner. 28, e Suet. Tit. 7. 29 Cass. Dio 62.28.3

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esses praepositus sacri cubiculi primeiro. Além disso, no início do século V, eunucos chegaram a alcançar até uma posição na hierarquia política que era equivalente à de um pretoriano ou prefeito.30

A respeito da influência que um eunuco poderia chegar a exercer, muitos autores costumavam demonstrar seu descontentamento acusando-os de manipularem os imperadores para benefício próprio. Segundo essa teoria, os eunucos tiravam proveito da sua posição e acesso aos imperadores para os convencer sempre a tomarem a atitude que mais lhes conviesse. Para tais autores:

(…) os eunucos eram habilidosos nas artes de bajulação e intriga; e eles alternadamente governaram a mente de Constantino através de seus medos, sua indolência, e sua vaidade. Enquanto ele via em um espelho enganoso a aparência justa de prosperidade pública, ele indolentemente permitiu que eles intercedessem às reclamações das províncias injuriadas, para acumular imensos tesouros com a venda da justiça e da honra; para desgraçar as mais importantes dignidades, pela promoção daqueles que teriam obtido em suas mãos o poder da opressão, e para gratificar seus ressentimentos contra os poucos espíritos independentes, que arrogantemente se recusaram a solicitar a proteção de escravos. (GIBBON apud TOUGHER. 2008, p. 14)

É necessário entendermos, no entanto, que havia uma interdependência entre essas duas esferas. Ou seja, o imperador necessitava do eunuco tanto, ou mais, do que o eunuco dele. Logo, o imperador os utilizava para tarefas burocráticas, assim como para absorver o criticismo.31 Da mesma forma, os eunucos o utilizavam para adquirirem prestígio, estatuto, e, claro, seu meio de subsistência.

Esse fato, obviamente, não apetecia a elite romana, que se encontrava indignada com a ideia de seres considerados tão abomináveis disporem de tanto poder e influência em relação ao imperador. A título de exemplo, a elevação de um eunuco para qualquer posição de honra, para o poeta Claudiano32, era uma usurpação não natural da autoridade política masculina por um indivíduo que não era nem sequer homem.

30 RENNER. 200-?, p. 3-4.

31 Id. Ibidem, p. 07. 32 Claud. Cons. Hon.

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Além disso, como os consideravam equivalentes a mulheres, esses romanos não aceitavam o fato de os eunucos estarem presentes nas cortes, pois, imaginar uma mulher como tendo tanta influência política seria ir contra todos os princípios da sociedade romana patriarcal.33

Outro fato que parecia ultrajante para essa elite era o de a maioria desses eunucos serem estrangeiros. Para os Romanos, portanto, os eunucos não deveriam exercer qualquer nível de influência sobre o imperador e suas decisões, mas sim se preocupar apenas com deveres menores.

Por que, então, optava-se pela utilização desses eunucos nas cortes se aparentemente isso contrariava todas as regras sociais? Primeiramente, isso pode se explicar pela tentativa de aumentar o aspecto cerimonial da corte do imperador, bem como a de criar uma luta de poder nos níveis sócio-políticos abaixo do imperador. Desse modo, o imperador garantiria a segurança de sua posição.34

Em seguida, vemos que os eunucos não apresentavam ameaça de usurparem o poder imperial ou de deixarem a hierarquia sob o comando do imperador, pois, devido à sua condição física e seu fácil reconhecimento, eles eram completamente dependentes do imperador, não apresentando aliados naturais na sociedade nem em qualquer outro retiro. Ademais, o corpo de eunucos não poderia nunca ser assimilado à aristocracia, devido a sua origem escrava e bárbara. Portanto, o governante tinha pouco a temer enquanto o status quo da estrutura hierárquica fosse mantido.

Como os “eunucos eram normalmente ainda jovens quando adquiridos, (...) eles tipicamente se tornavam muito próximos e totalmente dependentes dos seus mestres (devido a serem desprezados pela sociedade como um todo)”. A renúncia da proteção garantida por meio da fidelidade ao imperador significaria, portanto, adentrar em uma sociedade hostil ao seu sexo e etnia.35

No momento da castração, o eunuco deliberadamente se diferencia e se alenia de seus progenitores. Ao mesmo tempo, ele também se assegura de não ter nenhum descendente. Recusando-se a ligar uma geração passada a uma geração futura, o eunuco assegura a soberania do

33RENNER, 200-?, p. 2.

34 Id. Ibidem, p. 06. 35 Id. Ibidem, p. 03.

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presente, quebrando assim o círculo das gerações e do tempo. Ao fazer isso, ele quebra qualquer ligação que ele possuía com o seu mundo.

