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Para que possamos fazer referências aos sujeitos da pesquisa, acreditamos que se faz necessário retomar alguns elementos tanto da história do ensino da história no Brasil quanto na Itália. Considerando essas discussões, foi realizado o trabalho empírico. Como apresentado no primeiro capítulo desta tese, o ensino de história no Brasil passa a se delinear após o Decreto das Escolas de Primeiras Letras de 1827. É a primeira lei que trata da instrução nacional do Império do Brasil. Segundo ela, os professores deveriam ensinar “a ler, a escrever, as quatro operações aritmética (...), a gramática da língua nacional, os princípios de moral cristã e de doutrina da religião católica e apostólica romana – preferindo para o ensino da leitura, a Constituição do Império e História do Brasil” (BRASIL, 1997, p. 19).

A história a ser ensinada se restringia a uma história cívica articulada à sagrada, herança de uma tradição jesuítica. O objetivo era construir uma identidade nacional

com o desenvolvimento de um sentimento patriótico. Na Itália, o ensino de história apresenta características muito semelhantes, seguindo um modelo “catequético”. Os pesquisadores do campo da didática preocupam-se quando se faz referência a um ensino que tem como objetivo a preparação para os anos seguintes para que possa auxiliar nas aprendizagens futuras, ou, como foi por um longo período, quando possuía o intuito de preparar as pessoas para o mundo do trabalho. O ensino estava centrado no que os alunos precisariam aprender como base para os anos posteriores, com o intuito de formação de mão de obra para o mercado. Essa tradição considera a aprendizagem de determinado conhecimento para um fim, principalmente se nos referirmos a uma perspectiva tradicional, que ensina uma história cívica e que pode ser vista pelos alunos como enfadonha e sem sentido.

Pode-se ressaltar que muitas dessas questões aparecem superadas ou em processo de superação. O ensino de história atual considera diferentes narrativas, rompe com a perspectiva de uma história construída por verdades absolutas e inquestionáveis, herança do discurso da objetividade e da neutralidade característico do ensino de história tradicional. O distanciamento entre o que se produz no meio acadêmico e a escola básica ainda pode ser entendido como um dos problemas enfrentados, embora se busque pelo rompimento de um ensino da história com influência de uma perspectiva cronológica tradicional. O que os pesquisadores do meio acadêmico produzem e o que é ensinado na escola ainda é considerado um problema pelos professores, pois estes não conseguem perceber uma articulação com o cotidiano escolar.

Segundo Dondarini (2008), os estudiosos que se dedicam a formular teorias do ensino da história – os especialistas – não conseguem estabelecer diálogo com os professores da educação básica, pois esses apresentam-se céticos com relação às formulações teóricas que não teriam relação com os problemas enfrentados no cotidiano da escola. Nesse sentido, o autor apresenta uma pesquisa realizada pelo Laboratório Multidisciplinar de Pesquisa Histórica, que opera junto ao Departamento da Disciplina Histórica da Universidade de Bologna, no ano letivo 2006-2007, quando 512 docentes de todos os níveis responderam a um questionário anônimo sobre a Didática da História.

Os resultados são assustadores conforme o autor, pois, quando questionados se acreditam no papel positivo e útil dos especialistas no ensino da história, 38% responderam que não, por nada, e 36% responderam que pouco, num total de 74%

que acreditam que são poucas influências positivas, contra 13%, que responderam que sim, 6% que muito, enquanto 2% não souberam responder. A falta de diálogo entre esses sujeitos e essas produções pode influenciar no processo educativo, inclusive quando se trata da permanência de abordagens tradicionais de ensino.

Nessa perspectiva tradicional, cabia aos professores única e exclusivamente a transmissão dos conteúdos. Depois da formação inicial o ensinante estava pronto para a docência para o resto de sua vida. Não havia preocupação em continuar estudando, pois já era portador do conhecimento necessário e seria o centro de todo o processo educativo. Aos alunos incumbia a tarefa de memorizar todos os conteúdos transmitidos e responder tal e qual o professor havia ensinado. Sempre, porém, a centralidade da história era no civismo, isto é, desenvolver um sentimento cívico na população, educando o povo para se adaptar ao sistema vigente.

