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Goa, a “Roma do Oriente”

CAPÍTULO II “GOA É UMA JÓIA DE FAMÍLIA ANTIGA, DE GRANDES

5. Goa, a “Roma do Oriente”

Apesar do subterfúgio constitucional, transformando as colónias em províncias

ultramarinas, de modo a antecipar os ventos do anticolonialismo que sopravam pelo

Mundo e prevenir previsíveis intervenções e pressões dos organismos internacionais, Salazar não conseguiu evitar a contestação internacional à política colonial portuguesa suscitada pelas pretensões da União Indiana sobre Goa.

As preocupações de Nehru não se encontravam apenas na existência de territórios estrangeiros na Índia, mas também na ligação da Igreja Católica a um poder político estrangeiro na Índia, havendo, portanto, a necessidade de rever o acordo do Padroado do Oriente. Os interesses políticos e económicos da expansão portuguesa sempre se entrelaçaram com objetivos religiosos. O Padroado do Oriente, criado em 1500, “a instâncias de D. Manuel, pelo Bréve de 26 de março do Papa Paulo III, outorgou aos Reis de Portugal a concessão de indicarem à Santa Sé os comissários apostólicos a serem nomeados pelo Papa para múnus episcopal além do Cabo da Boa Esperança” (GALVÃO e SELVAGEM, 1953: 322). Apesar das bulas pontifícias concederem, ao longo dos tempos, “direitos indiscutíveis à Coroa Portuguesa” (LOPES e FERRÃO, 2010: 347), verificava-se um movimento irreversível, no Padroado, no sentido de reduzir a sua área de influência. Na Concordata de junho de 1886 foi negociada uma redistribuição geográfica mais coerente com a realidade política, sendo esta revista no Acordo de 15 de abril de 1928, limitando a jurisdição do Padroado aos territórios na dependência direta do Governo português, mas estendendo-a a Cochim e Meliapor e manteve-se a dupla jurisdição do Padroado e da Congregação de

Propaganda Fide231 em Bombaim, Mangalor, Quilon e Trichinópolis. Contudo, os

conflitos continuaram nos territórios de dupla jurisdição do Padroado e da Congregação

de Propaganda Fide surgindo, num clima de verdadeira tensão entre o Estado português

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Em 1662, no pontificado de Gregório XV, foi criado um departamento na Cúria Romana – a Congregação de Propaganda Fide - assumindo a Santa Sé a direção suprema das missões, em virtude da “falta de unidade na metodologia pastoral praticada pelas várias ordens religiosas e o excessivo controlo de Portugal e Espanha sobre a administração das missões (…)”. Outras razões justificaram a criação de Propaganda Fide: “a insuficiência de prelados e a falta de recursos financeiros nas missões do Padroado; a deficiente assistência religiosa (…); as questões de jurisdicção entre regulares de ordens diferentes, sobretudo quando estrangeiras, e o Ordinário da diocese; a ignorância das culturas e línguas locais, por parte dos missionários do Padroado; a não admissão de naturais nas ordens religiosas de origem europeia e o relaxamento e a indisciplina claustral de alguns regulares” (LOPES; FERRÃO, 2010: 347,348).

e a Santa Sé, uma nova Concordata, em 7 de maio de 1940, assim como o Acordo Missionário. Para Salazar, “a Concordata fora a gema mais difícil de obter na coroa da sua estratégia política de restauração conservadora do Estado. Ao pé dela o processo de elaboração da Constituição de 1933, que definira a estrutura do regime, tinha sido, se não fácil, pelo menos mais simples e rápido” (REIS, 2006: 173-174). Curiosamente, quando a Concordata entrara numa fase negocial, o Acordo Missionário ainda nem sequer tinha sido concebido, mas, a partir de maio de 1938, os dois textos serão considerados inseparáveis - Concordata e Acordo Missionário - sendo os dois acordos assinados em maio de 1940. O Acordo Missionário marcou uma etapa na consolidação do referencial católico como elemento integrador do Ultramar português, definindo a atividade missionária católica, e conseguindo, deste modo, o Estado delimitar os poderes da Congregação de Propaganda Fide.

