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Exercício importante para a formação do escritor, como vimos no capítulo anterior, o pastiche também foi praticado por Gide, e não apenas durante sua juventude: o autor de La Symphonie pastorale imitaria o estilo de escritores como Rimbaud, Heredia, Mallarmé e outros.277 E, como Perec o faria

mais tarde, ele também escrevera pastiches de seus próprios textos. J-. M. Wittmann identificou um trecho de Voyage d’Urien reescrito em Paludes278. Reproduzimos abaixo o trecho em questão na sotie:

La lampe baissait faute d’huile, le feu se mourait tristement, et la vitre se lavait d’aube. Un peu d’espoir enfin des réserves du ciel semblait en grelottant descendre… Ah! que vienne enfin jusqu’à nous un peu de céleste rosée et, dans cette chambre si close où si longtemps nous sommeillâmes, fût-ce à travers la vitre et pluviale, qu’une aube enfin paraisse, et qu’elle apporte jusqu’à nous, à travers l’ombre accumulée, un peu de blancheur naturelle…279

277 Cf. ARON, P. & ESPAGNON, J. Répertoire des pastiches et parodies littéraires des XIXe et XXe siècles. Paris: Presses de l’Université Paris-Sorbonne, 2009.

278 Cf. WITTMANN, J-. M. Symboliste et déserteur. Les oeuvres "fin de siécle" d’André Gide. Paris:

Honoré Champion, 1997.

279 GIDE, op. cit., p. 117-8. “A lâmpada baixava por falta de óleo; o fogo ia morrendo tristemente, e a

130 Esse extrato se parece muito com o início de Voyage d’Urien:

Quand l’amère nuit de pensée, d’étude et de théologique extase fut finie, mon âme qui depuis le soir brûlait solitaire et fidèle, sentant enfin venir l’aurore, s’éveilla distraite et lassée. Sans que je m’en fusse aperçu, ma lampe s’était éteinte; devant l’aube s’était ouverte ma croisée. Je mouillai mon front à la rosée des vitres, et repoussant dans le passé ma rêverie consumée, les yeux dirigés vers l’aurore, je m’aventurai dans le val étroit des métempsycoses.280

O tom declamatório do texto de 1893 é retomado em Paludes de modo irônico: a noite “estudiosa”, de “êxtase teológico” de Urien se torna “insignificante” na sotie, indicando que uma determinada visão da literatura havia sido deixada de lado em favor de outra. Gide revisita seus textos a fim de discutir certos aspectos e ideias, e de exibir a evolução de seu pensamento e as mudanças ocasionadas por meio da escritura. A retroação evocada pelo escritor na conhecida página do Journal não implica apenas no aspecto literário, mas causa uma reação no próprio Gide, e indica a transformação que seus livros causavam em si mesmo:

J’ai voulu indiquer, dans cette Tentative amoureuse, l’influence du livre sur celui qui l’écrit, et pendant cette écriture même. Car en sortant de nous, il nous change, il modifie la marche de notre vie; comme l’on voit en physique ces vases mobiles suspendus, pleins de liquide, recevoir une impulsion, lorsqu’ils se vident, dans le sens opposé à celui de l’écoulement du liquide qu’ils contiennent. Nos actes ont sur nous une rétroaction. "Nos actions agissent sur nous autant que nous agissons sur elles", dit George Eliot.

Donc j’étais triste parce qu’un rêve d’irréalisable joie me tourmente. Je le raconte, et cette joie, l’enlevant au rêve, je la fais mienne, mon rêve en est désenchanté, j’en suis joyeux.

Nulle action sur une chose, sans rétroaction de cette chose sur le sujet agissant. C’est une réciprocité que j’ai voulu indiquer; non plus dans les rapports avec les autres, mais avec soi-même. Le sujet agissant, c’est soi; la chose rétroagissante, c’est un sujet qu’on imagine. C’est donc une méthode d’action sur soi-même, indirecte, que j’ai donnée là; et c’est tout simplement un conte.281

tiritando... Ah! Que venha enfim até nós um pouco de orvalho celeste e, neste quarto tão fechado onde tão longe cochilamos, que uma aurora enfim apareça, nem que seja através da vidraça e chuvosa, e que traga até nós, através da sombra acumulada, um pouco de brancura natural...” Trad., p. 94.

