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O trabalho de campo etnográfico foi realizado a partir do contato estabelecido com os usuários dos Apps tendo como base territorial São Carlos, município localizado na região

Centro-Leste do estado de São Paulo, a uma distância rodoviária de 235 quilômetros da capital, com uma população recenseada em 249.415 habitantes13.

São Carlos é considerada uma cidade de porte médio para os padrões locais. As cidades que integram a região da pesquisa apresentam diferenças em termos populacionais e com relação às atividades em torno das quais se organizam. Cidades como Ribeirão Preto, a maior da região, usadas para necessidades mais associadas à metrópole ou que não estão disponíveis nas cidades menores. São Carlos e Araraquara, cidades que reúnem quatro três grandes universidades públicas, concentram um grande número de estudantes, muitos de cidades menores da região. Mas também são atravessadas ruralidades e urbanidades que variam de intensidade em um curto espaço geográfico. De ônibus ou carro é possível ir do centro às comunidades rurais em torno da cidade em poucos minutos.

Existe uma dinâmica local que favorece a circulação de pessoas pelas cidades que compõem a região, o que acaba resultando numa conexão entre cidades vizinhas e de porte semelhante que, por sua, vez estão conectadas com as cidades menores e comunidades rurais que se espraiam ao redor. O mesmo se passa com as cidades maiores, como Ribeirão Preto, com uma população estimada em 694.534 habitantes14.

A localização desempenha um papel definidor na composição da rede de contatos, o que reflete na interface dos aplicativos as condições em que se dá a busca por parceiros. Desse modo, em cidades menores e comunidades rurais existe um número menor de usuários enquanto em cidades médias e maiores o número de perfis nas proximidades aumenta. Uma vez que a proximidade dos contatos é determinante para apresentar os parceiros, as propriedades da interface acabam facilitando o contato entre pessoas que vivem em cidades menores com pessoas que estão em cidades maiores.

Pode-se caracterizar a dinâmica socioespacial da região a partir das atividades socioeconômicas organizadas em torno da agroindústria, o que equivale a dizer que a dinâmicas da atividade urbana também é induzida pelo setor agroindustrial. A agroindústria pode ser entendida como um referente consolidado para a economia local, mas também é significativa a presença de pequenos agricultores, que vivem em pequenos sítios e chácaras espraiados pela região. Quer seja nas cidades grandes, médias ou de pequeno porte são contextos atravessados

13 Fonte: IBGE Panorama. Dados referentes ao ano de 2019. Disponível em:

https://cidades.ibge.gov.br/brasil/sp/sao-carlos/panorama

14 Fonte: IBGE Panorama. Dados referentes ao ano de 2019. Disponível em:

por valores ligados à vida no campo, permeado por moralidades conservadoras e centradas em valores familistas, na maioria das vezes, com apelo religioso.

Nesses últimos 20 anos, a “interiorização” do desenvolvimento econômico remodelou a dinâmicas socioeconômica paulista complexificando a dualidade região metropolitana – interior, predominante na literatura produzida sobre o tema até́ os anos 70. Com a consolidação de novas regiões metropolitanas e outras em processo de formação, pólos regionais emergiram com algum grau de integração econômica resultando em campos de pesquisa e produção industrial especializados em atividades locais.

Essa nova configuração socioeconômica resultou em uma nova conurbação com reflexos na infraestrutura local. Para servir aos pólos, as demandas a integração da malha viária e a interiorização da mão de obra da capital foram canalizadas pela política de investimentos no setor de infraestrutura, o que conectou as cidades facilitando o trânsito de mercadorias e pessoas.

FIGURA 1- MAPA DOS MUNICÍPIOS SELECIONADOS

Uma vez que a infraestrutura que conecta as cidades oferece condições para o deslocamento usando automóvel ou ônibus, ter ou não carro acaba se tornando um eixo definidor para os encontros. Sendo assim, pessoas que não dispõem de meios próprios para a locomoção ou que dispõem de menos dinheiro tendem a circular menos e, consequentemente, acabam buscando por parceiros situados em localidades geograficamente próximas. Observei que homens com automóvel tendem a avaliar a possibilidade de encontrar um parceiro distante de acordo com a atração. Essa operação aparece sintetizada na fala de um rapaz com quem conversei: “se o cara tiver longe e for feio eu não vou, mas se valer a pena, quem sabe?”.

