• Nenhum resultado encontrado

Outra discussão suscitada pela presença de Títiro em Paludes diz respeito ao que o narrador chama de “homem normal”, do qual o personagem seria um paradigma. Para entrar nessa questão vale a pena examinar, a partir de um estudo feito por G. Cangulhem289, a origem da palavra normal, que pode ser identificada no vocábulo latino norma, termo que designa o esquadro; a palavra normalis, por sua vez, teria o sentido de “perpendicular”. Em vista disso, é lícito dizer que a norma sugere uma regularidade e/ou um padrão, e se propõe como um modo possível de unificação “d'un divers, de résorption d'une différence, de réglement d'un différend”.290 Entretanto, propor não significa

impor. A norma sugere um parâmetro, uma referência, uma possibilidade diante de muitas outras, sendo instituída como tal diante de determinados estados, situações e comportamentos considerados aberrantes ou “anormais”, apenas com relação à regra designada como tal:

Une norme (…) n'est la possibilité d'une référence que lorsqu'elle a été instituée ou choisie comme expression d'une préférence et comme instrument d'une volonté de substitution d'un état de choses satisfaisant à un état de choses décevant.291

Em outras palavras, a norma (e o normal, por conseguinte) é apenas uma convenção. Ao ser instituída, curiosamente, a norma cria sua infração, isto

288 “é totalmente desprovido de espírito crítico com relação a si mesmo; ocupa perfeitamente na ficção o

papel do poeta que se esforça para impregnar um mundo exterior com os conteúdos de sua própria nostalgia.” SCHNEIDER-BALLOUHEY, M-. J. L'Ironie dans les oeuvres romantiques d'André Gide. Frankfurt: Peter Lang, 1977. p. 55.

289 O autor faz suas considerações pensando no domínio da medicina, mas parece-nos perfeitamente

possível estender suas observações à literatura.

290 “de uma variedade, da absorção de uma diferença, da resolução de uma disputa.” CANGUILHEM, G. Le normal et le pathologique. Paris: PUF, 1966. p. 177.

291 “Uma norma (...) só e a possibilidade de uma referência quando instituída ou escolhida como

expressão de uma preferência e como instrumento de uma vontade de substituição de um estado de coisas satisfatório a um estado de coisas insatisfatório.” Idem, p. 118.

136 é, tudo o que é contrário a ela. De fato, a infração é essencial para a implantação da norma, pois o desvio dá à norma a oportunidade de se afirmar enquanto regra. Se a exceção confirma a regra, a infração a legitima.

Em Paludes, no capítulo do banquete, o homem normal é definido pelo narrador como “celui sur qui commence chacun (…) la troisième personne, celle dont on parle – qui vit en chacun, et qui ne meurt pas avec nous”.292 Ou

seja, o homem comum não age, e se deixa levar pelos acontecimentos sem ter neles participação realmente ativa, sendo incapaz de realizar ações imprevistas. Para o narrador, essa passividade é uma doença cuja existência o homem normal ignora, ao que o “grande” Valentin Knox responde:

Nous ne valons que par ce qui nous distingue des autres; l'idiosyncrasie est notre maladie de valeur; – ou em d'autres termes: ce qui importe en nous, c'est ce que nous seuls possédons. Ce qu'on ne peut trouver en aucun autre, ce qui n'a pas votre homme normal, – donc ce que vous appelez maladie.293

Knox defende um determinado tipo de particularidade em cada um. Ele é provavelmente um médico alienista, pois afirma se interessar apenas pelos loucos. Quando o narrador se regozija por ter encontrado alguém que parece compartilhar suas ideias, Knox rechaça suas expressões de efusão (“Littérateur, tais-toi”294) e continua sua defesa do a-normal evocando o Títiro

virgiliano nos mesmos termos usados por seu interlocutor (“Dans Virgile, [la troisième personne] s'appelle Tityre; c'est celle qui ne meurt pas avec nous, et vit à l'aide de chacun”295). Knox recupera as palavras do narrador e parece

seguir seu raciocínio, afirmando o interesse nos elementos fora do normal. Mas para ele a doença é uma distinção positiva, enquanto para o narrador a norma e a estagnação por ela provocada são o problema. Se a norma só pode ser instaurada diante da transgressão, “[le] narrateur s'impose une morale et des

292 GIDE, Paludes, op. cit., p. 75. “aquele sobre o qual começa cada um (...) a terceira pessoa, aquela de

quem se fala... que vive em cada um, e que não morre conosco.” Trad., p. 63.

293 Ibid., p. 82. “Nós valemos apenas pelo que nos distingue dos outros; a idiossincrasia é nossa doença de

valor; ou, em outros termos: o que importa em nós é aquilo que só nós possuímos, o que não se pode encontrar em nenhum outro, o que não possui o seu homem normal... portanto, o que vocês chamam de doença.” Trad., p. 68.

294 Ibid, p. 83. “Literato, cale-se.” Trad., p. 69.

295 Ibid., p. 84. “Em Virgílio, ela se chama Títiro; é aquela que não morre conosco, e vive com a ajuda de

137 actes qui vont à rebours de la convention, moralement normée par l'univers”296,

afirma Bertrand.