Ainda outro motivo a ser considerado para escolha de um eunuco como servo era o facto de eles serem automaticamente assimilados a figuras de status, devido à antiga tradição de eunucos em cortes (proveniente, como veremos, pelo menos do quarto milênio a.C.), e pelo seu alto valor no mercado.36

Ademais, existiriam também muitos outros motivos para se castrar alguém, como vingança, retaliação, ressentimento e insulto. Da mesma forma, a prática poderia ser utilizada para a punição de crimes como adultério ou roubo, quando um servo era apanhado (pela lei Salick).37

Uma razão recorrente para a castração é a punição. (…) O Mundo Antigo e Medieval também estavam familiarizados com o conceito de castração como punição por crimes sexuais. As leis do Médio Império Assírio especificam essa pena para homens que cometem adultério, mas também para homens que fazem sexo com outro homem. Castração como punição a estupradores e homossexuais também é conecida no Império Romano Tardio, como o cronista Malalas testemunha quando relata eventos oriundos do império de Justiniano I (527-565). O livro de leis do século oitavo bizantino Ekloga lista castração como punição por bestialidade. (TOUGHER. 2008, p. 28)

Como forma de retaliação, em Bizâncio há casos de imperadores que, ao usurparem o poder, castram o governante anterior e seus herdeiros, haja vista que eunucos não poderiam jamais aceder ao posto de imperador. Da mesma forma, há casos em que imperadores castram seus próprios descendentes como forma de garantir seu posto no poder, evitando possíveis golpes.38

O conceito de castração como arma política também é encontrada em outras culturas, como Europa do Norte medieval e Grécia antiga. No caso do Egito faraônico, castração poderia ser infligida até em inimigos mortos em batalha. (TOUGHER, p. 28, 2008)

36GERIG. 2010, online.

37ANCILLON. 1718, p. 45. 38 TOUGHER. 2008, p. 28.

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Em alguns casos, podemos conferir homens que se castravam por medo de adquirir doenças como a lepra ou a gota, preferindo, assim, privarem-se dos prazeres sexuais que poderiam desfrutar do que correrem o risco de sofrer aquelas dores e inconveniências características de tais doenças.39

As razões para se considerar a castração como solução preventiva à lepra resulta da descoberta de a doença ser na verdade parasitária, o que punha fim de uma vez por todas às dúvidas quanto a sua capacidade de contagiosidade, explicando-se também a questão da hereditariedade, teoria desacreditada na Idade Média, pela existência do Bacillus leprœ no testículo. Assim sendo, ao remover os testículos, o homem não poderia adquirir a doença.40

N'uma carta do Papa Innocencio III ao arcebispo de Paris, vemos o signatário permittir a um padre, castrado por causa da lepra, continuar a sua profissão «por excepção aos Cânones da Egreja que exclue os eunuchos das funcções ecclesiasticas.» O nosso Bernardino Antonio Gomes diz ser elle talvez o clinico que maior numero de leprosos tem observado sem que uma só vez conseguisse verificar o contagio. E recentemente, diz Doyon, Landré procurou demonstrar a contagiosidade da lepra de Cayenne, em primeiro logar, e da lepra em geral depois, sem o conseguir. (MEIRELLES. 1886, p. 46)

Além disso, houve também a associação, feita através do cristianismo, entre a lepra e o pecado, tendo em conta que se chegou a acreditar que a doença era também contraída sexualmente, ideia que se estendeu até o século XVIII. Para agravo do caso, acreditou-se ainda que a doença seria responsável pela exacerbação do apetite sexual, sendo o doente, pois, uma ameaça à comunidade em que vivia. Isto posto, ele deveria ser tratado, e, em vista disso, a castração passou a ser prescrita como medida indicada para neutralizar a ameaça representada pelo portador da anomalia.41

39 ANCILLON. 1718, p. 63. 40 MEIRELLES. 1886, p. 46. 41 MONTEIRO. online.

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Em menor intensidade, encontramos também o uso de eunucos como oferendas de sacrifícios religiosos, como no caso do movimento específico do neopaganismo germânico, com enfoque tribal, o chamado Tribalismo Heathen (do inglês Heathenry Tribal), que envolvia tanto aspectos religiosos, sociais, éticos, bem como os costumes e visão de mundo destes povos.42

Podemos, além desse, encontrar o costume da castração no contexto religioso tanto pagão quanto cristão. No caso do paganismo, temos o exemplo dos sacerdotes de Cíbele, também chamados de galli. Já no contexto do cristianismo, temos o exemplo, dentre os primeiros cristãos, dos Skoptsy russos, e dos hijras do sul da Ásia. Ademais, em Bizâncio, os eunucos tinham um lugar importante no meio religioso e poderiam ser encontrados desempenhando papéis monásticos e eclesiásticos.43