Posteriormente, com todos os avanços no campo pedagógico e das correntes historiográficas, o ensino de História é fortemente influenciado e a tradicional forma de ensinar lentamente cede espaço a outras propostas. No final da década de 90, no Brasil, temos os Parâmetros Curriculares Nacionais, que apresentam um olhar diverso sobre a História e sobre o ensino dela. É a orientação de romper com o que tradicionalmente se ensinava. Oficialmente se aponta para a necessidade de se pensar num trabalho comprometido com a realidade vivenciada pelos alunos, considerando o contexto social, cultural, político e econômico dos sujeitos. Sustenta- se, assim, em perspectivas teórico-interacionistas, que tanto os sujeitos interagem entre si como com o mundo que os cerca.

Destaco os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) no Brasil, que orientam que se trabalhe no primeiro ciclo com a localidade do aluno e a comunidade indígena da região, com elementos relacionados à história de vida e história local. No segundo ciclo há uma ampliação dessas questões, mas continua-se, apesar dos avanços, pensando numa perspectiva em que se considera a história do local para o global. A Base Nacional Comum Curricular no Brasil,29 na versão aprovada, organiza-se no

Ensino Fundamental a partir de áreas do conhecimento (Linguagens, Matemática, Ciências da Natureza, Ciências Humanas e Ensino Religioso), definindo competências específicas de área e de componente curricular. Está estruturada em

29 Disponível em: <http://basenacionalcomum.mec.gov.br/wp-content/uploads/2018/02/bncc-20dez-

unidades temáticas, objetos de conhecimento e habilidades que devem ser desenvolvidos ano a ano. Segundo o documento da Base

Ao longo do Ensino Fundamental – Anos Iniciais, a progressão do conhecimento ocorre pela consolidação das aprendizagens anteriores e pela ampliação das práticas de linguagem e da experiência estética e intercultural das crianças, considerando tanto seus interesses e suas expectativas quanto o que ainda precisam aprender. Ampliam-se a autonomia intelectual, a compreensão de normas e os interesses pela vida social, o que lhes possibilita lidar com sistemas mais amplos, que dizem respeito às relações dos sujeitos entre si, com a natureza, com a história, com a cultura, com as tecnologias e com o ambiente (BRASIL, 2018, p. 55).

A definição das unidades temáticas da História30 nos anos iniciais do Ensino

Fundamental segue a lógica dos círculos concêntricos, que parte do simples para o complexo da realidade experienciada. No “âmbito da prática escolar, via de regra, a realidade é tomada em seu modo mais elementar. Assim, a organização curricular que parte do eu, para a família, para a escola, para o bairro, para o município, para o estado, para o Brasil e, deste para o mundo...” (ILGENFRITZ TOSO; KUHN; CALLAI, 2016, p. 224). A Base Nacional será o documento que orientará todo o processo educativo no país, assim como ocorre na Itália, que segue a Orientação Ministerial que propõe que se inicie pela protostoria, numa perspectiva linear, muitas vezes necessitando de arranjos no planejamento para abordar as questões locais, principalmente no que respeita ao ensino da história na escola primária. Para Dondarini (2008), caberia ao professor propor situações de aprendizagens que considerem a história local, principalmente nos momentos em que se dedicariam à educação para a cidadania. O autor ressalta que seriam os professores que deveriam dar conta do que a proposta ministerial ignora.

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Série Unidades Temáticas

1º ano Mundo pessoal: meu lugar no mundo; mundo pessoal: eu, meu grupo social e meu tempo

2º ano A comunidade e seus registros; as formas de registrar as experiências da comunidade; O trabalho e a sustentabilidade na comunidade.

3º Ano As pessoas e os grupos que compõem a cidade e o município; O lugar em que vive; A noção de espaço público e privado.

4º Ano Transformações e permanências nas trajetórias dos grupos humanos; circulação de pessoas, produtos e culturas; As questões históricas relativas às migrações.

5º Ano Povos e culturas: meu lugar no mundo e meu grupo social; registros da história: linguagens e culturas.

Para que se possa falar de ensino de história, hoje, é fundamental considerar os sujeitos envolvidos no processo educativo, principalmente professores e alunos. Também consideramos importante discutir sobre a escola e a sala de aula, pois, como escreve Marques (2000a, p. 110), é “A sala de aula, espaço-tempo em que se dão as relações diretas e imediatas do ensinar e do aprender”. Não podemos falar de espaço formal sem falar do ensino e da aprendizagem, processos distintos que precisam ser considerados pelos professores. Consoante Young (2007, p. 1.288), as escolas têm como “propósito específico de promover a aquisição do conhecimento”. Ele aponta o quanto isso ainda é negligenciado “tanto por aqueles que tomam decisões no campo político, quanto pelos pesquisadores educacionais, especialmente os sociólogos da educação”.

