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Colocando em xeque todo o percurso estético traçado pelo cinema tradicional, Rogério Sganzerla destitui de qualquer aura os pressupostos conceituais de um cinema dito clássico. Ao crítico, interessa pouco uma cinematografia que pretenda ser ideal ou absoluta. A intriga afeita a padrões pré-estabelecidos de narração e descrição deve ser, na opinião do crítico, superada. O caráter onisciente da câmera é refutado309 e a relação espaço/tempo é questionada, na medida em que a técnica de cinema passou a funcionar em função de um único estilo.310 Com o cinema tradicional, em suma, os cineastas passam a ser considerados “homens-orquestras (...) trabalhando conjuntamente como romancista, pintor, músico, dramaturgo, decorador etc.”311 Na contramão desta

307 SGANZERLA, Rogério. Cinema impuro?. Jornal O Estado de S. Paulo. São Paulo: 23 jan. 1965.

Suplemento Literário, p.5.

308 Ibid.

309 “O crítico francês André Labarthe observa que os cineastas antigos não mediam esforços para obter a

visão absoluta duma determinada situação. Suprimia-se uma parede para colocar o aparelho nesta ou naquela posição – é o cinema tradicional que mais justifica o estúdio.” In: SGANZERLA, Rogério. Noções de cinema moderno. Jornal O Estado de S. Paulo. São Paulo: 30 jan. 1965. Suplemento Literário, p.5

310 “Invariavelmente usavam-se técnicas como co campo-contracampo, frases narrativas, progressão

dramática etc., mesmo quando as condições eram difíceis. Cada espécie de ângulo expunha obrigatoriamente uma situação: um plongée definia a fragilidade, o abatimento ou a solidão do personagem; o contre-plongée, por sua vez, pretendia o efeito inverso. Outro monstro sagrado, o close-up, perdeu inúmeras ‘significações’ para ser sistemática e displicentemente adotado pela moderna narração.” SGANZERLA, Rogério. Noções de cinema moderno. Jornal O Estado de S. Paulo. São Paulo: 30 jan. 1965. Suplemento Literário, p.5

perspectiva, o moderno cinema rompe com a “tradição” a partir do momento em que relativiza as opções estéticas desde o instante em que passa a se valer das técnicas não muito usuais em se tratando do cinema.312

O crítico observa que a busca por uma integração com a realidade, efetuada por meio da câmera, lança por terra qualquer idealização da realidade de outrora. A investida em busca de uma estética mais próxima do real põe em cena, literalmente, o dado concreto.313 Para Sganzerla, o cinema moderno instaura a liberdade:

Não há situações preconcebidas, estas nascem em contato com o espaço e tempo reais, determinados, concretos e individuais. Uma parede imprevista, um gesto não ensaiado, um reflexo solto, são instantes espontâneos e fugazes que, registrados pela objetiva, tornam- se preciosos e vitais: são instantes de liberdade.314

A influência de outros estilos (documentário, cinejornais etc.) e de outras linguagens (televisiva, radiofônica) reforça a proeminência do cinema moderno. A relatividade estabelecida por intermédio das imagens permite a execução do “cinema- ensaio”, estilo aclamado pelo crítico. No âmbito da interpretação, o improviso (“ausência de progressão dramática, sequências longas ao lado de curtas; ritmo na imagem e não na montagem etc.”315) ganha espaço entre o elenco, uma vez que a narração deixa de seguir uma orientação sequencial. Se o cinema é a “arte do presente”316 deve, por consequência, abolir a construção fílmica tradicional. Para o crítico, esta é uma das únicas possibilidades que o cinema dispõe para refletir sobre si mesmo.

312“Em primeiro lugar, o filme localiza-se diante da realidade, muito vasta e profícua para ser abstrata e

composta em doses, ou seja, obedecendo a uma estrutura cartesiana. A câmera individualiza-se e toma posição frente à intriga; já não se situa em todos os lugares, posições, e até dois lugares ao mesmo tempo (montagem paralela) etc.” SGANZERLA, Rogério. Noções de cinema moderno. Jornal O Estado de S.

