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Ao contrário do que se supõe no senso comum, Mário de Andrade não foi apenas um grande escritor de literatura ou o homem ligado às artes e cultura, embora essa é sua face mais conhecida. Há outra dimensão fundamental para entender sua importância: ele também foi um intelectual, pensador que se debruçou em estudos, pesquisas e viagens com a intenção de melhor compreender o Brasil e os brasileiros, fundamentalmente a partir do campo cultural e artístico. Neste sentido, a pesquisa deverá abordar Mario de Andrade desenvolvendo reflexões e ações no campo da política brasileira.

Santos (2012) aponta o fim dos anos 20, particularmente com suas viagens etnográficas (conhecidas pelo livro O Turista Aprendiz, como um momento de formação de Mário de Andrade que repercutiria em sua atuação política na década de 30. A partir de 1935, Mário de Andrade coordena o Departamento de Cultura do Município de São Paulo, onde dirigiu dois projetos de suma importância para analisar seu papel de líder político: a Sociedade de Etnologia e Folclore (SEF) e a Missão de Pesquisas Folclóricas (MPF). A primeira incentivou a formação de pesquisadores, na então incipiente academia brasileira, para a coleta de materiais e objetos que pudessem ser recolhidos, registrados com a intenção de contribuir com o desenvolvimento de áreas acadêmicas e científicas que surgiam no Brasil. A segunda foi um projeto responsável por viajar pelo Brasil para

identificar e recolher manifestações artísticas e folclóricas do Brasil, ajudando no entendimento e institucionalização dessas práticas.

Vale referir brevemente, aqui, que a criação da Sociedade de Etnologia e Folclore, anterior à MPF, tinha como objetivo a formação de pesquisadores e técnicos capazes de reconhecer e coletar dados de populações tradicionais brasileiras, inspirados em trabalhos que ocorriam em outros lugares do mundo e que Mário de Andrade conhecia a partir de revistas e livros que colecionava. Para isso, criou cursos que eram coordenados pela etnóloga Dina Lévi-Strauss, primeira mulher do antropólogo Claude Lévi-Strauss. Tanto a MPF quanto a SEF são representativos do que Mário de Andrade entendia por pesquisas sobre cultura popular brasileira. De acordo com Antonio Candido (211), era Mário de Andrade, no grupo modernista, quem tinha a preocupação maior em pensar com profundidade a realidade brasileira. Algumas das ações desse homem público propiciaram a visão da cultura popular brasileira como um legado, um patrimônio que deveria ser estudado e preservado. Essa ideia permanece viva até os dias atuais. Esses dois projetos institucionais, tão caros a Mário de Andrade, ecoam traços já delineados por ele próprio na realização de suas viagens, são, por todos esses motivos, objeto de análises mais acuradas.

Assim, analisamos aqui, o papel do autor modernista como ‘homem público’, compreendido aqui em uma acepção mais ampla, como alguém que exerceu cargo político na Prefeitura de São Paulo, desenvolvendo atividades que buscavam institucionalizar politicas culturais no município de São Paulo, e que no futuro serviram de base e fundamento para as políticas culturais brasileiras. Além disso, também guardavam preocupações referentes à preservação do patrimônio histórico, artístico e cultural brasileiro, seja material ou imaterial.

O cargo de chefia do Departamento de Cultura foi ocupado por Mário de Andrade entre 1935-38 e, mais tarde, ocupou também cargo no MES (Ministério da Educação e Saúde no governo Vargas), durante a gestão de Gustavo Capanema. Mário de Andrade foi o principal idealizador (ao lado de Paulo Duarte) e primeiro diretor daquele departamento, que 50 anos mais tarde inspiraria a criação do Ministério da Cultura (MinC) do Brasil. É nesse momento que Mário de Andrade, o homem ‘público’, coloca o Departamento de Cultura como um modelo de pesquisas sobre a cultura brasileira (Santos: 2012, 17). A proposta desta vertente de pesquisa é analisar a forma particular que Mário de Andrade se apoia para se tornar uma liderança política, pelo viés da cultura. Principalmente pelo entendimento e concepção que teve do Brasil, a partir da viagens

etnográficas que empreendeu e o auxiliou na construção cultural do Brasil. Assim, o trabalho é uma tentativa de observar a fundamentação da prática política de Mário de Andrade através da dimensão da cultura brasileira, seja por suas viagens mas também nas redes de relações sociais que estabeleceu com outros artistas e intelectuais.

É sabido, por ampla literatura acadêmica e pesquisas, que os anos 20 e 30 foram fundamentais para a consolidação de determinados direcionamentos políticos que influenciaram o Brasil até os dias atuais. No caso aqui específico, não podem ser esquecidas as ações ocorridas no interior do movimento Modernista. Antonio Candido em Literatura e Sociedade (2000) lembra que:

A força do Modernismo reside na largueza com que se propôs a encarar a nova situação, facilitando o desenvolvimento até então embrionário da sociologia, da história social, da etnografia, da teoria educacional, da teoria política. Não é preciso lembrar a sincroniza dos acontecimentos literários, políticos, educacionais, artísticos, para sugerir o poderoso impacto que os anos de 1920-1935 representam na sociedade e na ideologia do passado (Candido: 2000, 122) .

Assim, o movimento modernista pode ser sintetizado como: um movimento, uma estética e um período (Candido e Castello: 2006, 9). Assim, esse movimento expande sua importância para além do campo cultural e artístico, ao contribuir em aspectos da própria sociedade e política brasileira. A própria Semana de Arte Moderna de 22, ponto de partida oficial do modernismo brasileiro é definido por alguns autores como uma nova mentalidade.

