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GLOBAL, LOCAL E O SENTIMENTO DE PERTENCIMENTO

Com o processo de globalização, para Harvey (2005), espaço e tempo passam a ser reconfigurados, se implanta a ideia de uma aldeia global e o tempo que passa a ter centralidade é o tempo presente. Por isso, o ensino dos Estudos Sociais nos anos iniciais, assim como o de História e Geografia nos outros níveis da escolaridade, podem ir além das questões do imediato. Conhecer como o espaço local foi produzido historicamente contribui para o processo de reflexão e mesmo de compreensão sobre

as influências das questões globais nos locais e vice-versa. Nas palavras de Hall (2001, p. 77), “há, juntamente com o impacto do ‘global’, um novo interesse pelo ‘local’. A globalização (...) na verdade, explora a diferenciação do local”. Segundo ele, o que ocorre não é uma substituição do local pelo global, mas sim uma articulação entre eles. Torna-se, nesse contexto, impossível pensar num sem fazer referência ao outro; os fenômenos não ocorrem de forma isolada e, com a rapidez, principalmente das informações, identificam-se os elementos que compõem esses fenômenos e, se a escola conseguir dar conta de trabalhar com essas informações, é possível ampliar a compreensão de mundo dos alunos.

Entendo por local um espaço ou comunidade em que os sujeitos estão inseridos e que reflete, de certa forma, o que se produz globalmente, mas é preciso estar atentos a questões como as que nos alerta Bauman (2005, p. 94), sobre o lema: “pense globalmente, aja localmente”, pois, para ele, é “mal concebido e até perigoso. Não há soluções locais para problemas gerados globalmente. Os problemas globais só podem ser resolvidos, se é que podem, por ações globais”. Tanto Bauman (2005) quanto Santos (2000) fazem crítica à perversidade do sistema capitalista e à globalização, e defendem a necessidade de se pensar em formas de vivermos em uma sociedade que seja mais justa para todos. É importante pensar sobre como as identidades vão se constituindo nessa sociedade e, para tanto, recorre-se ao que declara Michael Pollak no texto Memória e identidade social (1992), compactuando com o entendimento de que a memória se articula diretamente com a constituição de identidades.

O autor escreve sobre a relação entre memória e identidade, pois é por intermédio da memória que conservamos o que foi produzido pelas gerações anteriores a nossa. Percebemos que Pollak (1992, p. 5) aponta a relação entre memória e identidade principalmente por realizar pesquisas quanto à história de vida e história oral, pois, por meio delas, o que ocorre é o “recolhimento” das memórias, apesar de, muitas vezes, se pensar que ela é individual, mas, na realidade, é produzida no coletivo. Normalmente é resultado de acontecimentos vividos pela pessoa ou seus grupos em sociedade, e isto se manifesta na construção da identidade desse sujeito.

Conforme Pollak (1992), o sentimento de identidade pode ser entendido de diversas formas, mas uma delas “é o sentido da imagem de si, para si e para os outros. Isto é, a imagem que uma pessoa adquire ao longo da vida referente a ela própria, a imagem que ela constrói e apresenta aos outros e a si própria, para acreditar na sua própria representação, mas também para ser percebida da maneira como quer ser percebida pelos outros”. Para Félix (1998, p. 35), “a memória é um dos suportes essenciais para o encontrar-se dos sujeitos coletivos, isto é, para a definição dos laços de identidade”. Novamente podemos perceber o quanto a relação entre as questões individuais e coletivas se ligam, pois somente é possível que o Eu exista no encontro com o Outro ou o Nós. Quando pensamos nas nossas representações, ou seja, na forma como construímos as imagens mentais sobre os mais diversos conceitos e conhecimentos, podemos visualizar o quanto as contribuições da memória estão presentes e, desta forma, o sujeito vai se construindo.