A escola, a sala de aula e o professor são fundamentais no processo de empoderamento dos sujeitos, pois se vive num mundo que é complexo e onde as relações também são complexas. A escola não pode andar na contramão desse processo. “O já aprendido pelo docente torna-se revelação criadora ao confrontar-se com a situação existencial problematizadora do aluno como força ativa interrogante” (MARQUES, 2000a, p. 109). É fundamental que haja diálogo entre o que se ensina e se aprende na escola com o que se vive fora dela. A vida dos sujeitos precisa ser considerada.

A docência deve ser mais que a mera transmissão de informações, conteúdos e conhecimentos. Com a Base Nacional Comum Curricular, que orienta que o trabalho seja realizado a partir de competências e habilidades, é possível compreender que, mesmo o documento tendo elementos semelhantes aos Parâmetros Curriculares, há, em muitos momentos, uma simplificação do que se propõe construir com as crianças, subestimando a capacidade dos alunos dos anos iniciais. Concordo com Marques (2000a, 117-118) quando afirma que “Ensinar não é repetir; é reconstruir as aprendizagens. Trata-se de realizar a tradução dos conceitos reconhecidos no estado atual das ciências para o nível das práticas sociais contextualizadas e conjunturais”. O conhecimento precisa estar a serviço da vida dos sujeitos. O ensino de história precisa ser contextualizado e deve levar em conta, sim, o que é produzido pela humanidade e pela ciência para a vida dos alunos. Nesse sentido, parece-me que a escola trabalha com a reconstrução do conhecimento, considerado importante para a tradição. A construção dos alunos, sempre nova para eles, é reconstrução da tradição, ou daquilo que achamos fundamental eles aprenderem.

Esta é a aposta na formação de sujeitos éticos e empoderados; e isso somente a escola pode fazer, pois a mídia, mas não somente ela, apresenta informações que, muitas vezes, são desconsideradas pela escola. Outras vezes permanece somente no rol das informações, ou seja, não há reflexão sobre elas, não há crítica tampouco sentido. É possível afirmar que acesso às informações todos os sujeitos têm, mas somente o professor e a escola podem, junto com os alunos, construir conhecimentos visando a empoderá-los. A compreensão do mundo em que vivem e o que acontece nele, rompendo com os conhecimentos do senso comum, pode ajudá-los a transformar esse mundo, mesmo que sejam pequenas mudanças, de concepções somente ou que sejam de pequenos grupos. Não se pode negar a esses sujeitos esse conhecimento. É para isso que a escola existe. É para isso que os professores estudam: para desenvolver sua função nesse processo de empoderamento.

Marques (2000b, p. 118) assevera que

Ser professor significa exercer o domínio de seu específico campo e processo de trabalho, passo a passo e a qualquer momento, o que significa trabalhar com o rigor científico dos conhecimentos que faz seus e com os meios materiais e instrumentais de que se apropria na capacidade de elaborá-los ou de reconstruí-los segundo as exigências de sua proposta pedagógica. O ensino de história precisa considerar isso, buscando articulação entre o que se vive no presente e a construção histórica desse percurso. Existe um campo teórico e pedagógico do qual o professor precisa se apropriar para a realização de sua tarefa, da docência no espaço formal de ensino e aprendizagem. Partilhamos da concepção de Marques (2000b, p. 87), de que “na sociedade contemporânea plural e diferençada, as aprendizagens exigidas pela concidadania responsável assumem na escola forma explícita, proposital e sistemática...”. Para Baiesi e Guerra (1997, p. 69), “disciplinas, objeto de ensino não podem ser concebidas como um ponto de chegada do conhecimento, para que arraste os alunos mais ou menos recalcitrante, mas como um veículo para a compreensão, terreno de mediação para o diálogo de sujeitos conhecedores”.

