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4 SUPRANACIONALIDADE

4.1 GENERALIDADES

De acordo com Furlan (2008, p. 117), o termo supranacionalidade ainda é bastante controverso para a literatura. Para Stelzer (2003, p. 94), trata-se de um dos conceitos mais difíceis de explicar, embora os países se apresentem cada vez mais interdependentes no cenário internacional.

O conceito de supranacionalidade, na visão de Gomes (2003, p.143), não se encontra expresso no Tratado da Comunidade Européia, mas surgiu com a criação da Comunidade Européia do Carvão e do Aço (CECA), por meio do Tratado de Paris, de 1951. Nesse documento, em seu artigo 9º, foi empregado pela primeira vez o termo “supranacionalidade”, reconhecendo a existência de um poder superior ao das autoridades nacionais dos países-membros, a chamada Alta Autoridade, cuja função era vigiar o funcionamento de todo o regime. Tal instituição era formada por personalidades independentes e a sua presidência conferida a uma personalidade indicada por acordo comum dos governos dos Estados, sendo suas decisões obrigatórias para os países-membros. Sua criação somente foi possível devido à vontade soberana dos países-membros, que lhe delegaram certas competências até então reservadas às autoridades nacionais.

Segundo Stelzer (2003, p. 95), a CECA tinha como finalidade instituir um mercado comum, de forma que os produtos carboníferos e siderúrgicos pudessem circular livremente. Como os Estados passaram a sentir a necessidade de ampliar o comércio para além do carvão e do aço, expandiram também para o âmbito da energia atômica, com a Comunidade Européia de Energia Atômica (CEEA), e da integração econômica, com a Comunidade Econômica Européia (CEE).

De acordo com Fernandes (2002, p. 183), a CEEA foi criada com a finalidade de garantir o desenvolvimento industrial e o controle dos recursos nucleares, assim como a sua utilização para fins pacíficos. A CEE, por sua vez, tinha como objetivos o desenvolvimento harmonioso das atividades econômicas da

comunidade e a sua expansão permanente, assim como também visava o estreitamento dos laços entre os países-membros, por meio da livre circulação de mercadorias, capitais, pessoas e serviços, configurando-se, desse modo, um mercado comum.

Fernandes (2002, p. 183) destaca que após diversas crises internas na composição das Comunidades Européias, verificou-se a ocorrência de intensas reformas nestas por meio do Ato Único Europeu, de 1986, e do Tratado da União Européia ou Tratado de Maastricht, de 1992. Com o Ato Único Europeu, as Comunidades passaram a deter maior força decisória, bem como constatou-se uma ampliação das suas competências, o realce das políticas comunitárias e dos fundos de amparo financeiro, como forma de atribuir coesão ao sistema e equilíbrio entre os seus componentes. Nesse contexto, a Comunidade Econômica Européia começou a se despontar. Com o Tratado de Maastricht, foi criada a União Européia, fundada nas Comunidades Européias (caráter comunitário).

Conforme Stelzer (2003, p. 95) observou-se uma firme convicção da liberação dos movimentos, dos fatores de produção e dos intercâmbios comerciais em nível europeu, por meio da extinção das barreiras aduaneiras, assim como da crescente integração dos mercados, o que exigiu dos Estados-partes uma aproximação através da unidade política. Em alguns anos, constatou-se a intensificação desse processo após a instituição do Ato Único e do Tratado de Maastricht.

Neste sentido, Stelzer (2003, p. 95) destaca que:

É como se o fenômeno comunitário possuísse um núcleo duro – a supranacionalidade, em sua essência – em torno do qual gravitam componentes, que o elevam à categoria de organismo superior. Estes componentes, atraídos pela força central, fazem com que a progressividade do fenômeno acabe por se impor, inexoravelmente.

Para Stelzer (2003, p. 95), o núcleo supranacional advém da dinâmica verificada no cenário mundial. Conforme o fenômeno da globalização foi evoluindo, o núcleo fortaleceu-se implacavelmente, visto que representou um meio pelo qual os países conseguiram se proteger das agressões externas, ao se unirem sob o manto da comunidade supranacional.

Com o Tratado da União Européia, Stelzer (2003, p. 96) afirma que a intensificação da integração se deu em diversos âmbitos: consagrou o espaço comunitário por meio da denominação União Européia, instituiu novos direitos para

os cidadãos europeus, com a cidadania da União; atribuiu mais poderes ao Parlamento; ampliou o âmbito de responsabilidade da União Européia ao se expandir para os setores de proteção ao consumidor e ao meio ambiente, infra- estrutura de transportes entre outros.

De acordo com Stelzer (2003, p. 97), devido às oscilações existentes no âmbito das relações internacionais, bem como pelas circunstâncias econômicas provenientes da globalização, as nações européias não viram outra alternativa senão o rendimento a uma organização supranacional.

Assim, Campins (1996 apud STELZER, 2003, p. 97) entende que:

O fenômeno é próprio da sociedade internacional contemporânea e reflete o fato de os objetivos estatais, em certas ocasiões, excederem a capacidade de o Estado realizar adequadamente a sua função, a menos que se integre em um esquema de organização conjunta com outros Estados.