Pollak (1992, p. 5) leciona que “a construção da identidade é um fenômeno que se produz em referência aos outros, em referência aos critérios de aceitabilidade, de admissibilidade, de credibilidade, e que se faz por meio da negociação direta com outros”. Para muitos, porém, a noção de pertencimento ainda fica restrita à identidade, como sendo resultado do lugar em que o sujeito nasceu, desconsiderando qualquer outro elemento histórico, cultural ou social que possa influenciar na construção dessa noção. Para Castro (2011, p. 29), “Pertencer significa partilhar características, vivências e experiências com outros membros das comunidades de pertencimento, desenvolvendo sentimento de pertença”, mas também recorremos mais uma vez ao que Bauman (2005) escreveu sobre como pode ser possível pensar em pertencimento sem que sejamos levados a este questionamento. A escola pode assumir, juntamente com a sociedade, esse papel. O ensino dos Estudos Sociais é um dos caminhos que auxilia nesse processo, pois tem como objetivo, dentre tantos outros, o de provocar as crianças sobre essas questões ligadas ao pertencer, seja ao município, à escola ou a outros grupos sociais.

Ainda sobre a identidade, Castells (2008) compreende que ela precisa ser entendida de forma distinta de papéis sociais, e tem relação com o processo de individuação e de socialização dos sujeitos. É um processo tanto interno quanto de inter-relação com diferentes instituições e grupos sociais. Desta forma, os membros dos diferentes grupos vão construindo suas relações de pertencimento. Para

Sarmento (2002, p. 276), a construção do pertencimento se dá pelas relações comunitárias, “pelas construções de referências, valores de pautas de condutas e distribuição de poderes que são inerentes à pertença comunitária”. Quando se aborda esta questão nos parece impossível não estabelecer uma relação entre a construção do pertencimento e o lugar, pois o lugar é extremamente significativo para as crianças, visto ser nele que elas estabelecem seus vínculos mais afetivos.

Nesse contexto, estudar sobre o lugar apresenta ao aluno um sentido, pois segundo Callai (2000, p. 84), “ao mesmo tempo que o mundo é global, as coisas da vida, as relações sociais se concretizam nos lugares específicos”; as identidades e o sentimento de pertencimento têm relação direta com o que vivenciam esses sujeitos. Por isso, consideram-se essas questões ao se ensinar estudos sociais nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Quando faço referência à necessidade de circular e de vivenciar as mais diversas situações no lugar, é porque acredito não ser possível desconsiderar a relação entre o local e o global, pois, conforme Straforini (2004, p. 92), “as diferentes escalas não podem ser compreendidas como instâncias únicas e isoladas. É impossível esconder das crianças o mundo, quando as informações lhes são passadas no exato instante do seu acontecimento”. Com o acesso que temos às mídias, as informações chegam rapidamente a todos. O contato com o que acontece em qualquer lugar do mundo é praticamente instantâneo, nos dando uma nova dimensão espacial e temporal, consequência do processo de globalização, e as crianças não são meros expectadores dessas informações; elas são sujeitos que nos provocam no espaço escolar porque trazem essas informações para a escola. O acesso não é restrito ao professor e ao adulto. As crianças escutam e enxergam elementos que, muitas vezes, nós ignoramos por já termos naturalizado as questões do mundo.

Ao realizar atividades com as crianças em lugares de memória, por exemplo, é possível criar condições ou contextos de aprendizagens para que estes possam conhecer a história do local em que vivem e também de espaços mais amplos. Félix (1998) faz referência a Pierre Nora, que é conhecido por cunhar a expressão lugares de memória.12 Segundo ela, Nora parte das sociedades tradicionais e a forma como

estas lidavam com a transmissão do passado às futuras gerações. Pierre Nora, no texto Entre memória e história: a problemática dos lugares (1993, p. 13), ressalta que

12 Livro Les lieux de la mémoire, de Pierre Nora, resultado de suas pesquisas entre os anos de 1984 e

“os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos (...) porque essas operações não são naturais”. Atualmente, os registros da memória são os mais variados e, também, tem aumentado a preocupação com a salvaguarda do patrimônio histórico e cultural das mais diversas sociedades, como possibilidade de preservação da memória de seus povos. Os lugares de memória comunicam e podem auxiliar na construção de conhecimentos e do sentimento de pertencimento. Na Itália,13 a preocupação com a

preservação da história e do patrimônio faz parte do cotidiano de professores, alunos e pais, enfim, da sociedade. É possível afirmar que culturalmente se pensa na preservação, pois, para eles, esta é a forma de conservação tanto da memória quanto da história de seus antepassados, ou seja, a conservação da tradição e a transmissão desta às novas gerações.

