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Greenback e Gold Standard: a República dos Estados Unidos e o Império do Brasil

2. O Inferno na república dos Estados Unidos

2.3 O elogio ao ouro e o éthos protestante no Canto Décimo

2.3.1 Greenback e Gold Standard: a República dos Estados Unidos e o Império do Brasil

Em face da discussão anterior, faz-se necessário realizarmos breve incursão sobre a questão monetária relativa ao padrão ouro (gold standard) e o papel-moeda (greenback) na qual esteve envolvida a economia dos Estados Unidos no período do pós-guerra e que se acenturia na década de 1870 devido a força que o partido dos defensores do greenbacks, o Greenback Party, vinha ganhando103. Esse tema também está presente no canto décimo de forma peculiar, pois demarca a oposição entre Monarquia e República. Contudo, é preciso não olvidar que quando Sousândrade refere-se apenas ao ouro, em outras passagens do mesmo

103 O Greenback-Labor ou National Party lançou candidatos à presidência dos Estados Unidos entre

1876 e 1884, mas sem conseguir eleger ninguém. Contudo, em 1878 quinze dos seus correligionários foram eleitos membros do congresso. Cf.: Calhoun, Charles W. The political Culture: public life and the conduct of politics. In: The Gilded Age: Perspectives on the Origins of Modern America. New York: Rowman & Littlefield, 2007. p. 245. Foi no auge desses acontecimentos que James A. Garfield - eleito presidente dos Estados Unidos em 1881, mesmo ano em que morreu em decorrência de um atentado - escreveu The currency Conflict, no qual ele defende a retomada do padrão ouro. Garfield, membro da comissão eleitoral de 1876, apreensivo com o apoio crescente ao Greenback-Party propõe-se a escrever um artigo historicizando a necessidade transitória que foi adoção do papel moeda e, por fim, a necessidade de aboli-lo. A posição de Garfield nesse texto é explicitamente partidária. Conferir: The currency Conflict. In: The Atlantic Monthly, February 1876, pp. 219-236. Disponível em: <http://www.unz.org/Pub/AtlanticMonthly-1876feb-00219>. O Novo Mundo, em notícia de 5 de dezembro de 1878, faz um apanhado geral sobre o desfecho das eleições daquele ano. Comenta a ameaça que o Greenback Party representou no início do processo eleitoral, ressaltando que o mesmo havia sido devidamente derrotado pelos Republicanos. O Greenback Party é chamado no texto de "inimigo do crédito nacional" por defender a emissão de mais papel moeda. Cf.: O Novo Mundo. Vol. VIII, nº 96. Dez, 1878. p. No artigo A crise financeira, de 1875, sobre os problemas econômicos que o Brasil atravessava, o greenback é mencionado. O artigo adverte que se tomasse cuidado com a emissão de mais papel moeda a fim de evitar a mesma inflação do greenback nos Estados Unidos, que valeria apenas 84 cents dos 100 que deveria valer. Cf.: O Novo Mundo, Vol. V., nº 56. Maio, 1875. p. 190. Ver também: A questão do meio circulante nos Estados Unidos. O Novo Mundo, Vol. IV, nº 46. pp. 174-75

canto, ele o emprega enquanto metonímia de dinheiro e não como referência ao gold standard.

Antes da Guerra Civil o sistema monetário estadunidense era baseado em moedas de ouro e prata, com predominância da primeira104. Mas em 1862, em meio à guerra, o país entrou em uma crise fiscal agravada pela especulação do ouro. Assim, para a União manter-se no front de batalha foi necessária a emissão de dinheiro em papel não conversível em espécie, o greenback, como o dólar foi chamado devido a sua cor verde no reverso da cédula. Com o fim do conflito entre o norte e o sul dos Estados Unidos veio à tona a discussão sobre a volta ao padrão ouro ou a manutenção do papel moeda. Com essa polêmica surgiu também um amplo debate na sociedade da época em torno da concepção de valor.