Paulo. São Paulo: 30 jan. 1965. Suplemento Literário, p.5

313 “Grande parte dos filmes modernos passa-se em exteriores reais, localiza-se no contato com a

realidade bruta. Invade objetos como automóveis, corredores, o elevador e a rua, em movimento, onde se sente as limitações da captação do real. A ‘câmera na mão’ pode ser considerada como uma forma primitiva de relatividade cinematográfica, fornecida pela sensação de limitação e fragilidade. É justamente aquele ‘melhor ângulo possível’ e para tanto usa recursos mais fáceis como o travelling sem trilhos (que não é absolutamente invenção do cinema moderno), maquinaria reduzida, filmagem com luz natural e sem rebatedores, som direto, pequena equipe.” Ibid.

314 Ibid. 315 Ibid.

316 “A valorização do presente faz com que a cena não exista em função da estrutura e do desenlace, mas

em função de si mesma. Cada cena reflete e revela o presente.” SGANZERLA, Rogério. Noções de cinema moderno. Jornal O Estado de S. Paulo. São Paulo: 30 jan. 1965. Suplemento Literário, p.5

Dentro deste horizonte de oposição estabelecido pelo crítico, subsiste outro que emerge junto ao cinema moderno (e Rogério Sganzerla radicaliza nesta oposição). Tal jogo de contrários ocorre, na ótica do crítico, por meio de polos opostos: “cineastas da alma” versus “cineastas do corpo”. Num primeiro momento, a dicotomia antevista por Sganzerla define padrões estilísticos no tocante à realização dos filmes. Neste sentido, o quadro pintado pelo crítico enseja caminhos distintos trilhados pelos cineastas que, a despeito de estarem imersos na cinematografia moderna, apresentam discrepâncias não apenas conceituais.

No primeiro grupo (“cineastas da alma”), há toda uma descrição analítica de determinado escopo de cineastas (e de seus filmes) que primam por procedimentos comuns em suas realizações. De acordo com Sganzerla, os “cineastas da alma” fazem parte de um cinema que “pensa”, um cinema mais “adulto”, que volta suas atenções para a dramaticidade psicológica das narrativas cinematográficas.

Michelangelo Antonioni, Frederico Fellini, Robert Bresson, Ingmar Bergman, entre outros, são colocados na dianteira de um estilo fílmico que busca atingir os conflitos internos do homem e que, agindo dessa forma, se aproxima do romance literário: “(...) as películas especulam, explicam e calculam os dramas e perturbações das pessoas.”317 Para Sganzerla:

Exatamente como os romancistas tradicionais, os cineastas da alma relegam de maneira sistemática as aparências dos seres e objetos porque acreditam exclusivamente na alma humana e seus enigmas; não tanto indagando-a e questionando-a, mas esquematizando-a em pensamentos originais. O que pode significar: fazer literatura em fitas ou ser simplesmente pretensioso.318

A ênfase em processos narrativos que se distanciam do real recebe do crítico severa advertência: “uma exclusiva preocupação pelo cinema da alma pode levar a resultados estéreis, a dramas abstratos.”319 As idealizações propostas por esses cineastas proporcionam uma aproximação com o mundo literário que pode, de acordo com o

317 SGANZERLA, Rogério. Cineastas da alma. Jornal O Estado de S. Paulo. São Paulo: 12 jun. 1965.

Suplemento Literário, p.5.

318 Ibid.

319 “Estes dramas, cognominados ‘profundos’, são mais do que suspeitos: não é exatamente a câmera que

penetra e revela o íntimo dos personagens, mas são alguns diálogos espúrios – com exceção dos cineastas japoneses – que pretendem ‘sondar e dissecar a alma humana’, remetendo a temas invariáveis: a incomunicabilidade, superioridade da mulher sobre o homem, a alienação, o coração feminino, a procura da Verdade, o terror e a miséria das almas sem Deus.” In: SGANZERLA, Rogério. Cineastas da alma. Jornal O Estado de S. Paulo. São Paulo: 12 jun. 1965. Suplemento Literário, p.5.

crítico, retirar do cinema sua possibilidade catártica presente no objeto imagem. Em outras palavras, o temor do crítico diz respeito ao possível surgimento de um “cinema literário”, vizinho do cinema tradicional. Ainda segundo Sganzerla, o diálogo cinema- literatura pode ocorrer sem maiores problemas, desde que se leve em conta as peculiares estéticas de ambos os campos.320