Em perspectivas largas, o Modernismo foi apenas, na década de 20, a outra face de um ímpeto de reforma, inclusive política e social, de que se surpreendem as exsurgências mais diversas e inesperadas. Parece, portanto, perfeitamente correto tomar o ano de 1916 como a data convencional em que a caracterização de um novo estado de espírito implicará no aparecimento de uma nova escola literária e artística capaz de substituir o Parnasianismo e o Simbolismo, já então decididamente esgotados enquanto tipo de sensibilidade coletiva. (Paes & Moisés: 1964, 164).

Dentro dessa abordagem, ao procurar por uma nova sensibilidade coletiva, Mário de Andrade dá mais ênfase em procurar por uma nova brasilidade, dentro do modernismo. E essa brasilidade repercutiria no futuro de suas ações políticas. Essa busca é ressaltada por Moraes (1978).

Podemos verificar na oposição de Mário a Oswald de Andrade, particularmente na defesa que o primeiro faz da sabedoria, do estudo, da “sabença” para utilizar sua expressão, que as vias de construção da cultura brasileira começavam a divergir. Sabemos como Mário de Andrade, desde essa época, preocupava-se mais em pesquisar, no sentido quase universitário da palavra, os elementos que constituem a brasilidade. Sua obra, com raras exceções, é obra de um estudioso. Ao final, de sua vida, Mário haverá de recriminar a si próprio o fato de ter praticamente abandonado o setor de criação artística da sua obra e de ter encaminhado para empreender o imenso levantamento da cultura brasileira em que ele energicamente batalhou (Moraes: 1978, 93).

Telê Lopez (2002) também defende que parte da reflexão modernista vinha deste contacto que se pretendeu direto com uma parcela do povo brasileiro, pôde focalizar os processos de criação popular (…) apresentando coincidência com propostas de determinadas vanguardas europeias (p.16). Ou seja, o que se observa é uma tentativa de incorporação de parcelas significativas do povo brasileiro para o fazer artístico e cultural do Brasil, aqui compreendido em sua dimensão política.

Ao fazer a divisão periódica do modernismo brasileiro, Candido e Castello (2006) ressaltam que para além do ambiente artístico, a emergência de novas áreas do conhecimento como resultado do movimento.

É o caso dos estudos históricos e sociais: Sociologia, folclore, etnologia, história econômica e social, que passam por acentuada renovação, focalizando com intensidade crítica a realidade do País nas obras de Gilberto Freyre, Artur Ramos, Sérgio Buarque de Holanda, Fernando de Azevedo, Caio Prado Júnior e outros. É o momento em que se fundam grandes coleções de estudos brasileiros e as primeiras Faculdades de Filosofia, Ciência e Letras, que teriam influência decisiva na formação dos quadros intelectuais. O movimento editorial se firma e se amplia, em escala nunca vista, terminando a dependência das firmas estrangeiras. A vida artística assume importância antes desconhecida, na pintura, na arquitetura, na música, na renovação teatral (Candido & Castello: 2006, 32).

Como Mário de Andrade era uma das figuras proeminentes no modernismo brasileiro, esteve diretamente envolvido, por exemplo, com a relação criada, estabelecida entre artistas e academia, principalmente quando se analisa o papel que desempenhou com a criação da SEF e o apoio dado ao casal Lévi-Strauss, que estavam no Brasil com a Missão Francesa (grupo de professores que veio desenvolver a recém criada Universidade de São Paulo - USP).

Durante as viagens etnográficas, principalmente a segunda, que esteve mais voltada para os estudos (Lopez, 2002; Santos, 2012) é possível notar a preocupação de Mário de Andrade com os Homens-do-povo e as condições de subsistência deles. Certamente, sensibilizando-o para o abandono que se encontravam e contribuindo, dessa forma, para as preocupações de Mário de Andrade em suas atuações políticas.

Vale lembrar ainda que, no Brasil, movimento modernista e política tem uma relação dada por seus atores. Nosso modernismo nunca foi uníssono e dele partiram várias vertentes tanto estéticas como políticas que o levaram a diversas subdivisões bem conhecidas como: Movimento Pau Brasil, Movimento da Anta, Movimento Verde- amarelo, Movimento Antropofágico. Alguns com colorações mais à progressistas e outros mais conservadores, cujo exemplo mais eloquente é o verde-amarelismo de

Plínio Salgado que culmina com o projeto político da Ação Integralista Brasileira (AIB) (Santos, 2012).

A análise aqui desenvolvida defende que Mário de Andrade foi um sujeito político sob duas perspectivas: a primeira, como participante ativo de um debate público (com o projeto modernista), que propunha reformulações e intervenções artísticas e culturais, com claros interesses estéticos, mas também ideológicos. Também pode-se considerá-lo como político no sentido da carreira institucional que desenvolveu como ‘homem público’ que institucionalizou o campo cultural na política brasileira. Assim se propõe a pensar a esfera do sujeito cultural atuando na política, pois Mário de Andrade sempre teve como preocupação, demonstrada em diversos momentos de sua obra, a função social do artista. Ou seja, o papel do artista no conjunto da sociedade. Assim, também como político observamos o pilar ‘homem pesquisador’, uma vez que sua atuação baseou-se em práticas metodológicas de cunho científico, que reverberaram na sua atuação institucional.

As três faces do poeta modernista estudadas aqui, portanto, não devem ser desmembradas: estão necessariamente interligadas. Como Coutinho (1988) afirma, o século XX espalhou “a convicção que o Brasil podia ser ‘vivido’ intelectualmente, e, com a matéria prima que oferece, recriado artisticamente” (pg. 236). Assim, Mário de Andrade não só recria o Brasil artisticamente mas também age também como fomentador de transformações políticas (Santos: 2012, 19).

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