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2.6. Os Antigos e os Modernos

2.6.3 O texto e a vida

270“Leibniz pede que, se devemos ‘tomar posição’, não obedeçamos a razões gerais, à conformidade

indiferente às circunstâncias, a uma norma cega. Devemos pôr essas generalidades à prova do ‘hic’, do ‘isso’ e situar nosso ato no momento presente do mundo. Leibniz pede que encaremos a situação sobre a qual tomaremos posição como um ‘caso’, isto é, um modo tão concreto e explicitamente situado no aqui e no agora quanto pudermos.” STENGERS, I. “Risquer une ville qui apprend”. In Les

Annales de la recherche urbaine, nº 95, juin 2009. Disponível em

www.annalesdelarechercheurbaine.fr/IMG/pdf/Stengers_ARU_95.pdf. Acesso em 5 de setembro de 2012.

271 “que solicita a sutileza do leitor confrontado não mais a uma obra fechada, mas a uma obra ‘aberta’,

um quebra-cabeças cujas peças parecem obedecer a motivações desconhecidas e aleatórias.” FILLAUDEAU, op. cit., p. 297. Grifo do autor.

127 A relação de Gide com as Bucólicas ia além do interesse literário. Os poemas de Virgílio funcionaram também como autorização para a sexualidade do autor de Nourritures terrestres, uma espécie de permissão para suas tendências homossexuais. Gide transporia o ideal mítico da Arcádia virgiliana à África do Norte, lugar das primeiras experiências sexuais do escritor. Segundo E. Marty, através de um verso da décima bucólica (quê ! Amintas é preto ? X, v. 38), Gide estabelece:

un lien génétique entre les bergers antiques et les bergers arabes (…), justificant qu'il n'y ait point d'incompatibilité entre la race maure et la race hellène; ce vers de Virgile, il l'a répété à satiété, s'émerveillement du miracle de la coincidence entre le vers ancien et son désir présent.272

A influência agiria, como diz o escritor na conferencia sobre o assunto, por semelhanças, isto é, pela descoberta de uma visão de mundo em comum. A leitura de Nietzsche, por exemplo, teria revelado em Gide aspectos de seu pensamento dos quais ele ainda não tinha conhecimento. Da mesma forma, através dos pastores virgilianos, Gide entraria em contato com a personificação de seu desejo. Para J O’Brien:

On imagine sans peine le joyeux étonnement avec lequel ce jeune refoulé calviniste, élevé de la façon la plus puritaine, découvrit un jour les Bucoliques, l'emploi qu'il ne tarda pas à en faire nous laisse penser qu'il dut trouver en ces poèmes l'écho de ses plus secrètes émotions, et même sa propre justification aux yeux d'une société qui semblait n'accepter point ses pareils.273

Em sua análise de alguns sonhos descritos pelo escritor, R. Bastide identifica no primeiro deles o medo do escritor de ser pego em flagrante delito de falta de originalidade, resultado da “angústia da influência”, tal como a definiria H. Bloom.274 A reação de Gide diante do perigo de ser descoberto o

272 “Uma ligação genética entre os pastores antigos e os pastores árabes (...), justificando a

compatibilidade entre a raça moura e a raça helênica; esse verso de Virgílio foi repetido à exaustão por Gide, que se extasiou diante do milagre da coincidência entre o verso antigo e seu desejo presente.” MARTY, E. André Gide: qui êtes-vous? Lyon: La Manufacture, 1987. p. 56.

273 “Pode-se facilmente imaginar a alegre surpresa com a qual este jovem calvinista reprimido, educado

da maneira mais puritana possível, descobriu certo dia as Bucólicas; o proveito delas tirado nos leva a pensar que encontrou nesses poemas o eco de suas emoções mais íntimas, e até mesmo a sua própria justificação aos olhos de uma sociedade que parecia não aceitar quem a ele se assemelhava.” O'BRIEN, J. Les Nourritures terrestres d'André Gide et les Bucoliques de Virgile. Traduction Elisabeth Van Rysselberghe. Boulogne-sur-Seine: Les Editions de la Revue Prétexte, 1955. p. 21.