A castração ritual religiosa, no entanto, data de bem antes disto e está presente em diversos mitos através da História, espalhados em diversos países e continentes. “Tanto na Índia, Ásia, Egito, assim como em relatos encontrados em fontes gregas e romanas, acreditava-se que a prática da castração era uma maneira de fertilizar a deusa da terra – Gaia – que dava vida a todos”.44 Nesse sentido, dava-se o órgão reprodutor como forma de oferenda em troca de obtenção de uma graça maior.45

Dentre vários mitos, vale citar o de Isis e Osíris que aborda a questão da emasculação de Set. Isis, adorada em toda a bacia do Mediterrâneo, “do Egito à Fenícia, Síria e Palestina; à Ásia Menor, a Chipre, Rodes, Creta, Samos e outras ilhas do Egeu; a muitas partes da Grécia – Corinto, Argos e Tessália dentre elas; a Malta e Sicília; e, finalmente, a Roma”, é, neste mito, responsável por proteger seu filho Hórus de Set, além de ajudar Osíris, seu irmão e marido, a reviver e reinar sobre o reino dos mortos após ser assassinado por seu irmão Set.

O interessante desse mito, por sua vez, é ter a castração como elemento comum em ambas as tragédias ocorridas aos deuses. No caso de Osíris, o deus é esquartejado por seu irmão

42 WIKIPÉDIA, A ENCICLOPÉDIA LIVRE, 2018. Disponível em:

https://pt.wikipedia.org/wiki/Tribalismo_Heathen. Acesso em: 23 de jun. de 2018 43 TOUGHER. 2008, p. 80.

44 RINGROSE. 2007, p. 495 apud AUGUSTIN. 2012, p. 69. 45 AUGUSTIN. 2012, p. 69.

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Set, porém o seu pênis é o único órgão que Isis não consegue encontrar para que pudesse revivê-lo. Para vingar tal feito, seu filho Hórus decide então que o melhor castigo seria castrar Set e mandá-lo ao Saara.

Embora a castração religiosa fosse normalmente voluntária, como busca de uma castidade perfeita e exemplar, alguns dos padres pagãos do Tribalismo Heathen foram obrigados a tornarem-se eunucos, para que pudessem justamente alcançarem esse ideal de uma vida casta e pura. “É certo [do mesmo modo] que isso foi praticado entre os atenienses, e os sacerdotes de Diana de Éfeso foram igualmente obrigados a ser castrados”.46

No mesmo sentido, Valésio, nativo da Arábia, teria iniciado uma seita na qual acreditava que, para o exercício do sacerdócio, era necessário passar pelo processo de castração. Assim sendo, seus seguidores teriam não só executado a prática em si mesmos, como em todos aqueles que caíssem em suas mãos.47

No entanto, a Igreja não se mostrou a favor dessa prática e, assim, em 325 o Concílio de Niceia baniu a autocastração de clérigos. No entanto, eunucos que haviam sido castrados por terceiros poderiam ainda se tornar clérigos, demonstrando, pois, que o verdadeiro problema estava na castração voluntária.48

Da mesma forma, os autores cristãos da Antiguidade Tardia se opunham à popularidade do uso de eunucos, principalmente no que dizia respeito aos sacerdotes de Cíbele. Portanto, os rituais de castração ocorridos no mito, bem como a da prostituição sagrada, eram estrategicamente utilizados de uma forma geral por esses autores como uma maneira de confirmar a depravação e barbárie da religião pagã.

Era necessário, então, que a Igreja encontrasse uma forma eficaz para tentar tirar o foco da incômoda controvérsia presente no Evangelho de Mateus (19,12), no qual o próprio Jesus Cristo define três tipos de eunucos, sendo o último deles aquele que teria se castrado para atingir o Reino dos Céus. Desse modo, líderes ortodoxos da Igreja Católica repassaram essa mensagem

46 ANCILLON. 1718, p. 28. 47 Id. Ibidem, p. 29.

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interpretando-a com a noção de castração espiritual ao invés de literal. Por outras palavras, Jesus não estaria fazendo aqui uma apologia à castração física que originaria um eunuco, mas sim a uma castração no sentido de o fiel se manter casto e livre dos pecados da carne.

No entanto, se Jesus estava familiarizado com a castração enquanto prática religiosa, é possível que as suas palavras tenham sido na verdade literais. Mesmo se pensarmos que essas possam não ter sido as palavras que Jesus terá utilizado, poderemos interpretar que Mateus, por ter sido ele a escrever tal passagem, poderia estar recomendando aos homens cristãos que se castrassem para atingirem o paraíso.

Como, portanto, a resolução dessa questão ficava a critério da interpretação que cada um pode ter – uma vez que podemos encontrar na Bíblia passos que tanto condenam como outros que recomendam a castração –, alguns fiéis escolheram seguir as palavras de Jesus à risca, tornando-se então eunucos para o Reino dos Céus. A primeira referência a isso viria, segundo Kuefler49, em escritos de meados do século II, de Justino Mártir50, que não expressam nem surpresa nem desaprovação do ato.