No entanto, Salazar não consegue evitar as contrariedades com a recente União Indiana. Nehru, em 1947 considera que “a ligação da Igreja Católica a um poder político estrangeiro na Índia irá necessariamente criar confusão e preconceitos na cabeça das pessoas relativamente à Igreja” (Nehru, cit. in REIS, 2006: 192). Em inícios de setembro de 1948, foi recebida uma nota indiana, em que a questão do Padroado era colocada oficialmente “the time has now come when all dioceses in India should be administered directly by the Holy See without the intervention of a third power” e “the jurisdiction of the Archbishop of Goa should not extend to Indian territory”, devendo o Governo português entrar em negociações com a Santa Sé de modo a encontrar uma solução rápida (MNE, 1967a: 99-101)232.

Para Salazar, era à Santa Sé que cabia solicitar a Portugal o início das negociações, o que permitiu arrastar e prolongar o mais possível as conversações. O Vaticano olhava com interesse as descolonizações do pós-guerra, pois, “apesar dos temores quanto ao radicalismo de alguns destes novos nacionalismos, o Papado via neste facto uma evolução natural e a possibilidade de libertar definitivamente a missionação católica de qualquer tutela imperial”, enquanto Salazar via naquelas uma ameaça, adotando uma “lógica de resistência” (REIS, 2006: 195). Se no Vaticano existiam temores relativos ao novo Estado da União Indiana estes cessaram com a atuação do Partido do Congresso ao incluir um padre católico na sua lista de deputados e ao garantir, na Constituição indiana, a liberdade de consciência e de culto em público.

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Carta do Alto-comissário da União Indiana em Londres, Menon, para o embaixador de Portugal em Londres, 7 de setembro de 1948, doc. n.º 100.

Superadas as dificuldades do acordo da Concordata, as relações entre o Estado Novo e Roma estavam de novo envolvidas em tensão. Em 1949, o Governo de Nova Deli afirma a pretensão de que cessem os privilégios portugueses concedidos pela Santa Sé quanto à designação de bispos para Bombaim, Meliapor, Cochim, Mangalor, Quilon e Trichinópolis e que a arquidiocese de Goa se restrinja à área de Goa, deixando de abranger territórios sob soberania indiana. Salazar decide escrever ao patriarca das Índias, D. José Costa Nunes,233 solicitando o seu parecer e o dos demais prelados do Padroado sobre o interesse deste. Advertindo, no entanto, que considerava a extinção do Padroado “«um desastre religioso e simultaneamente para nós um desastre político» porque ia «minar exactamente a base espiritual mais forte do nosso domínio»” (Salazar cit. in REIS, 2006: 217). Consultados os prelados portugueses das sés indianas do Padroado – Cochim, Meliapor – assim como de Goa, foram encontrados os argumentos sobre o seu escasso ou nulo valor para Portugal o que leva ao Patriarca das Índias Orientais, na sua resposta a Salazar afirmar que “considerava aceitável que o Padroado Português perdesse as dioceses de Cochim e Meliapor” (LIMA, 2010: 117), devido ao seu escasso ou nulo valor para Portugal e que insistir seria absurdo face ao nacionalismo indiano.

Após meses de negociação, somente a 18 de julho de 1950 é assinado o Acordo entre a Santa Sé e Portugal, pelo qual Portugal renunciava a todos os direitos de Padroado nas dioceses situadas fora dos territórios portugueses da Índia, retardando, contudo, a eventual delimitação da Arquidiocese de Goa. Era “a extinção do Padroado; e perante essa perspectiva, Salazar sente mágoa profunda” (NOGUEIRA, 2000a: 140). É possível que a Santa Sé valorizasse a presença portuguesa na Índia e pretendesse evitar os conflitos com Portugal “mais les pratiques discriminatoires et nationalistes de l’Église portugaise ternissent inévitablement l’ímage du catholicisme en Inde et entrent en conflit avec les intérêst du Saint-Siège qui souhaite, de son côté, anticiper la décolonisation en bâtissant une Eglise indienne dont gardera le contrôle“ (BÈGUE, 2007: 311)

Num período de perda da influência as comemorações dos 400 anos da morte de S. Francisco Xavier, em 1952, serviram, num tempo conturbado das relações entre Portugal e a Índia, para marcar a presença religiosa e política de Portugal na Índia.