Stelzer (2003, p. 97) salienta que na evolução do processo de integração da União Européia, é evidente o objetivo e a legitimação do fenômeno supranacional. Sua finalidade precípua é garantir a união total dos seus partícipes, visando proporcionar o desenvolvimento econômico do bloco e o bem-estar da sociedade.

Böhlke (2003 apud FURLAN, 2008, p. 118) salienta que “os interesses ou valores comuns não serão de grande valia se não houver poderes efetivos para exigir a observância desses interesses ou valores em prol do objetivo comum”. Tais poderes envolvem a adoção de decisões que comprometam os países, a adoção de regras de direito que devam ser cumpridas pelas nações, bem como a pronunciação de decisões judiciais que prolatem o Direito.

De acordo com Kerber (2001, p. 86), a criação das Comunidades demandou, para o seu funcionamento, um sistema normativo capaz de propiciar a consecução de seus arrojados objetivos e de sua efetiva consolidação. Assim surgiu o direito comunitário.

Casella (1994, p. 247) define o direito comunitário como:

Ramo do direito cujo objeto é o estudo dos tratados constitutivos da Comunidade Européia, bem como a evolução jurídica resultante da regulamentação de caráter derivado, combinada com a aplicação jurisprudencial progressiva dos dispositivos desses mesmos Tratados.

De acordo com Gomes (2003, p. 142), o direito comunitário “constitui um novo sistema jurídico, [...] desenvolvido a partir dos tratados constitutivos da União

Européia, que se adaptaram às necessidades do bloco econômico com regras, princípios e procedimentos próprios.” Sua aplicabilidade originou-se de longa construção jurisprudencial do Tribunal de Justiça das Comunidades Européias (TJCE).

Kerber (2001, p. 87) também entende que o direito comunitário representa atualmente um campo novo, pois, em virtude da sua especificidade, não pode ser incluído no ramo do direito internacional clássico ou das organizações internacionais. Para Gomes (2003, p. 142), o direito comunitário tem natureza autônoma em relação às ordens jurídicas internas dos países-membros derivada dos próprios dispositivos constitucionais dos Estados, que assentiram no sentido de delegar determinadas competências soberanas aos órgãos comunitários.

Conforme Silva (1999, p. 44):

O direito comunitário, por sua vez, só se faz presente no processo de integração acompanhado da delegação de soberania e da formação de uma esfera político-jurídica supranacional. Embora remonte a um direito de integração, o direito comunitário pressupõe um estágio bastante avançado de interação econômica, política, social e jurídica entre Estados soberanos.

De acordo com Furlan (2008, p. 120), o direito comunitário representa uma nova forma de pensar o Direito em se tratando de processos integrativos supranacionais, visto que o direito interno está justamente apoiado na soberania.

A supranacionalidade, segundo Gomes (2003, p. 143), é um dos mais relevantes suportes do direito comunitário, que colaborou de modo decisivo para a consolidação dos objetivos da União Européia, tornando possível o desenvolvimento de políticas de natureza comunitária, harmonizadas com a legislação dos países- membros, bem como a uniformidade na tomada de decisões.

Na visão de Stelzer (2003, p. 98), em se tratando de uma criação do Direito, a União Européia destaca-se em razão da unificação de todo o continente europeu por meio de um ordenamento jurídico. Dessa forma, não faz uso da força ou da submissão para alcançar seus objetivos, mas se vale da força do Direito.

Conforme Furlan (2008, p. 124), o direito comunitário, normalmente, é composto por três aspectos essenciais: a aplicabilidade imediata, o efeito direto e a primazia. Esses aspectos não são encontrados na seara do direito internacional público, tampouco na do direito de integração.

No entender de Furlan (2008, p. 124), a norma comunitária é de aplicabilidade imediata, pois no momento em que é instituída, adquire

automaticamente o status de direito positivo no ordenamento jurídico das partes envolvidas no processo de integração. As normas comunitárias não precisam de procedimento parlamentar nacional específico para entrar em vigor, surgindo, dessa forma, com ampla força normativa, em contraposição às regras de direito internacional.

De acordo com Furlan (2008, p. 124), em função do princípio da aplicabilidade direta, o direito comunitário tem como traço característico a composição de uma ordem supranacional de incidência imediata no ordenamento jurídico dos países-membros da comunidade.

Quanto ao efeito direto, Isaac (1997 apud FURLAN, 2008, p. 124) afirma: Não somente o direito comunitário se insere automaticamente no ordenamento dos Estados-membros, mas também possui uma aptidão genérica de complementar diretamente o patrimônio jurídico dos indivíduos titulares de direitos subjetivos e/ou obrigações, tanto em suas relações privadas quanto em suas relações com os Estados aos quais pertencem.

Furlan (2008, p. 125) salienta que, de acordo com o efeito direto, qualquer pessoa passa a ter direito de demandar que seu juiz imponha as normas comunitárias. Tal efeito também institui o direito subjetivo do cidadão europeu em relação à ordem jurídica da comunidade.