Em oposição aos “cineastas da alma”, o crítico prevê a existência dos “cineastas do corpo”: realizadores mais preocupados, de acordo com Sganzerla, com todo o conjunto exterior que cerca tanto os personagens quanto a mise-en-scène do filme. Trilhando a “violência” resultante de corpos em conflito, os “cineastas do corpo” ensejam a criação de um “cinema físico”.321

Deste ponto de vista, “movimento” e “velocidade” garantem a este cinema sua especificidade. “Cineastas do corpo” movimentam seres e objetos na busca de captar a “superfície das coisas”. Desenvolver a história no tempo presente deixa de ser um mero aspecto roteirístico e passa a ser parte constituinte da própria estética da trama. De acordo com Sganzerla, os “cineastas do corpo”,

Evitam o prolongamento do conflito no tempo, o drama com suas implicações de passado e presente na consciência dos personagens. (...) Filmam as situações como faria um cinegrafista de jornais de atualidades: sem obedecer a um passado, sem preocupar-se com o futuro e as cenas seguintes, sem relacioná-las a uma estrutura temporal. Registram-nas displicentemente e obtém uma fragmentação, a captação desordenada e de instantes livres, situados no presente. Trata-se do cinema, arte do presente e das aparências; próximo das atuais concepções de pop art; de um cinema sem memória, em suma, de um cinema sem alma.322

Esse quadro representa o caráter antiliterário dos cineastas, uma vez que, mesmo a literatura, quando utilizada por esses autores, se insere na perspectiva sensorial

320 “O fato de um filme ter ligações com movimentos literários ou apresentar elementos afins, não

constitui, a meu ver, defeito ou deformidade. Basta dizer que a maioria dos novos recursos narrativos provém, direta ou indiretamente, de conquistas formais do romance. Mas as influências devem entrosar-se e integrar uma obra de arte, longe de alterá-la ou bitolá-la.” Ibid.

321“Os personagens lutam entre si, corpo a corpo e os filmes podem basear-se em outras relações: objeto-

corpo, objeto-objeto (há a inclusão dos níveis animal, vegetal e mineral no nível humano). Hawks, Godard, Fuller são anti-humanistas; cineastas materialistas preocupados (mas não muito) com a destruição do homem pelos agentes externos, os meios criados pela nossa civilização (o avião; o automóvel; a metralhadora; o cinema, responsável pela morte dos personagens de Godard).” In: SGANZERLA, Rogério. Cineastas do corpo. Jornal O Estado de S. Paulo. São Paulo: 26 jun. 1965. Suplemento Literário, p.5.

322 SGANZERLA, Rogério. Cineastas do corpo. Jornal O Estado de S. Paulo. São Paulo: 26 jun. 1965.

da câmera.323 Ademais, são os próprios recursos estilísticos do cinema (o “chavão”; os atritos vivenciados por “herói” e “heroína”; o “fatalismo” sem redenção) que permitem a libertação deste cinema (do “corpo”) em relação a um cinema “psicológico” (da “alma”). Aqui, as aparências evidenciam a realidade exibida pela câmera.

Para Rogério Sganzerla, esse caminho traçado pelos “cineastas do corpo” é revelador de certa maturidade e não apenas uma espécie de renúncia a determinado formato de cinema. Tal panorama tem como corolário “(...) um cinema provisório, irregular, moderno afinal, dando as bases para um desenvolvimento a posteriori, as lições e alicerces de um cinema futuro.”324

Em última instância, o crítico observa que todo este movimento estabelecido pelos “cineastas do corpo” elucida o compromisso destes diretores com o cinema. O “amor pelo cinema” está no cerne de um “antimodelo” fílmico que procura definir uma opção estilística, por meio da técnica cinematográfica que, via de regra, procura se estabelecer para além da formação dos gêneros propriamente ditos. A superação da dicotomia “cineastas da alma” versus “cineastas do corpo”, a princípio, impossível de ser alcançada passa, paulatinamente, a apresentar-se como viável sob o olhar do crítico. Ainda em 1965, Rogério Sganzerla começará a apontar os caminhos para a efetivação desta “virada” conceitual.