As características socioespaciais da região também tornam recorrente a presença de perfis com a frase “de fora”, usada para sinalizar alguém que está a trabalho ou a passeio pela cidade. No jogo enredado pela interface “perto” e “longe” ganham um sentido relacional nesse contexto. Distâncias geográficas podem ser aproximadas pelo interesse do parceiro ou proximidades podem ser estendidas de acordo com as distâncias sociais entre as posições ocupadas pelos sujeitos.

Ao articular a observação offline com as interações online buscarei relacionar o modo como tais recursos são mobilizados nas atividades cotidianas e nos contextos de uso. Com esse movimento (das pessoas em direção à tecnologia e da tecnologia em direção às pessoas) espero produzir novos insights sobre como estamos tratando não apenas de equipamentos de comunicação usados individualmente, mas de contextos comunicacionais que são moldados por problemáticas estruturais e que envolvem questões de caráter social, cultural, coletivo e, portanto, político.

A produção do espaço urbano está atrelada a processos históricos associados às políticas de apropriação do território que tendem a produzir modos de organização não apenas espaciais, mas também culturais da vida social. A chegada da internet comercial, em 1997, foi marcada por deslocamentos no aparato legal embebido em um conjunto de políticas públicas de privatizações, que inclui as telecomunicações, e que se relacionam diretamente com o fechamento ou as restrições aos acessos e aos usos dos espaços públicos. Tais mudanças resultaram em uma alteração significativa no modo de ocupação das cidades.

A região que compreendida pela pesquisa congrega cidades sobre as quais os sujeitos estabelecem diferentes considerações. Cidades menores, por exemplo, em muitos casos, são usadas como “cidades dormitórios”, o que se justifica pelo menor preço dos aluguéis e pela proximidade com cidades maiores nas quais os residentes podem trabalhar e voltar. Outras, como São Carlos e Ribeirão Preto são marcadas pela presença de condomínios residenciais e um grande número de estudantes universitários.

Trata-se de um contexto atravessado pela emergência e pela expansão de uma mentalidade tipicamente associada às “sociedades de serviços” contraposta ao declínio das chamadas “sociedades industriais”. Assim, os serviços comerciais de busca por parceiros podem ser entendidos a partir de um contexto de recepção dessas tecnologias que permite tomá- los como parte dessa “mentalidade”.

Em São Carlos, nos últimos anos, foi possível acompanhar um progressivo fenômeno da privatização dos espaços públicos. Disso resulta que todo o circuito de lazer e de encontrar das pessoas mais jovens está organizado em torno de bares e boates. A mesma coisa se passa em cidades maiores, como Ribeirão Preto, representada pelos meus interlocutores como mais associadas à vida na metrópole. Para muitos dos rapazes com quem conversei, frequentar esses espaços exige um dinheiro do qual não dispõem.

Por um lado, os aplicativos entram no contexto das cidades menores como um espaço semi-público do qual é possível usufruir estabelecendo contatos, ao abrigo do olhar público, em um contexto para o qual o reconhecimento da homossexualidade constitui motivo de conflito e, até mesmo, riscos. Por outro lado, reproduzem e reforçam a lógica de privatização e interiorização dos espaços públicos moldados pelo controle social.

Em cidades médias ou pequenas, onde não existem espaços reconhecidamente voltados ao público gay ou abertos à sua presença, os aplicativos conduzem a um tipo de abandono do espaço público, o que se reflete nas queixas e considerações por parte de homens mais velhos de que tecnologias digitais acabaram com os antigos locais de “pegação”. Observação semelhante a essa foi também registrada pelo meu orientador durante sua pesquisa em San Francisco.

Em contextos desse tipo, onde muitos se conhecem, ser reconhecido publicamente como homossexual, quando menos, pode resultar em uma série de rótulos estigmáticos dos quais muitos sujeitos desejam se livrar. Especialmente nas cidades pequenas, mas também de médio porte, não é incomum que as pessoas se reconheçam, de modo que as fofocas e comentários sobre a vida alheia acabam funcionando como mecanismos de controle social. Em comunidades menores, onde todos se conhecem, ser rotulado pode representar o carimbo no passaporte para a desigualdade.

Entre meus interlocutores, os estigmas que envolvem a homossexualidade comunicam sobre “as convenções que dividem aquelas formas de expressão do desejo consideradas aceitáveis daquelas tidas como imorais” (PADILHA, 2015a, p.20). Acompanhando a feminista Teresa de Lauretis (1994), os Apps podem ser também compreendidos como “tecnologias de gênero” uma vez que se constituem, ao mesmo tempo, como artefatos tecnológicos e discursos

institucionais. Compreendido como uma relação social, o gênero é constantemente refeito por meio de várias tecnologias e discurso, que disputam o controle dos campos de significação social para então produzir, promover e implantar determinadas formas inteligíveis de representar o próprio gênero.