280 “Quando a amarga noite de reflexão, de estudo e de êxtase teológico terminou, minha alma que desde

a noite queimava sozinha e fiel, sentindo enfim chegar a aurora, despertou distraída e cansada. Sem que percebesse, minha lâmpada extinguiu-se; diante da alvorada abriu-se minha janela. Molhei minha fronte com o orvalho das vidraças e, compelindo para o passado meu devaneio, olhos em direção da aurora, aventurei-me no vale estreito das metempsicoses.” Idem, Le Voyage d’Urien. Paris: Gallimard, 2009. p. 9.

281“Quis indicar, nessa Tentativa amorosa, a influência do livro sobre quem o escreve, e isso durante sua

131 Como não poderia deixar de ser, o estilo de Gide também foi imitado por alguns escritores. No Répértoire des pastiches et parodies littéraires des XIXe et XXe siècles figuram muitos títulos de pastiches de textos gidianos, com uma predileção marcada pelo Journal e Les Nourritures terrestres. Apenas três pastiches de Paludes foram encontrados pelos autores do repertório, todos muito diferentes do trabalho feito por Perec em Manderre, o que corrobora a tese da filiação, discutida no capítulo anterior. O primeiro pastiche é de 1923, e fora publicado em um jornal satírico chamado Le Crapouillot:

Rentré chez moi, j'inscrivis dans mon calepin 'comprendre Adèle'. Et j'attendis. Que te dirais-je Ménalque, sur tout ceci? Je comptais sur Mardochée pour m'éclairer, mais se sont écoulés six mois et jamais il n'est revenu. Qu'en penseraient Philologue, Titagide ou Nathanaël?282

O segundo é de 1979, e tem como título Paludes 80:

Je brisai un comprimé d’aspirine tamponnée, que j’avalai sans même la faire fondre. Mon mal gagnait. Un poète, au fond, avait réussi son pari, le jour où, rongé par la gangrène, il avait commencé de délirer, invoquant Dieu, le Diable, sa Mère, sa Soeur, etc. en un long, immense et raisonné dérèglement. Nous faudrait-il, à notre tour, user des derniers artifices, poisons, trichloréthylènes foudroyants, éthers factices, ibogas corrosifs, chanvres d’Afrique, morphines définitives et autres trompettes-des-morts, pour en finir avec le Bon-Sens ? Et produire un sens décalé ? Depuis une éternité...283

esses vasos móveis suspensos, cheios de líquido que, quando se esvaziam, recebem um impulso no sentido contrário ao escoamento do líquido que contém. Nossos atos tem sobre nós uma retroação. ‘Nossas ações agem sobre nós tanto quanto agimos sobre elas’, disse George Eliot.

Eu estava triste, pois um sonho de irrealizável alegria me atormenta. Conto-o e torno minha essa alegria, tiro-a do sonho, meu devaneio perde o encanto, e assim alegro-me.

Não há nenhuma ação sem retroação da coisa sobre o sujeito que a realiza. Essa reciprocidade, eu quis indicar, não nas relações com os outros, mas consigo mesmo. O sujeito que age, sou eu; a coisa que retroage, é um sujeito imaginado. O que apresento aqui é, portanto, um método indireto de ação sobre si mesmo, e que é apenas um conto.” Idem. Journal (1887-1925), op.cit., p. 170-1.

282“Entrando em casa, escrevi em meu caderninho ‘entender Adèle’. E esperei. O que diria eu a você,

Menalcas, sobre tudo isso? Contava com Mardoceu para esclarecer tudo, mas seis meses se passaram e ele não retornou. Que pensariam disso Filólogo, Titagide ou Natanael?” GAVOTY, A. & DUBEAUX, A. “Les pastiches du Crapouillot: André Gide”. In Le Crapouillot, 15 novembre 1923, p. 8-9.

283 “Parti um comprimido de aspirina efervescente, que engoli sem mesmo dissolvê-lo. Meu mal crescia.