Entrementes, a castração cristã prevaleceu como uma prática perigosa, tendo em vista que, como esses homens faziam parte da tradição romana que desprezava a ausência de masculinidade dos eunucos, sua aceitação poderia ameaçar o eventual êxito do cristianismo entre a aristocracia. A prática deveria, então, ser eliminada, mesmo que tivessem que passar pela palavra de Jesus Cristo.

Por fim, temos a prática da castração com o intuito de fazer cantores com as mais belas vozes, cuja extensão vocal poderia corresponder à das vozes femininas, seja de soprano, mezzo-soprano, ou contralto. Isso se dava porque a castração, que ocorria no menino entre oito a doze anos, tinha como objetivo inibir a produção e a liberação para a corrente sanguínea da testosterona, que provocam o crescimento normal da laringe masculina, a fim de evitar a

49 KUEFLER. 2001, p. 260. 50 Just. Mar. Apologia 29.2-3.

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mudança de voz na fase da puberdade, o que fazia com que a voz não baixasse uma oitava, conservando, pois, a voz aguda.51

Além da conservação da voz aguda, quando os castrati chegavam a fase adulta, a privação desse hormônio secundário masculino também os conferia uma semelhança física com as mulheres, haja vista que praticamente não desenvolviam pelos e barba. Em contrapartida, o corpo desenvolvia-se como de um homem adulto, aumentando o tórax e a capacidade pulmonar. Ademais, um maior desenvolvimento da massa muscular também fazia com que ganhassem potência vocal superior ao das mulheres.52 Em outras palavras, eles incorporavam e potencializavam tanto os seus atributos masculinos quanto os femininos que adquiriam após a castração, para que conseguissem atingir um patamar que nenhum outro cantor conseguiria naturalmente.

Com essa vantagem técnica, os castrati passaram a ser considerados como uma elite musical, o que os permitiu conquistar um status social que nenhum outro grupo de cantores atingiu em seu tempo, pois eram além de qualquer coisa homens cultos, muitas vezes grandes militares, e filósofos. Além disso, estavam também normalmente a serviço do Estado ou da Igreja, onde conquistavam um alto nível técnico e maturidade musical devido a uma intensa e longa formação musical.53

Essa prática era muito comum na Itália moderna, depois do século XVI, cujos eunucos ficaram mundialmente conhecidos como castrati, embora a prática exista desde o início do Império Bizantino, por volta de 400 d.C.. Essa prática só teve fim em 1870, aquando da sua proibição na Itália, último país que ainda utilizava o método para esse fim.

(…) Em suma, eles estão além da descrição, e ninguém pode nutrir qualquer noção deles senão aqueles que tiveram o prazer de ouvi-los, pois, embora fossem todos excelentes em seu modo, nenhum deles tinha a menor semelhança um com o outro. (Macr. 7. 16. 34, Saturnalia apud ANCILLON. 1718, p. 29.)

51 AUGUSTIN. 2012, p. 69. 52 Id. Ibidem, p. 69.

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Porém, essa prática não era garantia de que esses meninos castrados na infância viriam a desenvolver uma bela voz, o que trazia frustração aos pais e eterno lamento aos eunucos, que não podiam ter uma vida normal e conseguir sustento para sua família.

Foi-me dito que, quando eles costumavam mutilar Crianças em sua infância mais tenra, havia 200 Eunucos feitos que não se provaram bons para nada; pois quando eles cresceram, aconteceu que nenhum deles tinha uma voz tolerável, e assim os pais frustraram suas expectativas (pois eles são geralmente as pessoas que executam essa crueldade em seus filhos, na esperança de que um dia ser uma ajuda para eles, e criar o resto da família) e tantos filhos pobres tornaram-se duplamente miseráveis, primeiro mutilados em seu corpo, e em segundo lugar incapazes de obter um sustento tolerável, sendo, pois, sua voz sendo boa para nada; e é certo que nada na Itália é tão desprezível quanto um eunuco que não pode cantar. (ANCILLON. 1718, p. 38)

No entanto, a opinião dos Antigos a respeito da origem da castração de homens para se fazer eunucos, resume-se à do historiador grego Helânico54, que atribuiu a criação do primeiro eunuco à rainha oriental Atossa, de origem persa ou assíria.55

Já no período romano posterior, acreditava-se que esse pioneirismo caberia à rainha assíria Semíramis (ou Sammuramat)56. Essa rainha teria mantido sua influência durante o regime de seu filho, Adad-nirari III (810–783), e teria tido vários eunucos como seus servos e confidentes, além de também manter um bom negócio com a venda de outros eunucos.57

É nessa última teoria que a maioria dos estudiosos acreditava no século XVIII, respaldados principalmente em Amiano Marcelino58:

