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Um motivo frequente de confusão quando se discute o multiplicador é a acusação de que neste não estão presentes as inter-relações setoriais, o que significa dizer, de maneira caricata, que tanto faz o investimento ser feito na indústria automobilística, com grandes efeitos de encadeamento, quanto no setor de empréstimos pessoais, com poucas interligações setoriais. Algumas observações necessitam ser feitas nesse particular, visto que tomar o investimento no agregado não é o mesmo que desconsiderar os encadeamentos setoriais; dito de outro modo, não necessariamente os que utilizam somente o investimento agregado ignoram a existência de relações intersetoriais.

Se trabalhássemos com um período teórico bem definido, que não se confunde com o 45 Curiosamente, a interpretação de Chick (1983) para uma teoria estática, em termos de uma mudança sustentada no nível de uma variável, seria respaldada por Harrod (1939a: 15), através da imagem de um exercício de estática comparativa no qual é mantido para sempre o novo nível de uma variável exógena e se analisa o que ocorreu com as variáveis endógenas. No entanto, para uma teoria dinâmica, a proposta de Harrod (ibid) vai no sentido não de acompanhar a sucessão de períodos, mas de imaginar que essa mudança, uma vez posta, se dá permanentemente, se adequando assim a uma análise de dada taxa de variação.

46 Mais sobre a travessia no capítulo 5. Nesse sentido da sustentabilidade da trajetória, ver Macedo e Silva e Dos Santos (2011: 120).

período do multiplicador, no qual, por hipótese, todos os efeitos de encadeamento se esgotassem, seria somente a partir daí que o multiplicador keynesiano dos gastos autônomos deveria ser considerado; antes disso, teríamos que levar em conta os efeitos diretos e indiretos de um gasto inicial sobre o montante de emprego ou de renda. A esse volume de emprego, que inclui o emprego direto, gerado no próprio setor onde o gasto é efetuado, e o indireto, gerado ao longo da cadeia produtiva, Kahn (1931) denomina emprego primário, nomenclatura adotada por Keynes em oportunidades posteriores (Keynes, 1933a: 342; 1936: 113). Já no conhecido panfleto em parceria com Henderson, Keynes (1929: 102 et seqs) deixa claro que os empregos indiretos têm que ser levados em conta quando se considera um gasto inicial47, sendo que tais impactos

(aqueles que incidem ao longo da cadeia) constituem, segundo Keynes (ibid: 106), o “ABC da economia”.

Nada nos garante, no entanto, que em um período contábil qualquer os componentes da demanda final tomados como autônomos corresponderão exatamente ao resultado final de todas as repercussões típicas das relações intersetoriais. De outro lado, tentar tomar esse agregado (resultado de interações passadas ainda não esgotadas) e desdobrá-lo para um mesmo período adotado para o multiplicador da renda seria adotar uma hipótese demasiado heroica quanto à coincidência das defasagens nas relações intersetoriais e naquelas características do multiplicador. Ainda mais grave, do ponto de vista dos agregados nominais, mesmo que tomássemos somente os impactos diretos ao longo da cadeia, considerando-os pertencentes a um mesmo período, incorreríamos num erro de dupla contagem: se tomamos, por exemplo, os investimentos em determinado período e tentamos rastrear os encadeamentos e contabilizar a renda gerada em cada etapa da cadeia, obtemos uma medida para o valor bruto da produção (em decorrência dessa alteração na demanda final), quando sabemos que a renda é convencionalmente medida em termos de valor adicionado48.

Tentativas explícitas para contornarmos esse problema terão que aguardar até o terceiro 47 “Não há nada fantasioso ou inconsistente sobre a proposição de que a construção de estradas requer uma demanda por materiais para estradas, que requer uma demanda por trabalho e também por outras mercadorias, o que, por seu turno, requer uma demanda por trabalho. Essas reações são da própria essência do processo industrial” (Keynes, 1929: 105).

48 Para o caso do multiplicador do emprego, como exposto por Kahn (1931), a ideia é captar o volume de emprego gerado, direta e indiretamente, por um gasto inicial antes de se estudar as repercussões desse gasto em termos de renda e aumento do consumo (o efeito multiplicador propriamente dito), portanto, de um aumento ulterior do emprego. Em termos de emprego ou de quantidades de mercadorias (como seria o caso originalmente imaginado para as repercussões dos modelos insumo-produto), não há qualquer contradição. O problema surge quando tomamos uma medida de renda nominal que, por definição contábil, tem que ser igual à soma das categorias finais de gastos (ou do valor adicionado em cada etapa, não da soma do consumo intermediário).

capítulo, quando esboçaremos uma explicação para o comportamento do investimento em termos de encadeamentos intersetoriais. Até lá, trataremos os componentes autônomos de gasto, dentre os quais incluímos o investimento, como dados em períodos arbitrários de tempo, o que não causa qualquer prejuízo em termos da análise do multiplicador keynesiano dos gastos autônomos. Forneceremos posteriormente um tratamento específico para o comportamento do investimento que nos permitirá, fazendo uma mediação adequada entre a concepção teórica e as relações intersetoriais observadas, integrar dois períodos teóricos de tempo a fim de determinar como uma parcela (menos agregada) específica do investimento pode gerar repercussões ao longo da cadeia, atingindo o multiplicador dos gastos autônomos e gerando repercussões de outra natureza.

Admitindo, no entanto, que estamos tomando o multiplicando no sentido de gastos primários, prossegue Keynes (1929: 106):

“Mas isso não é o total da estória. Adicionalmente ao emprego indireto de que estamos tratando, uma política de desenvolvimento promoveria o emprego de outras maneiras. O fato de que um grande número de trabalhadores que agora estão desempregados estaria recebendo salários ao invés de seguro-desemprego significaria um aumento no poder de compra efetivo que daria um estímulo geral ao comércio” 49.

A esse emprego “que é gerado desse modo na produção de bens de consumo será denominado emprego secundário” (Kahn, 1931: 174), denominação também adotada por Keynes (1936, capítulo 10) e incorporada antes da transformação dos itens correspondentes ao emprego para o multiplicador de renda.