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Esse era o princípio que orientava as excursões ou as visitas em geral de mestres e alunos, ou seja, só se podia reconhecer no outro aquilo que se conhecia bem ou que se tinha condição de conhecer no momento. Essa era uma capacidade requisitada aos alunos do quarto ano, reconhecer o seu lugar e identificar aqueles onde possa vir a trabalhar. É dessa maneira que nesses relatórios sobre a ENA, ficamos sabendo muito mais sobre o ensino na ESALQ do que na primeira. É significativo que todos os relatórios tenham se detido em detalhes em relação a determinados saberes como a zootecnia e a tecnologia de alimentos ou às analises químicas em geral, reforçando um conjunto de saberes privilegiados na ESALQ, salientando a entomologia e zoologia como ponto forte na ENA ao compará-la com o Museu Nacional. Se se partia da ENA para visitar a ESALQ, se ia com o professor de Botânica e de Geologia, visitando antes o Instituto Biológico de São Paulo e o Instituto Agronômico de Campinas. Identificam os lugares de referência ou pontos para uma possível ligação de igual para igual, ou quase igual.

Se fosse possível estabelecer uma metáfora e comparar as escolas às células e as pessoas a água, estas ao entrarem em contato com outras instituições transitariam do menos para o mais concentrado de conhecimento, para chegar a um equilíbrio. Por isso as excursões buscam essa quase igualdade, já nos periódicos encontraríamos os lugares dos pares, naturalmente lugares de convergência e divergência. Para quem lê esses relatórios fica clara uma tensão, explicitamente expressa na dúvida de Witager sobre o futuro da ESALQ. Por outro lado, a documentação também possibilita identificarmos uma força contrária à comparação que segrega – a camaradagem, que podemos considerá-la como um valor muito apreciado nesses momentos de comparação e tensão, bem como nos jogos de futebol. José Casali que também aparece numa das fotos reproduzidas por Romero (2001, p. 179) no time da ESALQ em 1941, formou-se pela ENA em 1949 e teve o prazer de vê-la ganhar da ESAV. E, novamente, em 1949 recepcionou uma nova turma de esalquianos, que não suportaram o enjôo da viagem de navio de Santos até Pernambuco. Na ENA foram levados para ver, a Engenharia Agrícola, a Entomologia e a Química, enquanto aqueles que seguiram viagem foram saber das experiências que um "acurado" cientista Augusto Chaves Batista estava fazendo sobre o cará.

Desse modo, o que se levava eram as pessoas, ou a matéria a ser trabalhada, levavam também os nomes que os amparam, aos lugares potenciais para elevar o reconhecimento mútuo

entre os estabelecimentos, o de origem e o de destino, a tensão necessária para estabelecer pontos numa rede de comunicação. Assim, as excursões tinham o propósito de ver, confirmar e agregar conhecimentos desenvolvidos no lugar de partida. De novidade havia somente o desenrolar dos acontecimentos da grande excursão, uma narrativa cheia de suspense, de contratempos e de sentimentos, como surpresa, ansiedade, comoção, frustração...

No caso narrado sobre a ESALQ, parece-me que a escolha de visitar a ENA teve a intenção de revigorar e aliviar as pressões que a ESALQ estava recebendo de fora para dentro, que diminuíram a expressão da sua contribuição científica e técnica para a agricultura nacional, mas não paulista que, de uma forma ou de outra, foi preservada, principalmente depois de 1942, com a reforma da Secretaria de Agricultura. Em geral sobre as excursões, nota-se que os relatórios apresentam um caráter essencialmente descritivo do objeto de estudo nas três escolas que apresentam esse tipo de documentação, existindo, no mínimo, dois posicionamentos escolarmente constituídos como convenientes: o técnico-científico e o "patriótico". Ambos são oriundos da mesma idéia comum de servir (à pátria, à agricultura, ao Estado, aos agricultores, à Escola, etc.) pelo conhecimento científico.