54 Hellanic. FGrH 687a F7c. 55 TOUGHER. 2008, p. 7. 56 Id. Ibidem, p. 7. 57 GERIG. 2010, online. 58 Amm. Marc. 14.6.17.

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28 Tomando ocasião para o discurso desta rainha, nos dá a entender que havia multidões de eunucos em seu tempo, que eles pareceriam pálidos, esbranquiçados e deformados, todos os seus traços e lineamentos distorcidos, e que sempre que alguém fosse para o exterior e visse rebanhos inteiros desses miseráveis mutilados e aleijados, não podia deixar de odiar a memória de Semíramis, aquela velha rainha que, primeiro que todos, fez jovens rapazes submeterem-se à castração. (ANCILLON. 1718, p. 2.)

Finalmente, os primeiros testemunhos sobre eunucos são encontrados no Oriente, aparecendo tanto nas civilizações do Oriente Próximo, principalmente na Assíria (tendo eles uma notável presença entre 1800 e 610 a.C.), quanto no Extremo Oriente, nomeadamente na China.59

Na China, a primeira evidência provém da dinastia de Shang, tradicionalmente datada de entre os anos 1766 e 1122 a.C. Havendo para este caso fontes muito mais abundantes do que no caso assírio, observamos que os eunucos aqui poderiam desempenhar uma grande diversidade de papéis, desde simples funcionários da corte até administradores-chave para os governantes do império, que operariam tanto dentro do espaço imperial restrito, quanto para além dele, como agentes imperiais, diplomatas e comandantes.60

No que diz respeito ao Império Persa sob a dinastia aquemênida (559-530 a.C.), eles são referidos, a partir de fontes como Heródoto, Xenofonte e Ctésias, sendo nestes autores figuras com uma participação ativa e desejável na corte: atendentes pessoais, agentes confiáveis e indivíduos influentes. Apesar disso, no entanto, não existe nenhum termo – em textos oficiais, em inscrições reais ou documentos administrativos – que em persa possa ser identificado como significando “eunuco” ou o correspondente grego εὐνοῦχος.61

Com a conquista do Império Persa em 333 a.C., por Alexandre o Grande, consequentemente, esses eunucos passaram a fazer parte também das cortes helenísticas, sendo que o próprio general macedónio herdou o eunuco de Dario III, Bagoas, mantendo o costume persa de utilização destes como atendentes do trono. Da mesma forma, eunucos também aparecem na corte

59 TOUGHER. 2008, p. 7.

60 Id. Ibidem, p. 8. 61 Id. Ibidem, p. 9.

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helenística de Ponto, sob o reinado de Mitrídates VI (c. 113-65 BC), membro de uma dinastia de origem Persa62.

Isto posto, esses indivíduos pareciam fascinar os Helenos como verdadeiros “animais exóticos”, representantes da feminização sistemática da Ásia a partir de um discurso orientalista, no qual esse homem oriental castrado seria o paradigma de todos os homens orientais, conotando feminilidade e fraqueza desprezíveis.

Os eunucos estavam carregados de simbologia, como parte de um processo de construção da identidade étnica grega por oposição. Assim, primeiramente, apareciam como escravos, o que realçava o retrato do Império Persa como o lugar onde havia um contraste entre um rei todo-poderoso e seus súditos descritos como escravos. Além disso, o fato de serem homens mutilados era uma parte marcante desse antagonismo, pois, não sendo verdadeiros homens, contribuíam para a representação do Império Persa como efeminado e, portanto, fraco.63

Nesse sentido, em muitas fontes greco-romanas encontramos os termos para oriental e efeminado como sinônimos. Além disso, podemos notar em autores romanos, tendo em conta que viviam em uma sociedade na qual prevalecia um ideal militar, que eles relacionavam a feminilidade e a fraqueza moral desses orientais ao motivo de suas derrotas marciais e à sucessiva ruína dos impérios da Assíria, Esparta, Pérsia e Macedônia. Assim, buscavam na oposição entre o que era masculino e o que não era uma explicação para as mudanças que estavam ocorrendo, enfatizando que a rejeição dos homens da uita militaris e da sua virilidade lhes havia custado o império.64

Os Romanos, todavia, haviam tido outros meios de entrar em contato com esses eunucos. Segundo Tougher (p. 10, 2008), entre outras coisas, em 204 a.C. o culto da deusa Cíbele tinha sido introduzido na cidade a fim de oferecer assistência aos Romanos em sua guerra com Cartago. Muito embora a devoção a essa deusa estivesse centrada na Ásia Menor, na Frígia, uma vez que os Romanos acreditavam que eles eram descendentes de Eneias, um troiano, o culto de

62 TOUGHER. 2008, p. 9.

63 LENFANT. 2012, p. 275. 64 KUEFLER. 2001, p. 47.

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Cíbele em solo romano pode ser considerado na verdade como um culto ancestral, e não estrangeiro.