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D. José da Costa Nunes (1880-1976) foi nomeado Patriarca das Índias Orientais, em 1940, cargo que exerceu até à 1953. Com a nomeação do Patriarca D. José da Costa Nunes para vice-camerlengo da Santa Igreja, ascendeu a Patriarca D. José Vieira Alvernaz a 18 de setembro de 1953.

Interessante é recordar que já em 1910 a mudança de regime em Portugal, não impediria que fosse aprovada a veneração das relíquias de S. Francisco pois, como refere Teotónio de Souza “a promoção do culto de S. Francisco Xavier foi uma estratégia que melhor serviu os interesses do Padroado em declínio" (2010: 382). Por isso, durante o período das comemorações em 1952 o regime tentará reafirmar a continuidade histórica e religiosa da presença de Portugal em Goa. Foi enviada uma delegação, liderada pelo Cardeal Cerejeira, composta por eclesiásticos e políticos. Apesar de ter sido indicado não incluir aspetos políticos, retirando-se “tudo quanto possa ser motivo reparos tanto mais já alguns jornais comentaram o facto”234, foram concedidas facilidades para repórteres cinematográficos ingleses realizarem uma película sobre Goa, com o objetivo de mostrar como a Índia Portuguesa foi a transmissora da influência do Ocidente no Oriente “especialmente raízes espirituais exponentes S. Francisco Xavier e mostrar relativa prosperidade Goa e resistência pressão União Indiana”235

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Mas as relações entre Portugal e a Santa Sé ao longo de 1953 estariam de novo envolvidas em alguma animosidade, em virtude da elevação a cardeal de Valeriano Gracias, sendo o primeiro cardeal da Índia independente. Esta decisão do Vaticano foi considerada pelo Governo português uma desconsideração, pois ao rejeitar a pretensão idêntica do Governo português de também ser feito cardeal monsenhor Costa Nunes, arcebispo de Goa, estava a esquecer, na opinião de Lisboa, a ação histórica missionária de Portugal na Índia. Já em 1948, a nomeação de um novo arcebispo de Bombaim, levantou algumas dúvidas, pois, segundo o acordo do Padroado com a Santa Sé, o arcebispo deveria ser alternadamente de nacionalidade britânica e portuguesa: sendo britânico o prelado de então, a ele deveria suceder um bispo português. A esta solução opõe-se o Governo de Nova Deli, propondo à Santa Sé um sucessor de nacionalidade indiana, de descendência goesa nascido em Carachi, tendo sido nomeado Valeriano Gracias.

Em Lisboa, Paulo Cunha, o ministro dos Negócios Estrangeiros, conclui com a Santa Sé, a 27 de setembro de 1953, o acordo de delimitação da Arquidiocese de Goa, no seguimento da reorganização territorial eclesiástica do novo Estado indiano, reduzindo o exercício do Padroado do Oriente aos limites dos territórios do Estado Português da Índia. As concessões feitas no plano da política religiosa contrastavam

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Telegrama do governador-geral do Estado da Índia para o Ministério do Ultramar, 16 de outubro de 1952, in AHU/140/1A/MU/GM/Mç. 1948- 1952.

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Telegrama do governador-geral do Estado da Índia para o Ministério do Ultramar, 20 dezembro de 1952, in AHU/140/1A/MU/GM/Mç. 1948- 1952.

com a irredutibilidade no que respeita às negociações quanto ao Estado Português da Índia. Após anos de esforços diplomáticos com o Vaticano, Salazar perdia o poder de exercer influência eclesiástica sobre a comunidade católica do território da União Indiana. Pois como recordara Salazar no seu discurso, a 11 de julho de 1947, na sala da biblioteca da Assembleia Nacional quando da reunião para apresentar despedidas das delegações de todos os territórios ultramarinos que tinham ido a Roma às cerimónias da canonização de S. João de Brito:

“se, por exemplo, nos sentimos indissolúvelmente presos ao Estado Português da Índia, não é pelos interesses materiais – pequenos para nós e para outros - mas porque constitui, com Macau, um padrão do espírito do Ocidente que tivemos a glória, cometemos a audácia, fizemos o sacrifício de implantar ali, tornando possível S. Francisco Xavier e, com ele, a esplêndida floração da mais alta espiritualidade cristã” (SALAZAR, 1951: 284).

A derrota diplomática nesta matéria foi o primeiro grande sinal de perda de influência do Estado Novo no palco internacional.

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