Ressaltando esses extremos, no primeiro tipo, entendemos que para cumprir com a idéia de servir a algo convinha demonstrar tanto capacidade científica, citando conteúdos científicos, nomes e lugares, como reafirmar a própria ideologia, salientando o lugar de onde vem e para onde vai; enquanto, no segundo tipo, impressões pessoais, políticas e laudatórias estavam mais presentes, deixando por vezes de explicar em detalhes os conhecimentos científicos ‘adquiridos’. A meu ver, o reforço a diferentes objetos à servir, não deram origem a um ou a outro posicionamento político/escolar de forma excludente. Isto é, os dispositivos escolares que auxiliavam na concretização de um projeto político mais ou menos distinto em cada escola não chegaram a corromper a subjetividade individual. Isso é o que se pode afirmar quando olhamos para esse tipo de documentação. Deste modo, por exemplo, nas narrativas em que a Escola é o objeto a ser referendado, para que o discurso do aluno seja valorado, nem sempre há a adoção exclusiva de um único tipo de posicionamento político escolar, nem sequer a tendência a um do tipo técnico-científico. Aliás, são também minoria os relatórios de excursão cujos autores expressam seus sentimentos, fazem referência à grandiosidade da escola, das políticas do Estado, à agricultura nacional e aos agricultores. Assim, dentro desse conjunto, existem, portanto, inúmeras combinações possíveis entre os objetos a servir e os posicionamentos políticos/escolares

adotados em todas as escolas, ao que me parece, podem ter dependido do lugar da visita, dos catedráticos envolvidos, do conteúdo estudado e, principalmente, de cada aluno em cada momento seu e da escola.

Destacado isso, compreendi a impossibilidade de utilizar o aporte teórico proposto por Pierre Bourdieu, pois cada disciplina que compunha a "Agronomia", tinha seus próprios paradigmas independentes. Assim, quando Salvador Toledo Piza Jr. diz que tanto seu nome de cientista como de professor estavam indissociavelmente atrelados à ESALQ, evidencia-se que ele falava de um mesmo lugar com no mínimo duas redes e funções distintas, a dos seus pares zoologistas e a dos professores da ESALQ/USP. Mas os nomes do pesquisador e do professor confundiam-se e fundiam-se dentro da escola, tencionando para que não houvesse uma organização específica para cada função, como ocorreu na alocação da verba orçamentária, suscitando o questionamento sobre a prioridade entre a pesquisa individual e o ensino. Quero dizer com isso que, em se tratando da institucionalização da agronomia no país, concordo apenas parcialmente com Vessuri (1987, p.534) ao falar sobre modelos e padrões organizacionais da ciência. No período a que se refere essa pesquisa, não é possível analisar as instituições em separado para depois fazer estudos comparativos, pois acredito que as suas características só se definem nessa rede de comunicação, que é bastante diversa e fluida institucionalmente. Trajetos pessoais e temáticos sobre as culturas podem e devem ser mapeados em detrimento da observação do conjunto de disciplinas em cada escola. Dessa maneira, efetuaríamos o que Hebe Vessuri se refere a fazer um mapeamento topográfico do terreno socio - intelectual da época, este talvez seja um ponto de partida para estudos que pretendam compreender as controvérsias que permearam as instituições agronômicas.

Mas, que diferenças eram aquelas que possivelmente os alunos transferidos sentiam na pele, conforme quis salientar numa possível conversa? No diálogo elaborado fica sugerido que os currículos poderiam não obedecer à mesma ordem das matérias durante os quatro anos. E, mesmo seguindo, os programas poderiam não ser os mesmos ou os conteúdos poderiam estar em cadeiras diferentes. As escolas privilegiavam determinadas cadeiras a cada ano? Em que essas diferenças resultariam no perfil profissional? Porque a facilidade de transferência entre algumas escolas? Para identificar quais as matérias privilegiadas por cada escola no primeiro ano, comparamos as cargas horárias semanal do ano dispostas em horários, somando-se horas teóricas e práticas, para antes e depois de 1939, quando o prazo para a equiparação se esgotou.

Pela análise comparativa do QUADRO 17 (Ao final do Capítulo 3) compreende-se que cada escola desenvolveu um perfil quanto ao destacamento de matérias para o primeiro ano. Na ENA, Física Agrícola e Meteorologia, Química Analítica e Desenho foram as matérias eleitas em todo o período. Na EAB, encontramos o padrão da ENA, que, com o tempo, foi sendo particularizado, compondo seu perfil ao destacar a Botânica Agrícola. Na ESALQ, um outro padrão aparece com o destacamento da Botânica, da Zoologia, depois, Anatomia e Morfologia dos Animais Domésticos, da Matemática e da Física Agrícola e Meteorologia, que no segundo momento tem sua carga horária diminuída. Na ESAV, apesar de não haver grande diferença entre as cargas horárias, sendo esta a principal característica do seu padrão, observa-se a mudança de destacamentos, da ENA para o da ESALQ no segundo momento.