De forma similar, sabe-se da existência, desde o século II a.C. até os tempos modernos, de um culto na Índia, conhecido como os Hijras. Trata-se de uma comunidade religiosa de homens devotos a Bahuchara Mata, deusa deusa da fertilidade e castidade, que se auto-castram ritualisticamente quando já adultos. Como parte do ritual, esses homens também adotam o vestuário e o comportamento femininos. É o ato da extirpação dos seus genitais, por sua vez, que os define como Hijras, nem homem nem mulheres, ou então homens femininos sagrados. Essa castração é necessária, assim, para que eles, por não poderem gerar vida, possam se restringir a realizar rituais. O mais interessante é que eles performam, com danças e músicas, em casamentos e em nascimentos de crianças, normalmente do sexo masculino. Ou seja, somente eles conseguem agregar as duas características que agradam à deusa: ao serem castrados, são os mais perfeitos castos, e, ao mesmo tempo, realizam rituais intimamente ligados à fertilidade, como o casamento e o nascimento.65

No entanto, essa prática não pode ser resumida a o que muitos tendem a considerar como um “desvio de moral” do Oriente, haja vista que ela não se restringe a essa parte do globo e, em realidade, pode-se encontrar exemplos de eunucos ou de pessoas que vivem num gênero intermediário por todas as partes urbanizadas do mundo, exceto no nordeste da Europa e nas ilhas inglesas. Um exemplo de gênero intermediário fora da influência oriental são os berdache, existentes na América pré-colombiana, desde as terras dos índios Delaware até os impérios Astecas e Incas.

Em resumo, os berdache são normalmente homens biológicos que podiam vestir-se, comportar-vestir-se, e falar da forma como era esperado de mulheres, além de assumirem os papéis sociais dos dois gêneros66:

O status de berdache entre os índios norte-americanos era composto por pessoas, normalmente homens, que permaneciam membros do seu gênero

65 RINGROSE. 2003, p. 09. 66 Id. Ibidem, p. 09.

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31 biológico mas assumiam características sociais importantes do outro gênero. Concentrados no oeste e centro-oeste da América do Norte, os

berdache eram poucos. O status tendeu a desaparecer depois que as

sociedades indígenas ficaram sob controle político externo. Berdache homens, particularmente, combinavam os papéis sociais de ambos os gêneros. Eles podiam se vestir como mulheres, combinar roupas masculinas e femininas, ou modos alternativos de se vestir. Seu papel ocupacional permitia uma combinação de trabalho masculino e feminino para alcançar produtividade excepcional. A mistura de gêneros também caracterizava seu comportamento sexual; muitas vezes homossexuais, eles mostravam fortes tendências para uma orientação bissexual. (...) Sugerimos que enquanto as mulheres pudessem se engajar em atividades masculinas de alto prestígio, como a guerra, sem mudar seu status de gênero, elas insistiam que os homens que entravam na esfera ocupacional feminina assumissem um status de gênero intermediário. (CALLENDER, Charles et al. 1983, abstract)

De igual forma, observamos a existência dos “dois-espíritos”, encontrados em quase todas as culturas indígenas americanas. Em algumas delas, esses “dois-espíritos” são considerados pessoas que nasceram com uma balança entre espíritos masculinos e femininos e, por conta disso, possuíam papéis espirituais específicos em muitas dessas comunidades. Assim como eunucos, eles são vistos como intermediários entre o masculino e o feminino, o espiritual e o material, entre os indígenas americanos e os não indígenas.67

Diferentemente da cultura européia ocidental, em muitas dessas etnias, as crianças possuíam total liberdade para explorar o mundo e escolherem o caminho que gostariam de seguir, através de uma cultura de não interferência. Assim, ao invés de punições e elogios, elas cresciam num ambiente de aprendizado empírico, por meio da observação de exemplos dos mais velhos, no qual a única interferência seriam histórias de vida e aconselhamentos. Dessa maneira, não existam padrões rígidos de gênero e sexualidade.68

67 WILSON. 1996, p. 305.

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2 - EUNUCOS NA MESOPOTÂMIA

A partir do III milênio a.C., a Mesopotâmia inicia o chamado período da Alta Civilização (3200-2100 a.C.), no qual novas configurações políticas e organizações sociais de matriz urbana emergem, alternando-se entre cidades-estados e monarquias centralizadas. Nesse período, o rei era considerado uma instituição destinada aos humanos e a realeza planejada pelos deuses. Nenhum soberano terá excedido sua área de poder para além da sua cidade-estado e além do seu tempo: o período acádico. Cada cidade-estado, por sua vez, era politicamente independente e consistia num centro urbano e em populações e áreas não desenvolvidas que dependiam daquele.69