2.9.1. O caso Dostoievski

Um exemplo da comunhão de pensamento, definida por Gide como a chave de sua relação com outros escritores, pode ser encontrado quando estabelecemos uma aproximação entre algumas das ideias presentes em Paludes, como a noção de homem normal, e as Memórias do subterrâneo, de Fiódor Dostoievski. Publicado em 1864, o livro é considerado por Gide “la clé de voûte de son oeuvre entière”297 e a admiração do autor de Isabelle por

Dostoievski é evidente tanto no diário de Gide como em uma coletânea de conferências que leva o nome do escritor russo, publicada pela primeira vez em 1923. Nas Memórias, traduzidas em francês em 1886, Gide identifica vários pontos dignos de nota, e comparáveis ao que desenvolve em sua sotie:

Nous vivons sur des données admises, et prénons vite cette habitude de voir le monde, non point tant comme il est vraiment, mais comme on nous a dit, comme on nous a persuadés qu'il était. Combien de maladies semblaient n'exister point tant qu'on ne les avait pas dénoncées! Combien d'états bizarres, pathologiques, anormaux ne reconnaîtrons-nous pas, autour de nous ou en nous-mêmes, avertis par la lecture des oeuvres de Dostoïevski? Oui, vraiment, je crois que Dostoïevski nous ouvre les yeux sur certains phénomènes, qui peut- être ne sont même pas très rares – mais que simplement nous n'avions pas su remarquer.298

Dans l'Esprit souterrain, ce petit livre qu'il écrivait peu avant l'Eternel

mari, (...) nous verrons toutes les faces de cette idée: 'Celui qui pense

n'agit point...' et de là à prétendre que l'action présuppose certaine médiocrité intellectuelle, il n'y a qu'un pas.299

No texto de Dostoievski, temos de um lado o homem normal, homem de

296“[o] narrador impõe a si mesmo uma moral e atos que contrariam a convenção moralmente aceitas

pelo universo.” BERTRAND, op. cit., p. 87.

297 A pedra angular de toda a sua obra.” GIDE, A. Dostoïevski. Paris: Gallimard, 1981. p. 133 e 157. 298 “Vivemos a partir de informações aceitas, e adquirimos rápido esse hábito de ver o mundo não como é

de fato, mas como nos disseram, como nos persuadiram, que era. Quantas enfermidades parecem existir apenas porque alguém as detectou! Quantos estados estranhos, patológicos, anormais reconheceremos advertidos pela leitura de Dostoievski, a nossa volta ou em nós mesmos? Sim, de fato, acho que Dostoievsky abre nossos olhos para certos fenômenos, talvez bastante raros – mas que não soubemos notar.” Ibid., p. 124-5.

299 “Nas Memórias do subterrâneo, esse pequeno livro escrito antes do Eterno marido, (...) veremos todas

as facetas da seguinte ideia: ‘Aquele que pensa não age...’ e daí a reivindicar que a ação pressupõe certa mediocridade intelectual, o caminho é curto.” Ibid., p. 157.

138 ação sem consciência do que faz; do outro, aparece o homem consciente, que imagina a ação antes de concretizá-la e, por isso mesmo, não a realiza.

Para Zverkov, o narrador das Memórias, o homem normal é naturalmente estúpido, pois agir o impede de pensar. Ele “tem a obrigação moral de ser uma nulidade; pois o homem de têmpera, o homem de ação, de maneira geral é de vistas curtas.”300 Esse homem nada tem a ver com a norma,

e é admirado pelos outros justamente por se destacar do comum. Já o “homem do subterrâneo”, definição conferida pelo narrador a si mesmo, é altamente consciente e, por conta de sua inteligência acima da média, é inerte, e vive rodeado por um “infecto lodaçal, um charco funesto composto pelas suas dúvidas e sobressaltos.”301

Todavia, como no caso das referencias virgilianas, Dostoievski passa por uma releitura que termina por modificar certas noções presentes no hipotexto. O homem do subterrâneo é muito mais trágico que o narrador de Paludes. A raiva surda do homem “de consciência exacerbada”302 se transforma, no

narrador da sotie, em hipersensibilidade risível, à beira da histeria. Além disso, enquanto no texto de Gide o narrador se angustia com a imobilidade que identifica em si e em seus amigos, o homem do subterrâneo se compraz em sua inação:

É precisamente nesse estado miserável, frio, mesclado de desespero e incredulidade, nesse enterro de si próprio na tristeza (...), nesse in

pace inevitável e equívoco, nessa febre de vacilação (...), é em tudo

isso que reside a origem dessa estranha voluptuosidade (...). É tão sutil e difícil de compreender esse deleite, que os homens de vistas curtas, ou, simplesmente de nervos sólidos, não podem entendê-lo.303

O que é uma doença para o narrador de Paludes é, para o homem do subterrâneo, um sinal distintivo, a marca de uma inteligência superior. A norma é a ação irracional, e a reflexão é uma qualidade que implica introspecção e exclusão da sociedade em geral.

Mas gostar de sofrer não é, à primeira vista, algo racional. Surge então no texto o tema da razão, que para o homem do subterrâneo constitui uma

300 DOSTOIEVSKI, F. “Memórias do subterrâneo”. In ___. Obra completa. Tradução de Natália Nunes e

Oscar Mendes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. v. II. p. 666.

301 Ibid., p. 670 302 Ibid., p. 677. 303 Ibid., p. 671.

139 pequena parcela do ser humano, formado essencialmente pelo desejo, totalmente irracional. Assim sendo, viver apenas sob a influência da razão é visto pelo narrador como algo impossível. Mesmo as ações que parecem obedecer a princípios determinados pela razão são realizadas sem o objetivo de chegar a um resultado qualquer; nem todas as ações humanas podem ser explicadas pela razão, ideia muito próxima à do ato gratuito (ou livre), esboçada em Paludes. Como no caso das Bucólicas, o texto de Gide apresenta um movimento duplo com relação à obra de Dostoievski. Aceitando a questão da indeterminação de certos atos, o escritor inverte a noção de homem normal apresentada nas Memórias do subterrâneo, e retira do homem de consciência aguçada seu aspecto trágico, fazendo dele objeto de ironia.