Conforme o entendimento na época, que o currículo partia do conhecimento científico essencial ao conhecimento tecnológico, e não ao aprendizado técnico, ou seja, execução das técnicas agrícolas quaisquer que sejam, podemos inferir que as matérias eleitas eram também os lugares de origem das tradições científicas agronômicas. Por essa noção de currículo e pelo lugar das matérias nas séries, entendo que o profissional formado acabaria incorporando uma idéia sobre a própria história das ciências agrícolas, bem como sobre os trabalhos técnicos que representavam as práticas mais modernas na produção agrícola. Nesse caso, poderíamos dizer que as matérias de Química Analítica e Física Agrícola e Meteorologia deixaram de apresentar os conteúdos científicos necessários para o desenvolvimento de outros, nos anos subseqüentes, tanto na ESALQ como na ESAV e em menor escala na EAB. É possível falarmos no abandono de uma tradição? Essa pergunta só pode ser respondida se efetuássemos uma análise detalhada dos programas.

Reunindo primeiramente os programas de Física das escolas, nota-se a total diferença do programa de física da ESALQ, que num programa enxuto, aborda apenas o estudo dos gazes, noções de termodinâmica, Meteorologia e Eletricidade. Os outros programas são mais completos tanto em relação aos pontos que o programa da ESALQ aborda, como em relação às demais temáticas da Física como a acústica, ótica e magnetismo. Como entender o significado de porque aqueles conhecimentos foram elencados? É de se esperar que o programa esteja de acordo com a finalidade do ensino agrícola proposto pelas escolas, esteja dentro das possibilidades de cognição do ministrante e apresente uma coerência junto ao todo dos saberes que compõe as ciências agrícolas, inclusive, a cada série.

Pensando nisso e relacionando o programa da ESALQ de 1937 com o da ENA de 1948, seria possível identificar dois sentidos para os programas de física: o de apresentar uma revisão dos conceitos elementares da física e o de possibilitar o aprofundamento nas noções sobre a física dos solos. Sobre esses sentidos é possível dizer que os conteúdos da ENA, da EAB e da ESAV passaram a destacar os pontos da física dos solos, principalmente nas aulas práticas, deixando de lado a acústica e a ótica, sem abrir mão de outros pontos teóricos que consideravam ter aplicação da agricultura. O sentido de matéria de revisão da área de Física só retornaria no decorrer da década de sessenta com a saída dos conhecimentos e práticas da física dos solos para a matéria de pedologia em todas as escolas. O equilíbrio entre esses sentidos foi quase sempre determinado pelos catedráticos responsáveis. Assim, quando da troca de catedráticos, por aposentadoria, exoneração ou morte, um novo programa tende a ser apresentado, trazendo a leitura de um novo especialista, surgindo novas histórias da "Agronomia".

O Lema da ESAV: "Mens sana in Corpore sano"*

A primeira das cartas aqui apresentada foi provavelmente escrita por José Cândido de Mello Carvalho (FOTO 2), pois não se encontra assinada nem datada. Após a sua leitura, surgiu a motivação para trabalhar com o conjunto de cartas relacionadas a ela. Essa documentação pertencia ao antigo Arquivo Histórico Central da Universidade Federal de Viçosa, e hoje ao Departamento de História da mesma universidade. Elas estavam reunidas num livro intitulado "Cartas Científicas" e são datilografadas em sua maioria. A suposta carta de José Cândido de Mello Carvalho não é uma cópia por meio de carbono e sim de um esboço ou exemplar do original. Por meio desta carta, será possível interligar as falas de Oscar Monte, engenheiro agrônomo e pesquisador do Instituto Biológico de São Paulo, e de J. Carl Drake, chefe do Departamento de Zoologia e Entomologia da Iowa State College (Ames, Iowa, EUA).

Nessa narrativa procuro explorar as disputas ocorridas, as práticas e as instituições envolvidas, dando um contexto aos diálogos e conferindo um significado à área de Entomologia. Espero que o leitor tenha paciência com os longos trechos transcritos, as interrupções e a falta de uma ordem cronológica na apresentação das cartas. Isso foi preciso para reforçar alguns temas e a interlocução entre os pesquisadores. Quero com isso explicitar o caminho percorrido na construção de um entendimento das cartas e do seu contexto, elaborado no conjunto das cartas, por outras fontes primárias e com o auxílio de outros autores. Por fim, saliento que não foram feitas correções de ortografia ou de concordância quer seja nas cartas redigidas em português quer na língua inglesa. Após esse primeiro momento, passo à análise de questões relativas à temática dessa tese.

Transcrição completa da carta cuja autoria atribuo a José Cândido