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O cineasta Glauber Rocha nasceu, em Vitória da Conquista, no estado da Bahia. Com inserção no jornalismo e na literatura, Rocha pode ser descrito como um artista catalisador de tendências estéticas e políticas que atravessaram a cultura brasileira dos anos 1960 em diante. Enquanto cineasta é responsável pelas principais obras cinematográficas produzidas no Brasil, sendo também um dos artistas brasileiros mais reconhecidos internacionalmente. Rocha é objeto de retrospectivas de sua obra em cinematecas, universidades e instituições culturais em inúmeros países, bem como tema de pesquisa acadêmica em áreas de conhecimento que saem do escopo da teoria do cinema, envolvendo também as teorias social e política, bem como estudos semióticos e estéticos.

Sua trajetória de vida também se entrecruzou de forma incisiva com as perspectivas econômico-políticas vivenciadas pelo país: nacional-desenvolvimentismo dos anos 1950 às modalidades tecnocráticas adotadas pelo regime militar nos anos 1960, que refletem

na sua obra cinematográfica e especialmente na forma como atuou enquanto artista agregador de tendências estéticas e politicas. Seus filmes eram uma recusa do modelo tradicional de narração e criação cinematográfica, pois procuravam observar o país em seus múltiplos fluxos e em uma realidade multifacetada: os rituais afro-brasileiros expostos em “Barravento” (1961); a síntese do desenvolvimento político brasileiro em “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964); a crise do populismo político em “Terra em Transe” (19967) representa um avanço não apenas na teoria do cinema mas na capacidade desse meio em examinar e produzir um diagnóstico totalizante do país e sua inserção nos fluxos globais.

Glauber, inicialmente preocupado em desvendar os mecanismos que sustentam e reproduzem o poder político, acabou produzindo um retrato mais amplo da formação das inúmeras forças sociais que sustentavam o país: de uma burguesia atrelada aos fluxos internacionais; do campesinato com seus rituais arcaicos e uma religiosidade primitiva; de uma classe média incipiente e, sobretudo insegura diante dos processos de modernização econômica em curso, forças essas que entravam em choque e nessa dinâmica assimilavam uma às outras. Assim questões como a emergência de um padrão cultural no Brasil; as relações entre identidade nacional, América Latina e neocolonialismo cultural; as fusões entre diferentes culturas e tempos históricos, transformaram de forma definitiva não somente o cinema no Brasil, mas o estado da arte brasileira em geral.

Com tamanha ambição era natural que o cinema de Glauber não apenas o projetasse no campo artístico, mas também no cenário político. Próximo da esquerda cultural dos anos 1960 e simpático ao marxismo acadêmico então em voga, não deixou de imprimir sua marca pessoal em todas essas balizas, muitas vezes as ultrapassando de forma radical. Desde o início de sua carreira no final dos anos 1950 – seu primeiro filme, “O Pátio”, de 1959, realizado na Bahia, chamou a atenção de críticos em São Paulo e no Rio de Janeiro – até a sua morte em 1981, foi um artista agregador. Sua posição no interior da cultura brasileira o aproxima de outros intelectuais com atividades que extrapolam sua atividade original como, por exemplo, Mário de Andrade. Rocha também mantinha uma correspondência intensa com amigos, cineastas e políticos, indicando posições e trajetórias a serem perseguidas. Como Mário, aproximou-se das instituições estatais e de uma concepção particular acerca do desenvolvimento político do país, ultrapassando as fronteiras que delimitam o ofício do artista.