Um poeta havia, no fundo, ganho sua aposta no dia em que havia começado a delirar, corroído pela gangrena, e invocar a Deus, o Diabo, sua Mãe, sua Irmã etc., em um desregramento longo, imenso e racional. Era preciso que usássemos os artifícios mais recentes, veneno, tricloroetilenos fulminantes, éteres factícios, ibogas corrosivos, cânhamos da África, morfinas definitivas e outras trombetas da morte, para terminar com o Bom Senso? E produzir um sentido fora da realidade? Após uma eternidade...” VXZ375. "Paludes 80". In ____. En attendant. Récit convertible et lascif. Paris: Editions des Autres, 1979. p. 11.

132 O terceiro pastiche, Pintades, foi publicado em 2000. O autor não se limita a reproduzir o estilo da sotie, mas interroga todos os seus amigos e conhecidos em busca de leitores de Paludes, livro essencial em sua formação de escritor:

– Tu as lu Paludes? – Oui, bien sûr.

– Et... qu’est-ce que tu en penses?

– De Paludes? Mais c’est la seule chose de Gide que j’aime vraiment. – Et tu crois que ça vit encore?

– Drôle de question... Ne fais pas semblant de croire que la littérature vit, ou ne vit pas... Je ne sais pas si Paludes "vit".

– On le lit encore?

– On l’a tiré en livre de poche il n’y a pas très longtemps. Je l’ai reçu avec les compliments de Monsieur André Gide. (...) A mon avis, c’est un des seuls qui soit resté assez moderne. Pourquoi tu me demandes ça?

– Je fais une enquête. – Sur Paludes? – Oui.

– Tiens... : Paludes c’est une des livres qui m’a touché lorsque j’étais adolescent. C’était son caractère tout à fait farfelu et extraordinairement moderne de mille neuf cent... je ne sais pas combien... deux... ou trois... c’est quelle année Paludes ? Même avant le siècle... non je ne crois pas que ce soit avant le siècle... attends, je vais te le dire tout de suite, moi je suis une personne organisée, j’ai ici le tableau des oeuvres de tous les temps et de tous les pays : c’est comme la que ça s’appelle. Gide. Paludes. 1895. Hm! Tu vois, c’est encore plus ancien.284

Livro considerado fundamental para autores como Nathalie Sarraute285

284 “– Você leu Paludes ?

– Sim, claro.

– E... o que você acha ?

– De Paludes ? É a única coisa de Gide da qual realmente gosto. – E você acha que ainda vive?

– Pergunta estranha... Não finja acreditar que a literatura vive, ou não... Não sei se Paludes ‘vive’. – Ainda é lido?

– Saiu em edição de bolso há pouco tempo. Eu o recebi com os cumprimentos do Senhor André Gide. (...) Em minha opinião, é um dos únicos que continua moderno. Porque você está me perguntando isso?

– Estou fazendo uma investigação. – Sobre Paludes ?

– Sim.

– Puxa... : Paludes é um dos livros que me marcaram quando era adolescente. Era seu caráter excêntrico e extraordinariamente moderno de mil novecentos... nem sei mais quanto... dois... ou três...

Paludes é de qual ano? Anterior ao século... não, não acho que seja anterior ao século... espere, vou te

dizer agora, sou uma pessoa organizada, tenho aqui a tabela das obras de todos os tempos e de todos os países: esse é o nome do texto. Gide. Paludes. 1895. Hum! Veja você, é ainda mais antigo.” EHNI, R. N. Pintades. Paris: Christian Bourgois, 2000. p. 69. p. 72-3.

285 “Et l'on pouvait se rassurer en songeant que ce procédé est l'effet d'un égocentrisme propre à

l'adolescence, d'une timidité ou d'une inexpérience de débutant, si cette maladie juvénile n'avait frappé précisément les oeuvres les plus importantes de notre temps (depuis A la Recherche du Temps perdu e

133 (seu Fruits d’or é visivelmente inspirado pela sotie) e por outros representantes do Nouveau Roman, Paludes é um texto cuja leitura convida à escritura, seja incitando à retomada, à continuação ou, como é o caso de Manderre, a uma filiação.