Por um lado, os defensores do padrão ouro advogavam que o dinheiro possuía valor flutuante, associado à inflação, ao passo que o ouro possuiria valor intrínseco e por isso estável. Por outro lado, os defensores do papel moeda, os

greenbackers retorquiam que também o valor do ouro não passava de uma

convenção social e que caso esse fosse desmonetizado perderia praticamente a sua representatividade financeira, até então considerada inerente. A convenção em torno da valoração do ouro serviu de argumento para que os partidários do papel- moeda reivindicassem a validação das notas pelo governo, enquanto representante do povo, uma vez que as mesmas e o próprio ouro não carregariam valor intrínseco. Os defensores do padrão ouro ridicularizavam essa proposta já que para eles o governo não detinha poder para determinar o quanto valia o dinheiro. Os especuladores financeiros também temiam que o governo ficasse encarregado de tal tarefa, pois abrir-se-ia precedente para que o poder estatal também intervisse em outras esferas que eram igualmente constructo social, como a propriedade, a riqueza e o capital. Não por acaso, os favoráveis ao greenback foram apontados como comunistas (CARRUTHERS; BABB, 1996, p. 1580)

Em The Color of Money and the Nature of Value: Greenbacks and Gold in

Postbellum America, Bruce Carruthers and Sarah Babb analisam diversos

documentos referentes aos anos de 1860-1879 sobre essa polêmica e mostram como o debate do lado dos defensores do padrão ouro estava assentado na

tradição, ao passo que os favoráveis ao papel-moeda recorriam aos ideais da razão iluminista105 e ao progresso. Para esses últimos os primeiros viviam no passado porque, a exemplo da aristocracia, o ouro também era um anacronismo deslocado no presente, assim era necessário renunciar ao padrão ouro, the currency of kings", como forma de romper definitivamente com o despotismo monárquico, herança do império britânico (HEYWOOD apud CARRUTHERS; BABB, 1996, p. 1571).

Essa visão da naturalização do valor do ouro relacionada com o despotismo dos reis, nos remete a seguinte estrofe do canto décimo, da seção

Inferno de Wall Street:

(PRESIDENTE GRANT com impassibilidade e seus ministros BABCOCK, BELKNAP, etc. lendo o SUN e comprimentando

a DOM PEDRO :) — De greenback as almas saudam

Ao ventre de oiro Imperador ! == Bully Emperor incrente

Em sua gente, É tal rei tal reino, Senhor ?

(canto décimo, p.240)

Na estrofe citada, o presidente Grant, indiferente, acompanhado pelos seus ministros, dos quais apenas dois são nomeados, cumprimentam a Dom Pedro II. Ulysses Grant em nome do seu povo, as almas de costas verdes , curva-se em sinal de irônica reverência ao ventre de ouro do Rei do Brasil. Na sequência são os ministros de Grant, Orville Babcock e William Worth Belknap, acusados de corrupção, episódio fartamente divulgado na imprensa da época, que fazem a provocação à tirania do Imperador, o bully emperor106 que não confiaria em seu povo. A sugestão implícita na pergunta retórica é que o Imperador também não

105 Sobre o apelo à razão por parte dos greenbackers, também James A. Garfield, defensor do

padrão-ouro, no referido The Currency Conflic, chama de fato interessante a posição dos greenbackers, ou soft-money men, em buscar na literatura existente argumentos para embasarem sua posição. Cf. GARFIELD, 1876, p. 224.

106Observamos que o adjetivo bully relacionado comumente a tirano pode também significar

informalmente algo ou alguém excelente , como usado pela imprensa americana no século XIX em relação ao Imperador do Brasil. No entanto, levando em consideração o contexto do poema, o emprego de bully pode conter ambos os significados.

seria confiável aos olhos do povo. A resposta de Dom Pedro à essa provocação de Grant vem à altura na estrofe seguinte, quando ele justamente questiona : Por que, Grant, á penitenciaria/ Amigos vos vão um por um , em referência aos atos ilícitos dos funcionários presidenciais.

Cotejando as versões desse episódio publicadas em 1877 e 1886 notamos que a segunda estrofe originalmente usava a palavra áureo no lugar de oiro : De aúreo ventre ao Imperador ! , portanto, à luz da análise de Carruthers e Babb, notamos que a derradeira versão do canto décimo, com a opção pela palavra ouro, acentua o contraste entre a Monarquia brasileira e a República dos Estados Unidos por meio da referência ao padrão ouro e o greenback, metáfora do atraso versus modernização.