Glauber também foi o principal líder do movimento Cinema Novo, que ocorreu no Brasil entre os anos 1950 a 1960. Além de atualizar a arte cinematográfica brasileira com o debate internacional, o movimento propunha uma atuação política mais direta, seja por meio dos filmes ou por atuação direta no poder político. Sua atuação enquanto liderança no meio artístico pode ser observada em depoimentos, cartas e diversos documentos, sendo que Rocha esgarçava as fronteiras do artista tradicional assumindo o papel de condutor de um processo maior cujo objetivo era definir um padrão para a cultura brasileira. E se essa sofre um processo de descaracterização cultural devido aos fluxos econômicos internacionais, cabia então abrir uma nova frente de atuação tendo Glauber operado uma transformação no sentido tradicional de liderança ao assumir uma interlocução com as instituições estatais e o poder político. 3

Aqui Rocha propunha uma linha de atuação às instituições governamentais, mesmo diante de um governo autoritário que dificultava a capacidade de articulação entre artistas e Estado. Desde o começo dos anos 1960 encontramos nos escritos de Glauber uma concepção de instituições estatais e de política cultural disposta a abrigar uma nova concepção de cinema no Brasil. Essa capacidade de articulação cultural e política possibilitou a abertura dos centros de decisão e de formulação de políticas. Sua aproximação gradual com um núcleo influente de militares com perfil nacionalista ajudou a consolidar um diálogo institucional entre o regime autoritário e agências estatais de produção e difusão cultural. O resultado dessa ação de Glauber resultou numa cunha aberta no interior do Estado ocupada posteriormente por cineastas e produtores culturais. 4

Aqui notamos Rocha examinando o regime autoritário a partir de certas características que seriam verificadas décadas depois, ou seja, a porosidade do regime autoritário em       

3 O cineasta Nelson Pereira dos Santos definia esse comportamento agregador de Glauber: “há quem diga, jocosamente, que o Cinema Novo é o Glauber Rocha no Rio de Janeiro. Quando o Glauber aparece no Rio, fala-se, discute-se, combate-se, funda-se, liquida-se o Cinema Novo. O Glauber fundou o Cinema Novo e uma vez escreveu um artigo para acabar com o Cinema Novo. Ele tem essa capacidade de fazer onda, de arregimentar pessoas (grifo do autor). Revista Civilização Brasileira, n. 01, 1965, p.186.

4 Ivana Bentes analisou a correspondência de Glauber Rocha entre os anos de 1950 a 1980, notando assim um perfil de liderança que estipulava um ritmo e um papel aos diversos atores: “Glauber é dominado por esse “fogo de realização” que se alastra por todo um grupo ou geração. Impressiona o número de cartas em que estipula para si, para o remetente ou para o grupo de amigos um programa ou projeto coletivo, uma série de tarefas, obras e filmes a serem realizados. O tom é impositivo e cúmplice, dizendo o que fazer, como e por que fazer. Uma espécie de reforma agrária-estética-cinematográfica, distribuindo regiões do Brasil, roteiros e temas possíveis entre os cineastas, num desejo de mapear estética e politicamente o país”. BENTES, Ivana. Cartas ao mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 19.

relação à diversos segmentos da sociedade brasileira e a necessidade de responder a demandas vocalizadas por grupos sociais específicos. A criação de diferentes agências de suporte ao filme brasileiro – Instituto Nacional de Cinema (1967); Embrafilme (1969) – respondiam à diferentes motivações e pressões, mas certamente a liderança catalisadora de Glauber foi um elemento decisivo.

Transitando entre a cultura e a política, Glauber Rocha modificou os termos que constituem uma liderança tradicional: não apenas mobilizou mas criou um conjunto de ideias e argumentos que semeou em múltiplas direções; articulou uma visão sistêmica para a atuação governamental e especialmente dialogou com diferentes concepções de poder político. O seu exílio nos anos 1970 pode ser uma decorrência do escopo de sua atuação; sua morte em 1981 não finalizou um estilo de liderança político e cultural, mas consolidou um espaço para um tipo de líder atento aos distintos contextos – e sua movimentação no interior deles – e aberto ao debate em uma sociedade que caminhava rapidamente para a pluralização de suas instâncias de representação política e social. Os anos 1980 em diante - com o processo de redemocratização do país - vai encontrar este perfil de liderança melhor consolidado.

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