Posteriormente, entre 1500 e 1200 a.C., o Próximo Oriente se tornou um sistema interestadual integrado, que se estendia do território do actual Irão ao Mar Egeu, e da Anatólia (atual Turquia) ao sul do Egito e Núbia. Essas regiões englobavam os grandes estados micênicos (nas regiões da Grécia e Turquia ocidental), hititas (Turquia), mitanianos (noroeste da Mesopotâmia), assírios (nordeste da Mesopotâmia), cassitas (Babilônia, ou Mesopotâmia meridional) e elamitas (sudeste da Mesopotâmia), além dos egípcios.70

No início do milênio, os Assírios estavam no controlo do poder e, por volta de 640 a.C., no auge do seu domínio, eliminaram qualquer oposição, passando a controlar o território que ia do Irão ao Egito, até a queda do Império, trinta anos depois. Com seu fim, os Assírios perderam posse da Babilônia ao sul e uma dinastia nativa surgiu sob o comando de um antigo oficial assírio, Nabopolassar (626–605). Os babilônios, por conseguinte, tomaram poder dos territórios assírios na Mesopotâmia, Síria e Palestina, formando o que é conhecido hoje como Império Neobabilônico (626 a.C. a 539 a.C). Os territórios ao norte ficaram em posse dos Medos.71

Por fim, em meados do século VI a.C., os Persas do sudoeste do Irão começaram a construir um um sistema que alguns historiadores classificam de «império», conquistando os

69 NEMET-NEJAT. 1998, p. 19-22. 70 GERIG. 2010, n.p.

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Medos em 550 a.C., os Lídios em 547 a.C. e os Babilônios em 539 a.C. O resultante Império Persa Aquemênida (559-330 a.C.), assim designado pelo nome dinástico da família real, eventualmente incluiria o Próximo Oriente Antigo, que se estendia do vale do Indo ao norte da Grécia e da Ásia Central ao Egito, duraria mais de duzentos anos, antes de cair sob Alexandre-o-Grande, e conteria um território ainda maior do que os impérios precedentes.72

As sociedades do Próximo Oriente Antigo, sobretudo as semitas e indo-europeias, eram essencialmente patriarcais, sendo o homem, portanto, o chefe da família e responsável pela sua provisão. Ademais, sua mulher e seus filhos eram-lhe hierarquicamente inferiores. Sendo assim, as mulheres não possuíam total independência e eram consideradas incapazes de se administrarem a si próprias, necessitando, portanto, de um tutor masculino, que correspondia, antes de essa mulher se casar, ao seu pai, e, depois do casamento, ao seu marido.73

Além do mais, o matrimónio era fundamentalmente monogâmico, até mesmo no que podemos observar no tocante aos casamentos de suas divindades. Nesse sentido, a virgindade da noiva era pré-requisito fundamental, tendo em vista que era entendida como o único elemento que poderia garantir que a linhagem do marido fosse seguramente perpetuada.74

De acordo com os códigos de leis e processos judiciais babilônicos, um homem não poderia tomar mais do que uma mulher ao mesmo tempo – com poucas exceções. Por exemplo, o Código de Hammurabi (ca 1750 a.C) permitia que um homem tomasse uma segunda esposa quando a sua primeira era incapacitada por doença. No entanto, ele não poderia se divorciar de sua primeira mulher, a quem ele era obrigado a sustentar até a sua morte (109 §148). No caso de sacerdotisas casadas, porém celibatárias, a segunda mulher normalmente era sua irmã.75

No entanto, o casamento não era considerado um Me (ordem moral e cósmica similar à Maat egípcia, que abrangia as noções de verdade, justiça, equilíbrio e ordem), na

72 GERIG. 2010, n.p.

73 NEMET-NEJAT. 1999, p. 87. 74 Id. Ibidem, p. 88-91.

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Mesopotâmia, e era menos estimado do que ter filhos, como observamos na Epopeia de Atrahasis (1.246-305). Assim sendo, ter relações sexuais era considerado um me, mas era valorizado além de seus méritos procriativos.76

Entretanto, é importante levarmos em conta que a reconstrução histórica da imagem da mulher nas culturas e sociedades do meio mesopotâmico parece ainda fortemente influenciada pelas opiniões e julgamentos formulados pela tradição clássica, transmitida e transformada pela cultura ocidental judaico-cristã. Por conta disso, vemos regularmente intelectuais do Ocidente a descrever a mulher mesopotâmica como uma fera lasciva e amoral, potencialmente perigosa se não fosse controlada, e governada pelos homens e pelas estruturas da família e do Estado.77

Nas sociedades mesopotâmicas antigas, a identidade sexual era determinada pelos órgãos sexuais, enquanto a identidade de gênero era produto de um processo de socialização. Em outras palavras, homens e mulheres eram socialmente direcionados a apresentarem certas características e a desempenharem determinados papéis. Nesse sentido, por exemplo, era esperado que os homens possuíssem atributos heróicos, de guerreiros. As mulheres, por sua vez, deveriam possuir características mais relacionadas com as emoções, como empatia e piedade, e não relativas à guerra. 78