128 levaria a tentar despistar o leitor:

D'abord, est-il bien sûr que l’on trouve chez un Goethe, un Nietzsche, exactement les mêmes idées que l'on trouve chez lui? Cette impression que l'on a n'est-elle pas un rêve? On croît se souvenir d'idées identiques, mais c'est une illusion de la mémoire.275

Para dissipar qualquer desconfiança com relação à origem das ideias, o escritor as atribuiria a falsas fontes. Se o leitor procurar os textos sugeridos pelo escritor, encontrará mais diferenças do que semelhanças entre os supostos hipotextos e os livros de Gide. A partir de tal constatação, o leitor concluirá que as ideias expressas nos textos gidianos podem ter, de fato, sido formadas a partir das obras de outros, mas seu desenvolvimento e expressão são perfeitamente originais.

Acreditamos que, se Gide não revela claramente as referências de outros escritores em suas obras, ele o faça sobretudo para desafiar o leitor e obrigá-lo a olhar a literatura de uma maneira diferente da habitual. Segundo G. Defaux:

L'art gidien est un art de la dissimulation, voire du secret: un 'jeu subtil' auquel le lecteur est invité à participer et dont il retire les plaisirs et les satisfactions intellectuelles que sa perspicacité lui mérite (…). Paradoxalement, chez cet être voué à la description de soi et hanté par la sincerité et le besoin de justification, l'écriture est très rarement le lieu de la transparence. Elle a pour fonction essentielle (…) non pas de résoudre, mais de poser des problèmes, et elle se propose moins de révéler une pensée que de la dissimuler.276

Para Gide, a obra que se dá a conhecer de imediato e revela suas interpretações possíveis à primeira leitura não possui valor durável. O livro realmente importante é de difícil acesso, e suas riquezas só se mostram

mestrado. ARAUJO, R. L. André Gide e Georges Perec: os diálogos potenciais. 2009. Dissertação (Mestrado em Literatura Francesa). 2009. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.

275 “Para começar, estamos certos de encontrar em Goethe ou em Nietzsche exatamente as mesmas ideias

presentes na obra de Gide? Essa impressão não é apenas um sonho? Pensamos nos lembrar de ideias idênticas, mas é uma ilusão da memória.” BASTIDE, R. Anatomie d'André Gide. Paris: L'Harmattan, 2006. p. 54.

276 “A arte de Gide é a da dissimulação, do segredo: um ‘jogo sutil’ ao qual o leitor é convidado a

participar e do qual extrai prazeres e satisfações intelectuais através de sua perspicácia (...). Paradoxalmente, neste ser voltado à descrição de si e assombrado pela sinceridade e necessidade de justificação, a escritura é raramente o lugar da transparência. Sua função essencial não é a de resolver, e sim de apresentar problemas, e ela se propõe menos a revelar um pensamento que a dissimulá-lo.” DEFAUX, G. “Sur des vers de Virgile: Alissa et le mythe gidien du bonheur”. In André Gide 3. Gide

129 através de uma longa convivência, de uma reflexão contínua por parte do leitor. Inverter as referências aos hipotextos é uma forma de dificultar o acesso do público, e de fazê-lo pensar.

As citações extraídas dos textos de Virgílio são numerosas mesmo no Journal de Gide, e indicam a importância da literatura para sua própria vida. Seu uso é muito parecido com o exposto pelo autor nos textos ficcionais, a saber, totalmente pessoal e adaptado a seus pensamentos e vontades. Todavia, antes de acusar Gide de usar a literatura como o fazem seus personagens, é preciso lembrar que, como dissemos anteriormente, para o escritor os versos do poeta latino possuíam grande riqueza intelectual e moral, constituíam um discurso válido para muitos contextos, e interpretáveis de muitas formas. A intertextualidade gidiana é um encontro, uma confluência de ideias: por isso Gide não acreditava que autores como Nietzsche e Goethe o houvessem influenciado, e sim que as ideias de certos escritores encontravam eco, ou despertavam, as suas.