Com relação à preservação e conservação do patrimônio no Brasil, recorro aos documentos de políticas públicas:

O patrimônio cultural é o conjunto de manifestações, realizações e representações de um povo. Ele está presente em todos os lugares e atividades: nas ruas, em nossas casas, em nossas danças e músicas, nas artes, nos museus, escolas, igrejas e praças. Nos nossos modos de fazer, criar e trabalhar. Nos livros que escrevemos, na poesia que declamamos, nas brincadeiras que fazemos, nos cultos que professamos. Ele faz parte de nosso cotidiano, forma as identidades e determina os valores de uma sociedade (BRASIL, [2012?] p. 3).

Essa é uma temática pertencente tanto ao mundo acadêmico no Brasil quanto à escola. O que vem à memória, quando se pensa em patrimônio, é uma concepção reduzida, pois parece que, para ser patrimônio, precisa ser enxergado, precisa ser físico, como é o caso do patrimônio material, mas como os documentos das políticas públicas apresentam, o conceito é muito mais amplo e trata dos elementos da cultura, que vão nos constituindo. Por isso, há importância dos lugares de memória também como forma de preservação desse patrimônio, principalmente quando nos referimos ao patrimônio imaterial, como as danças, as poesias e as histórias, que são passadas de forma oral de geração em geração. Acredito também, todavia, na necessidade de ouvir os professores e o que eles pensam sobre essas questões e até mesmo como as abordam na sala de aula.

13 Foi possível constatar essa questão in loco durante a realização de estágio-sanduíche de

Doutoramento na Univeristà di Bologna na Itália, tanto nas entrevistas realizadas com professores da escola elementar (Básica), quanto nos encontros com professores da Universidade, eventos e na produção acadêmica.

Para Borghi e Dondarini (2015, p. 25), pesquisadores sobre patrimônio,

in particolare sono due gli aspetti che rendono strettamente attinente alla formazione l'apprendimento che verte sul patrimônio: l'integrazione di molteplici competenze e conoscenze tratte da attività di simbiosi tra scuola e sedi esterne in un quadro multidisciplinare di educazione alla consapevolezza e alla responsabilità; l'adozione di metodi costruttivi che motivino, coinvolgano e attivino all'apprendimento, partendo dall'individualizione degli elementi e delle sedi del patrimonio, passando ai conseguenti approfondimenti, per poi approdare alle attività laboratoriali, a quelle di produzione di testi ed elaborati14.

Os autores acreditam na importância de conhecer o patrimônio tanto a partir de atividades escolares quanto das saídas de campo. Assim, as crianças têm relação direta com o patrimônio e podem assumir compromissos referentes a sua preservação e conservação. Conforme Borghi e Dondarini (2015), as identidades são construções a partir das heranças do passado em relação com o que se produz em diferentes tempos e espaços. Acredito que, quando se tem conhecimento sobre esses elementos, é possível pensar em respeitar o que as gerações anteriores construíram. Assim, pode-se pertencer e sentir que algum lugar te pertence, porque é uma via de mão dupla. Segundo os autores, pensar situações pontuais variadas, integrando diversas áreas do conhecimento, utilizando diferentes métodos e fontes, auxilia no processo de construção de conhecimentos relativos à questão do patrimônio e, também, no que eles denominam de consciência e senso de reponsabilidade pelo que foi produzido pelas gerações anteriores.

1.5 A CRIANÇA E O IMAGINÁRIO SOBRE LUGAR, IDENTIDADE, PATRIMÔNIO: