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Glauber Rocha, como não poderia deixar de ser, surge nas páginas do

Suplemento Literário como o principal articulador do Cinema Novo. Suas assertivas serão voltadas, na maioria das vezes, para a abordagem do momento histórico que envolveu o surgimento do Cinema Novo e das consequências do movimento para a cinematografia brasileira. Os ganhos históricos adquiridos, permitiram, na opinião de Rocha, a abertura de horizontes a novos cineastas brasileiros, trazendo às telas leituras cinematográficas esteticamente mais “seguras”.387

Para além dessas considerações, Glauber Rocha procura na Semana de Arte

Moderna o momento cultural fundador que orientou a crise pelo qual passou o campo artístico no Brasil no século XX. Para o cineasta baiano, alguns ícones culturais, como Mario de Andrade e Carlos Drummond de Andrade, na literatura, Villa-Lobos na música, o Teatro de Arena e o movimento concretista tornaram possível o caminho posteriormente aberto pelo Cinema Novo.388 Assim, Glauber Rocha elege os marcos fundantes do que ele chama de “revolução cultural no Brasil no século XX”389, aspectos

386 Afirma Cacá Diegues: “Das cinzas do realismo intimista um novo espetáculo está surgindo e a gente

pode dizer que o cinema brasileiro toma parte nesse acontecimento. Um novo espetáculo que mistura política com piada, Shakespeare com modinha de viola, os Beatles com Jorge de Lima, Pelé com Brecht, Maria Betânia com Godard.” In: SGANZERLA, Rogério. Carlos Diegues depõe – II. Jornal O Estado

de S. Paulo: São Paulo, 07 jan.1967. Suplemento Literário, p.5

387 De acordo com Glauber Rocha, “Foi com o esforço da primeira geração do Cinema Novo que uma

segunda geração (Walter Lima Jr., Arnaldo Jabor) pode hoje desenvolver um cinema mais amadurecido e principalmente mais comunicativo. Aproveitam as experiências anteriores: eles estreiam com maior segurança. Já não há mais no cinema brasileiro o temor do diálogo, do ator, da câmera, o temor do ritmo. Existe uma pequena tradição no cinema brasileiro que – no plano artesanal – não é mais uma aventura rumo ao desconhecido.” In: SGANZERLA, Rogério. Fala Glauber Rocha – I. Jornal O Estado de S.

Paulo: São Paulo, 07 mai.1966. Suplemento Literário, p.5

388 Para Glauber Rocha, “O Cinema Novo tem sua origem na confluência dos movimentos do Teatro de

Arena e concretismo, uma origem da qual imediatamente se afastou para ganhar uma dimensão bastante diversa – levada pelas implicações próprias do cinema.” Ibid.

que possibilitaram uma investida cinematográfica que, transpassando outras áreas intelectuais e artísticas, procurou redefinir os rumos do cinema brasileiro.

Tendo como parâmetro filmes realizados no Brasil, dentro do escopo cinemanovista, Glauber Rocha aponta as variantes conceituais que, atentas ao momento político brasileiro do período (conturbações políticas que originaram o Regime Militar), mergulharam numa estética visual do risco. Em outras palavras, o cineasta baiano observa que a narrativa proposta, de maneira geral, pelos filmes do Cinema Novo, manteve uma relação muito próxima com a música. Para além deste parâmetro, Rocha cita a investida dos cineastas sobre a noção do “fantástico”, fator relevante quando se pensa na configuração de um cinema que se queria revolucionário e poético.

Aqui, um aspecto em particular chama a atenção: o fato de o cineasta baiano inter-relacionar cinema e música enquanto linguagens coirmãs, necessárias para a efetivação de avanços estéticos e conceituais. Neste sentido, Rogério Sganzerla também acredita que a relação entre música e cinema é tão entrelaçada que chega mesmo a afirmar que “cinema é música”.390 Em Sganzerla, tal intermitência entre os campos fica mais evidente a partir da década de 1980, quando o cineasta catarinense irá se debruçar sobre obras de João Gilberto, Noel Rosa, Jimi Hendrix, Caetano Veloso, Gilberto Gil e H. J. Koellheuter (para além da abordagem que realiza do samba e do carnaval).

Nas páginas do Suplemento Literário, Glauber Rocha anuncia o “cinema do absurdo”, revelador de uma condição social e política e fruto do inconformismo. O prenúncio deste quadro imagético, gestado no seio do Cinema Novo por Walter Lima Jr. (Brasil, ano 2000), Cacá Diegues (A grande cidade), Nélson Pereira dos Santos (Como

era gostoso o meu francês) e o pelo próprio Glauber Rocha (Terra em transe), sinaliza uma linha de conduta que se coloca a frente no tocante ao momento vivido pelo cinema brasileiro à época.391

Na entrevista concedida ao crítico Rogério Sganzerla, Glauber Rocha adota um discurso que defende o Cinema Novo de qualquer investida crítica, seja social, política ou mesmo estética. As afirmativas do cineasta soam panfletárias, um libelo crítico que

390 NETO, Alcino Leite. Cinema com arte: Sganzerla e Bressane. Jornal Folha de S. Paulo. São Paulo:

27 ago. 1995. Ilustrada, p.2

391 Diz Glauber Rocha: “Para mim, o estilo por excelência é esta inquietação em busca de um estilo;

porque não temos tradição cinematográfica e vivemos fatos político-social-econômicos novos a cada instante e o Brasil se desenvolve aos brados, aos gritos, aos impulsos e aos abortos. Um cinema verdadeiramente expressivo é o que se desenvolve assim: - aos brados, aos gritos, aos impulsos, aos abortos.” In: SGANZERLA, Rogério. Fala Glauber Rocha – II. Jornal O Estado de S. Paulo: São Paulo, 14 mai.1966. Suplemento Literário, p.5

intenta, a todo instante, reafirmar a relevância histórica do Cinema Novo.392 É interessante perceber que as afirmações de Glauber ocorrem em meio a poucas questões levantadas pelo entrevistador (Sganzerla); instaura-se praticamente um monólogo. Com efeito, praticamente todos os argumentos apresentados por Glauber Rocha acerca do Cinema Novo serão, pouco tempo depois, refutados, rebatidos e criticados por Rogério Sganzerla, cineasta. É quase possível visualizarmos, na análise da entrevista (documento), um certo desconforto do entrevistador diante das questões expostas pelo entrevistado.

O cineasta de Deus e o diabo na terra do sol observa que, àquela altura dos acontecimentos, o Cinema Novo já havia rompido as fronteiras do Rio de Janeiro e, esteticamente, estabelecia um diálogo com São Paulo. Entretanto, Rocha reconhece, fora da esfera do Cinema Novo, a proeminência “paulista” do cinema de José Mojica Marins e de Luiz Sérgio Person, por exemplo, e invoca por ações estatais que promovam o cinema em São Paulo.393

A entrevista é finalizada com Glauber Rocha fazendo algumas considerações sobre a produção daquele que viria a ser o seu próximo filme, Terra em transe. Com efeito, o diálogo entre Rogério Sganzerla e Glauber Rocha iria ocorrer novamente, cerca de dois anos depois desta entrevista mas, desta vez, por meio das opções estéticas delineadas por cada um deles em seus filmes. Polêmicas que serão estendidas para a órbita dos movimentos, Cinema Novo e o então chamado “Cinema Marginal”; que serão corroboradas pela união civil realizada entre Rogério Sganzerla e Helena Ignez, ex-esposa de Glauber Rocha; que serão consolidadas na entrevista que Sganzerla

392 Na entrevista, Glauber Rocha é enfático: “O processo de seleção para o exercício cinematográfico não

nasce, como muita gente pensa, sente e diz de uma estrutura de cupinchagem (sic) e de igrejinhas. O Cinema Novo nasce do próprio, exclusivo e individual talento do pretendente. Sobretudo da disponibilidade e coragem de enfrentar a vida. A marginalização de certos diretores, jovens e velhos, do processo Cinema Novo se deve às problemáticas pessoais destes homens e não a ‘recusas’ do C.N. em recebê-los e integrá-los. Um movimento que pretende ser industrial e culturalmente grande não perde tempo com mesquinharias e intrigas provincianas. O C.N. não é exclusividade de alguns, é uma legenda à disposição de todos: quem se elege Cinema Novo é o próprio cineasta.” Ibid.

393 Afirma Glauber Rocha: “O que é urgente em S. Paulo é uma breve modificação do sistema de

produção gigantesca, em busca de uma maior flexibilidade. Para concorrer com a televisão e o cinema estrangeiro, interna e externamente, precisamos de um cinema industrial de autor. (...) O que se deve ter acima de tudo, mesmo acima das divergências artísticas e ideológicas, é a necessidade de superar esta crise. Cabe ao Estado e à municipalidadde uma legislação que ajude os produtores a enfrentar as experiências, vencer as dificuldades e ganhar uma estabilidade sem que para isso o cinema seja obrigado à pornografia, à violência e ao mau gosto.” SGANZERLA, Rogério. Fala Glauber Rocha – II. Jornal O

concederá ao Pasquim em 1970; que serão amainadas após a morte de Glauber Rocha, na década de 1980.

O Brasil que emerge das páginas do Suplemento Literário sob a rubrica de Rogério Sganzerla é simplesmente cinema: de Humberto Mauro a Glauber Rocha, Sganzerla mergulha no trabalho artesanal de cada cineasta em cada filme para dissecar os caminhos estéticos traçados pela imagem nas telas. Da técnica à teoria, o crítico transita entre um passado cinematográfico brasileiro renegado (a Chanchada) e um presente, a seus olhos, pouco promissor (Cinema Novo). O retorno à crítica de cinema nos jornais ocorrerá na década de 1980 assinando artigos nos jornais Folha de S. Paulo e o Estado de S. Paulo, onde Sganzerla, agora também cineasta, fará uma revisão crítica de alguns de seus pressupostos e manterá outros intactos. Neste interregno, suas produções fílmicas falarão por si demonstrando, nas telas, os caminhos trilhados pelo cineasta que revelam, paulatinamente, a fundamental importância de Oswald de Andrade para a execução de suas obras. No horizonte da técnica do cinema moderno, Sganzerla vai de Hawks a Welles, passando por Mojica e Godard: é a antropofagia; do maestro H. J. Koeullreuter a Noel Rosa, passando por João Gilberto e pelo samba: poesia “Pau Brasil”; de “Jorginho” (O bandido da luz vermelha) a “Ângela Carne-e- Osso” (A mulher de todos) e “Sônia Silk” (Copacabana mon amour): o desencanto de

CAPÍTULO III

ANTROPOFAGIA EM CENA: O BANDIDO DA LUZ