Para pensar na cidadania ou na concidadania responsável, é necessário considerar todos esses elementos e, principalmente, que pela via do conhecimento os sujeitos podem transformar suas vidas e a realidade em que vivem, sendo sujeitos conhecedores. Não se pode ser sujeito ou cidadão sem conhecimento. É ele que pode dar acesso a essa condição e é na escola que essa intencionalidade pode ser efetivada. Acredito nos professores como sujeitos capazes de contribuir com a formação para a

cidadania; por isso realizei as entrevistas nos dois países. No Brasil, os professores que atuam nos anos iniciais do Ensino Fundamental devem possuir como formação mínima curso de Licenciatura em nível superior.31 Os professores são unidocentes.32

Quadro 2 – Identificador dos Professores Brasileiros Entrevistados Professor Idade Formação Escola em que

atua Tempo de docência Professora AB Ângela Entre 31 e 35 anos Licenciatura Normal Superior – Anos Iniciais; especialista em Anos Iniciais; Mestrado em Educação nas Ciências Anos Iniciais do Ensino Fundamental – Escola privada Entre 11 e 15 anos Professora BB Marianna Entre 26 e 30 anos Licenciatura Normal Superior – Anos Iniciais; especialista em Anos Iniciais Anos Iniciais do Ensino Fundamental – Escola pública e privada Entre 11 e 15 anos Professora CB Márcia Entre 36 e 40 anos Pedagogia; Especialização em Psicopedagogia e Supervisão Escolar; Mestrado em Educação nas Ciências Anos Iniciais e Anos Finais do Ensino Fundamental – Escola pública Entre 16 e 20 anos Professora DB Cyntia Entre 46 e 50 anos

Pedagogia Anos Iniciais do Ensino Fundamental – Escola pública Menos de 5 anos Professor EB Fábio Entre 36 e 40 anos Pedagogia Plena – Licenciatura e Bacharelado Especialização em Ética, Valores e Saúde na Escola Anos Iniciais do Ensino Fundamental – Escola pública Entre 6 e 10 anos

Fonte: ILGENFRITZ TOSO, 2017.

Na Itália não há, como no Brasil, um professor unidocente; são vários os professores e lecionam disciplinas específicas, mesmo nas classes das escolas primárias. No que nominamos como anos iniciais não há apenas um professor; ao contrário disso, um professor pode ensinar italiano e história; outro geografia e língua inglesa; outro matemática, ciências e música; e, ainda, um outro professor leciona

31 Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB 9394/96.

32 Professor que ministra a maioria das disciplinas em uma única classe. No Brasil, nos anos iniciais do

ensino religioso ou disciplina alternativa33 e educação física. Os professores circulam

por mais de uma turma, lecionando, normalmente, as mesmas disciplinas. É comum, por exemplo, que os professores circulem por várias turmas da mesma série, ministrando disciplinas específicas nas quais possuem maior afinidade.

Quadro 3 – Identificador dos Professores Italianos Entrevistados Professor Idade Formação Escola em que

atua Tempo de docência Professora AI Concita Entre 46 e 50 anos

Pedagogia Escola primária pública Entre 16 e 20 anos Professora BI Maura Entre 36 e 40 anos Filosofia e Psicologia Clínica e da Comunidade; Psicoterapia; Direção e gestão de instalações escolares. Escola primária pública Entre 16 e 20 anos Professora CI Roberta Entre 41 e 45 anos Formação Primária; Jurisprudência (Ciências Jurídicas). Escola primária pública Menos de 5 anos Professor DI Gianluca Entre 31 e 35 anos Formação Primária; Pedagogia e operação cultural. Escola primária pública Entre 6 e 10 anos Professora EI Vittorina Mais de 65 anos

Pedagogia Escola primária pública

Mais de 30 anos

Fonte: ILGENFRITZ TOSO, 2017.

Consideramos todos os elementos identificadores dos professores entrevistados como relevantes, mas a questão central que nos interessa nesta pesquisa são seus posicionamentos ante a docência, a criança e o ensino sobre a cidade. Não é o tempo de profissão que define se o professor é um sujeito comprometido com a educação, mas como ele planeja, estuda, busca conhecimentos e formas para ensinar de forma significativa. Assim, delimitamos para análise, neste capítulo, quatro ategorias: memória, identidade, patrimônio e pertencimento. Definimos conceitualmente cada uma delas e expomos fragmentos do que os sujeitos da investigação nos apresentam. Para além dos dados considerados nesta pesquisa, outros foram produzidos a partir dessas entrevistas, mas não serão considerados aqui.

33 A disciplina alternativa é oferecida nas escolas italianas para substituir a de ensino religioso, e os