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Uma vez que o posicionamento do usuário constitui um aspecto fundamental da conectividade, dos processos de comunicação e de interação por meios dos serviços comerciais de busca por parceiros, a espacialidade emerge como uma questão crucial na definição desse contexto.

A localização remete à noção de lugar e aciona um conjunto de convenções em torno ambiente em que tais tecnologias são utilizadas. A consciência individual sobre a localização não é a mesma coisa a consciência sobre o seu uso, isto é, saber a posição geográfica é diferente de saber sobre a posicionalidade das convenções morais de um lugar. O significado de um determinado posicionamento geográfico depende também das atividades, condutas e moralidades que ali são desenvolvidas. Em termos sociológicos, a partir dessas noções e como parte delas é que a posição se torna relevante. O contexto, portanto, não é algo dado, mas é

produzido nas interações sociais.

Ao falar em usos situados pretendo chamar a atenção para o modo como esses contextos são produzidos. O contexto não se confunde com o lugar. Nesta pesquisa o lugar não é tomado como um ponto circunscrito em um mapa, tampouco como a simples localização ou uma mera paisagem. O lugar é inextricavelmente articulado às pessoas e às coisas que ali acontecem e que são consideradas significativas para elas, ou seja, o lugar é, portanto, uma construção social.

Com essa digressão minha intenção é ampliar o esquema de compreensão para além das relações entre representações e posicionalidades sociais. Com isso pretendo iluminar as intersecções entre o espaço, o gênero, a sexualidade, as moralidades e as mídias digitais. Trata- se de uma abordagem que leva em consideração um conjunto de relações complexas e não- determinadas entre tecnologias, localidades, estruturas sociais, serviços digitais, linguagens e instituições.

Assim, parece-me crucial reconhecer a relação entre os produtos e serviços comercializados e os públicos aos quais são direcionados. A sexualidade é mediada por essas mercadorias e seus públicos, assim como a maneira como determinados públicos passam a ser organizados em torno da sexualidade e da tecnologia. Em termos práticos, isto se traduz, por um lado, na ausência de espaços voltados ao público gay no plano offline no contexto estudado e, por outro lado, na crescente expansão dos serviços comerciais para este público.

A definição dos contatos por georreferenciamento apenas nos mostra que as pessoas desejam encontrar com outras que tenham os mesmos interesses onde estão, enquanto as normas sociais apontam para as formas de regulação do contato. Considero que os serviços comerciais de busca por parceiros ganham sua inteligibilidade mediante ideologias e instituições que fabricam, por assim dizer, um discurso da sexualidade baseado em um tipo de especismo do desejo, que por vezes é entendido como uma questão de foro íntimo e privado. Isso é, ao apresentar os usos desses produtos como algo irrelevante ou meramente pessoal, o discurso público o faz sustentado por convenções heteronormativas que, em nome da privacidade, obstruem ou dificultam a produção de culturas sexuais públicas, não-normativas ou explícitas.

Ao recolocar o caráter público e político da sexualidade mediante uma crítica aos serviços que “privatizam o desejo” partilho da visão de Lauren Berlant e Michael Warner (2002), para quem não há nada mais público do que a privacidade. Dessa perspectiva:

A vida privada é esse outro lugar inacabado do discurso político público, um refúgio prometido que distrai os cidadãos das condições desiguais da sua vida política e econômica, que os consola dos danos causados à sua humanidade pela sociedade de massas e os culpa por qualquer divergência entre suas vidas e a esfera íntima (BERLANT, WARNER, 2002, p. 232).

Por outro lado, o foco sobre os serviços de redes sociais geolocativos permite questionar quais são as formas atualmente disponíveis para imaginar e questionar a vida do desejo e suas expressões públicas dentro, mas sobretudo fora das metrópoles.

Na literatura sociológica e antropológica, as cidades contemporâneas tendem a ser caracterizadas como lugares dinâmicos, complexos e mais ou menos abertos à experimentação, que são moldados por fluxos econômicos, de pessoas, coisas e informações através de espaços geográficos arquitetônicos contrastantes (CASTELLS, 1995; SASSEN, 1998; SOJA, 2000).

Para além da “relação sinérgica” entre pessoas e tecnologias (HARDEY, 2007), novas formas de segregação também emergem da reconfiguração da cidade por meio de conexões digitais (MITCHELL, 2000). Tais problemáticas ainda não foram devidamente discutidas ou, no limite, essas formas de segregação têm permanecido à margem da Teoria Social, sobretudo, quando são tratadas como questões privadas ou de foro íntimo.

No que se refere à sexualidade e suas convenções, pouco foi discutido sobre as práticas homoeróticas fora dos grandes centros urbanos. Por vezes, essa lacuna foi preenchida de maneira apressada, associando a vida urbana à um maior grau de liberdade decorrente, principalmente, da possibilidade de anonimato e da impessoalidade como sendo características refratárias à vida na metrópole. Essa associação guarda tendência ou propensão à igualdade tipicamente associadas ao modo de vida urbano, o que de fato pode ser questionado, sobretudo, considerando os episódios de violência que diariamente se sucedem em países como o Brasil.

A diversidade de condições de vida e as diferenças entre as metrópoles nacionais permitem inferir que tratamos mais de ideologias liberais importadas e apressadamente adaptadas aos contextos específicos, do que de uma versão descritiva do que efetivamente se passa nessas localidades. Minha sugestão é que métodos qualitativos de investigação, quando situados, podem nos ajudar a descompactar as presunções sobre usuários e sobre as tecnologias, bem como sobre a localidade. Creio que esse recurso torna possível a distinção entre um comportamento comunicativo mais geral ou social, dos comportamentos específicos em uma plataforma digital.

Ao assumir uma postura metodológica atenta aos usos pretendo também esmiuçar as presunções sobre as normas sociais, as condições de vida e as preocupações sociais sobre a tecnologia, bem como sobre as suas adequações, que cercam as relações que meus

interlocutores estabelecem com as interfaces dos Apps.

As tecnologias móveis oferecem novas possibilidades para as pessoas atuarem na vida cotidiana espacialmente organizada (WEILENMANN, 2003; AMIN e THRIFT, 2002). O tratamento dado ao público estruturado em rede e a sua caracterização constitui uma questão fundamental para escapar das armadilhas do determinismo, seja ele tecnológico, social ou cultural (LIGHT, 2013). Minha intenção é compreender como essas tecnologias comunicacionais são mobilizadas pelos usuários, como elas atuam regulando os corpos, os afetos, as fantasias e os desejos através da orientação (ou desorientação) do contato co- localizado.

Os Apps destinados à busca por parceiros emergem em um momento histórico no qual o gênero e a sexualidade estão entrelaçados a uma cultura de “startup” ativamente empenhada em produzir “socialidade” (VAN DIJCK; POELL, 2013). O empenho por parte das empresas de tecnologia é produzido ambientado em um competitivo mercado destinado a fazer do hookup um negócio lucrativo. Pode-se questionar em que medida a expansão dessas tecnologias tem colaborado para o gradual reconhecimento de gays e lésbicas, sujeitos econômicos ambientados em uma cultura de consumo. Os aplicativos móveis constituem também um campo profícuo para estender o debate sobre o tema do reconhecimento precário a partir do consumo.

Redes sociais digitais são construídas para ativar impulsos relacionais e, no caso específico dos Apps, esses impulsos são ativados tomando a espacialidade e a sexualidade como critérios.