Como parte do que anima o gênero, o desejo pode igualmente ser compreendido como um artefato culturalmente modelado pelos incentivos, pelas recompensas, e, também, pela violência social e pelo medo da exclusão. As análises feministas ofereceram um caminho profícuo para pensar a produção do gênero como um trabalho que precisa ser constantemente refeito, cujo resultado é tanto o produto, quanto o processo da sua própria representação. Nos termos de Lauretis (1996, p. 15), “a construção do gênero é o produto e o processo de ambas, da representação e da auto-representação”.

Vistas como tecnologias de gênero, as plataformas de busca por parceiros podem servir como um índice para entender as restrições mais amplas presentes em cada contexto e podem ser eloquentes a respeito da política, desejo, lutas, protesto, afetos, sexualidade, economia. Vistos pelo avesso, os perfis construídos nas plataformas pelas quais me conectei apontam para os fantasmas que assediam alguns ideais públicos da masculinidade heterossexual cristalizados em nossas convenções culturais.

O fato de que o segredo apareça como um elemento fundamental na busca, especialmente para os homens na faixa dos 30 anos, sinaliza que não existe apenas uma marca geracional na associação entre homossexualidade e estigma, mas que essa percepção intuitiva se consolida para eles com a experiência de ingresso no mercado de trabalho. Isto porque, embora possa parecer otimista a minha visão sobre os “mais jovens” e suas “posturas contestatórias”, vale lembrar que os estudantes universitários integram a maior parte da amostra. Sendo assim, muitos residem com outros jovens em repúblicas nas cidades onde estudam e que, quase sempre, são diferentes do local de origem.

Estudantes universitários nem sempre estão inseridos no mercado de trabalho formal e, para a maioria dos jovens com quem mantive contato, o trabalho aparecia na forma de vínculos informais como, por exemplo, bicos como garçons em bares e eventos. Havia também uma parte dos estudantes vinculados a programas de estágios universitários e, para muitos desses rapazes, a escolha das fotografias que mantinham nos perfis envolviam cálculos relacionados ao medo de retaliações no espaço do trabalho.

Muitos deles, incluindo alguns que se afirmavam como gays assumidos, confessaram trocar as fotografias dos perfis quando voltavam para a casa dos pais na cidade natal com o

objetivo de minimizar o risco de que alguém “conhecido” pudesse identifica-los no aplicativo gerando consequências que poderiam incidir sobre as relações familiares.

Seguir os perfis dos estudantes universitários por um longo período também permitiu observar como, ao ingressarem no mercado de trabalho formal, muitos passavam a esconder o rosto nas imagens e retiravam os links para conexão com serviços de redes sociais, como Facebook e Instagram, nos quais familiares e colegas de trabalho estavam integrados. O esforço para manter as esferas separadas reforçou minha compreensão a respeito do trabalho como um eixo para explicar o segredo.

Ainda assim, mesmo permanecendo a constatação de que os homens mais jovens colocam em circulação outro vocabulário para lidar com o desejo mais vinculado à “identidade” do que aos tropos da “patologia” da “vergonha” ou até mesmo do “pecado”, é possível manter a compreensão de que o segredo é a alma do negócio em contextos que não oferecem condições culturais e políticas de reconhecimento recíproco para as pessoas que se afirmam publicamente homossexuais. Esse aspecto chama atenção para como o digital replica e estende desigualdades sociais preexistentes.

Os serviços comerciais de busca por parceiros emergem em um arranjo tecnocultural, que faz da tecnologia uma solução provisória e imperfeita para uma questão cultural: o problema da ausência de reconhecimento ou do reconhecimento precário da homossexualidade (MISKOLCI, 2017).

Pode-se certamente admitir que a tecnologia confere agência aos sujeitos - na medida em que possibilita o arranjo estratégico das conexões ao abrigo do olhar público - sem alegar que é determinante ou que permita romper com todas as contingências do local - as pressões na família e no trabalho, por exemplo. Do mesmo modo, pode-se admitir que as interações mediadas pela tecnologia são radicalmente condicionadas, sem declarar que elas sejam radicalmente determinadas. E, embora sejam produções sociotécnicas que conectam humanos e máquinas, isto não precisa nos conduzir a uma explicação em que a tecnologia seja um mero sintoma de uma determinada ordem social.