Isto posto, essas distinções pressupunham que os dois gêneros devessem desempenhar papéis entendidos como heterossexuais. Ainda assim, orientações homossexuais eram permitidas em algumas circunstâncias, como a que se criava entre certos participantes no culto de Ishtar (a Inanna suméria), ao se considerar que estariam, na verdade, relacionando-se com a deusa. Conquanto, um homem deveria evitar relações homoeróticas passivas, pois se acreditava que estas rebaixavam o status do homem, além de serem punidas com recurso à lei de talião.79

Na realidade, nos parece que o real problema a respeito dos que hoje entendemos como homossexuais, de acordo com os Mesopotâmios antigos, era o fato de eles não poderem gerar filhos por meio dessas relações. Isso porque observamos o mesmo tipo de ressalva relativo às

76 LAUNDERVILLE. 2010, p. 329. 77 MASETTI-ROUAULT. 2009, p. 130. 78 LAUNDERVILLE. 2010, p. 327-329. 79 Id. Ibdem. 2010, p. 330.

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prostitutas, que desempenhavam papéis heterossexuais, pois aparentemente possuíam alguma forma de controlo de natalidade.80

Sobre esse aspecto, é importante salientar que a relação sexual consentida entre um homem e uma mulher solteira (fosse ela prostituta ou não) não era necessariamente repreensível pelo ângulo moral. Mas era um ato não recomendável a partir do âmbito legal, pois poderia perturbar as vias normais relativas a questões patrimoniais. Em outras palavras, uma mulher solteira seria uma ameaça disruptiva à integridade econômica do casamento, da herança e da estabilidade da fábrica social.81

A expectativa social era a de um indivíduo hoje classificado como cisgênero, isto é, que se identifica com o sexo biológico com o qual nasceu, e que soubesse bem as distinções entre o sexo masculino e feminino. Entretanto, em alguns mitos o ser humano primordial, como o presente na história de Atrahasis82, não apresenta sexo definido.

Com efeito, esse ser humano primordial teria de ter sido andrógino (ou sem sexo definido) uma vez que, segundo o mito de Atrahasis, a partir de partes dele, juntamente com pedaços de argila, são criados catorze seres humanos subsequentes, de ambos os sexos que, só então, passaram a ter um sexo definido. Estes são descritos como sete homens e sete mulheres, que poderiam procriar entre si:

80 NEMET-NEJAT. 1998, p. 140.

81 FARAONE, McCLURE (Ed.), 2006, p. 35.

82 A epopéia babilônica de Atrahasis, escrita não depois de 1700 a.C., é uma antiga história dos primórdios da humanidade, que relata a história do Homem a partir dos eventos que resultaram em sua criação até depois do dilúvio (FRYMER-KENSKY. 1977, p. 147).

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36 Geshtu-E, um deus que tinha inteligência

Eles abateram em sua assembléia. Nintu misturou barro

com sua carne e sangue. (...)

Um fantasma veio à existência da carne do deus, e ela proclamou-o como seu sinal de vida.

O fantasma existia para que não se esquecesse o deus morto. Depois que ela misturou aquela argila,

Ela chamou os Anunnaki, os grandes deuses. Os Igigi, os grandes deuses

Cuspiram sobre o barro Mami fez sua voz ser ouvida E falou aos grandes deuses Eu realizei perfeitamente O trabalho que vocês ordenaram.

Vocês abateram um deus junto com sua inteligência. Eu aliviei vocês do seu trabalho duro,

Eu impus sua carga no homem. Vocês deram som ao homem Vocês deram som à humanidade. Eu desfiz o grilhão e concedi liberdade. (...)

Enki e a sábia Mami

Entraram no quarto do destino. As deusas do ventre estavam reunidas. Ele pisou o barro na presença dela; Ela continuou recitando um encantamento,

Enki, permanecendo em sua presença, fez com que ela o recitasse Quando ela terminou seu encantamento,

Ela retirou catorze pedaços de barro, E colocou sete pedaços à direita Sete à esquerda.

Entre eles, ela colocou um tijolo de barro.

Ela fez uso de um junco, abriu-o para cortar o cordão umbilical, Chamou as sábias e experientes

Deusas do ventre, sete e sete. Sete homens criados

Sete mulheres criadas,

Pois a deusa do ventre é criadora do destino. Ele ... eles dois a dois

... eles dois a dois na presença dela.83

83 ATRAHASIS, TAB I. IV-V. Tradução de Stephanie Valley, disponível em: http://geha.paginas.ufsc.br/files/2017/04/Atrahasis.pdf.

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