No que concerne à primazia, segundo Furlan (2008, p. 125), verifica-se que a supremacia do direito comunitário sobre as ordens jurídicas é imprescindível para a efetividade das normas provenientes do processo de integração. O primado desse ramo do Direito sobre as constituições nacionais advém da própria natureza das Comunidades e exclui qualquer referência à cronologia ou à especialidade das normas nacionais em questões de caráter comunitário.

Além desses três aspectos mencionados por Furlan, Soares Filho (2003, p. 110) acrescenta mais algumas características do direito comunitário: a) a atribuição aos cidadãos, e não somente aos Estados, da condição de sujeitos de direitos; b) a criação de um direito processual e procedimental, que busca, mediante uma jurisdição obrigatória, investigar as violações ao direito comunitário e aplicar as sanções correspondentes; c) a formulação da responsabilidade da Comunidade Européia diante dos prejuízos que possa ocasionar por infrações ao direito comunitário, e d) a própria independência das instituições comunitárias, respaldada por uma competência inclusive de natureza legislativa, que, não obstante seja geral, tende a incrementar-se progressivamente.

No que concerne às fontes do direito comunitário, Nakayama e Sávio (2003, p. 650), distinguem basicamente as fontes de direito primário e de direito secundário, que também recebem a denominação de fontes primárias (ou direito originário) e fontes secundárias (ou direito derivado), respectivamente.

Em relação ao direito primário, Nakayama e Sávio (2003, p. 650) destacam: os textos institutivos; o Tratado que instituiu a CECA (1951), os Tratados que instituem a CEE e a CEEA (1957); os Tratados de adesão do Reino Unido, Irlanda, Dinamarca (1972), da Grécia (1979), da Espanha e Portugal (1985), da Áustria, Suécia e Finlândia (1994); o Ato Único Europeu (1986); o Tratado da União Européia (1992); os Tratados de fusão dos executivos (1965); os Tratados financeiros (1970 e 1975); o Tratado de Amsterdã (1997) e o Tratado de Nice.

Em relação ao direito secundário, Nakayama e Sávio (2003, p. 653) distinguem: a) regulamentos, que, dotados de natureza comunitária, criam Direito igual para todos na União Européia, com aplicabilidade direta; b) diretivas, que não definem a matéria com precisão, como acontece com o regulamento; c) decisões, que são obrigatórias em todos os seus elementos, porém somente para os destinatários que indicar (particulares ou países-membros), individualmente considerados; e d) recomendações, pareceres e resoluções, que não possuem natureza vinculativa.

Ainda em relação às fontes do direito comunitário, Stelzer (2003, p. 100) ainda acrescenta: 1) as jurisprudências do TJCE, que possibilitam por meio da ação judicial, a reposição da legalidade, bem como a criação de princípios jurídicos no ordenamento comunitário; 2) as fontes externas, formadas pelos acordos integrantes do direito comunitário; e 3) as fontes não-escritas, normalmente chamadas de princípios gerais de direito, que possuem grande relevância na União Européia.

Rocha (1998 apud FURLAN, 2008, p. 125) destaca que:

É de se considerar que o direito comunitário caracteriza-se pela ênfase no princípio da igualdade dos Estados formadores da comunidade, no bojo da qual ele nasce; pelo princípio da reciprocidade, porque, se não houver correspondência estrita entre as competências que cada qual das entidades-partes transfere [...] ao órgão supranacional do qual ele emana, haverá um desequilíbrio que descaracteriza a própria base da Comunidade; e pelo princípio da solidariedade pelo qual se fundamenta a busca de um conjunto de elementos que amainem as diferenças existentes nas diversas entidades.

No Mercosul, conforme Furlan (2008, p. 126), não se pode fala em direito comunitário. O conflito de normas aplicáveis aos Estados-partes deste bloco não é solucionado pelo direito comunitário, mas consoante às relações de direito interno e internacional. É cabível falar tão-somente em direito da integração em se tratando do Mercosul, quando se tratar das normas aplicáveis de comum acordo aos países- membros. Tal ramo é o conjunto de regras de Direito das Gentes elaborado e aplicável no interior de um “processo de integração de Estados conformadores de uma pessoa jurídica de direito internacional, derivado da integração das partes e recepcionado nas respectivas ordens jurídicas internas”. O direito da integração é considerado por alguns estudiosos uma especialidade do direito internacional; outros o consideram uma especialidade do direito constitucional. Entretanto, não é um ramo dotado de autonomia, ao contrário do direito comunitário.

Gomes (2003, p. 153) possui o mesmo entendimento, pois afirma que o direito da integração corresponde a um “ramo do direito internacional público que trata dos mecanismos de formação dos blocos econômicos entre os países”.

Enfim, o direito comunitário, segundo Soares Filho (2003, p. 110), representa a própria existência do ordenamento jurídico comunitário, constituindo-se um poderoso fator de integração política.

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