• Nenhum resultado encontrado

O imaginário da nova-iorquina fútil

3. Entre o Inferno e o Éden, figurações do feminino no Canto Décimo

3.1 A mulher nos Estados Unidos: o periódico feminino brasileiro e as percepções da nova-iorquina

3.1.1 O imaginário da nova-iorquina fútil

A exemplo de Sousândrade e Martí, a liberdade da mulher nos Estados Unidos impressionava os observadores estrangeiros, mas também os intrigava. Nicola Miller analisa, no ensaio Liberty, Lipstick, and Lobster, que desse estranhamento geralmente decorriam duas interpretações da mulher estadunidense, são elas: a mulher benevolente (philanthropic woman) e mulher superficial (cosmetic woman). A primeira é idealista, geralmente descendente de puritanos, imune às paixões mundanas e propensa a ajudar o próximo, ao passo que a segunda é materialista, busca a satisfação própria e bens de consumo (MILLER, 2012). Esse último tipo de mulher é jovem, fútil, volúvel e associada ao

flirtation, prática considerada corrente entre as jovens. O flirtation, ou flerte,

contudo, seria desprovido de intenção sexual e apenas expressaria uma prática cultural que confundia os estrangeiros, como alertava o diplomata espanhol J. Bustamante y Campuzano após viagem aos Estados Unidos. Citando Miller:

One Spanish diplomat found the flirtatiousness of US women a potential minefield for any recently arrived European male. Flirtation was a national pastime he observed – an

American woman who does not flirt is not an American – but also a sweet illusion for the European man who found himself the recipient of a beautiful New York girl s smile . Although such a smile would be very significant in other countries , in the United States such flirtation never last more than one week and were simply a local custom, not to be taken to heart (MILLER, 2011, p. 93, grifo nosso).

Em Sousândrade encontramos imagens desses dois tipos de mulheres que trata Miller. A mulher fútil, leviana e dada ao flerte, por exemplo, aparece n O Guesa mas também em Liras Perdidas, no poema intitulado Flirtations120. Neste, por exemplo, três moças em idade escolar flertam com um homem, ao que tudo indica, mais velho que elas:

FLIRTATIONS

Ninguém ande à encruzilhada Por noites de São João Vejam a mal-assombrada, Meninas! "Oh, a visão!..."

– Cora, qual é tua sorte? "Na Quinta Avenida, à corte, Casarei."

– Sempre never cada Fanny? "Morrerei."

– E tu, Augusta, rubores? Vão ver, que sorte de amores... "Eu sonhei."

Pior do que encruzilhadas De visões; portas e escadas Destes céus de Manhattán Com que aí stão-se aninhando Alvoradas? matinando

Toda a noite até manhã? "Fogo! fogo! é rato! é gato!" – Matinada de Babel!

120 Flirtations foi originalmente publicado no jornal O Globo em 15 set. 1889 como Liras Perdidas, II.

O mesmo foi renomeado e reunido na obra Liras Perdidas, publicada postumamente (1970) e compilada na obra Poesia e Prosa Reunidas (2003, p.471), por Jomar Moraes e Frederick Williams. O mesmo também pode ser consultado on-line no endereço: < http://www.literaturabrasileira.ufsc.br/_documents/0006-02976.html#47>. Acesso: 02mar15.

Meninas, mudem de quarto, Há mais quem durma no hotel!

São as três; doirada tarde, Vêm da escola e em risos ledos, O olhar longínquo de que arde, Atiram beijos co'os dedos.

Ora, estudando as lições: "Diga, diga, as professoras Deram tese – Os dois vulcões Maiores – Belas senhoras, Há crescenças... sobre os Andes Que são da terra as mais grandes... Rindo Fanny, Cora alada

E ar Augusta de graduada "Andes são serras: vulcões,

Sir! os maiores do mundo!?"

– Oh! que estão no céu profundo Chamas lançando em festões? "Yes! Yes!"

– Que rugem? `strugem Com lavas bravas?! "Yes! Yes!"

– São, my girl, dois corações... "Oh! oh! oh!"

(Manhattanville)

Na primeira estrofe aconselha-se que as meninas não andem por encruzilhadas em "noites de São João" devido "a visão" de assombrações, o que sugere uma atmosfera mística ligada à forças ocultas. Corta-se então a cena e na segunda estrofe o encontro das garotas com "a visão" é confirmado, mesmo sob advertência do eu-lírico. Essa " visão" revela-lhes a sorte e Cora sabe que se casará na Quinta Avenida, ao passo que Fanny parece fadada a solteirice e Augusta sonha com "amores". Não podemos deixar de notar a menção a São João e sua ligação com os festejos juninos brasileiros, quando também Santo Antonio, popularmente conhecido como o santo casamenteiro , é celebrado. Assim, no poema, a visão liga-se também ao folclore de adivinhações sobre o futuro matrimonial de moças núbeis. Nas estrofes consecutivas, exalta-se o tom pueril na descrição das três garotas e é notório o flerte das jovens com o eu-lírico, sobretudo, quando este, ao longe, as observa no caminho de volta da escola. Cora, Fanny e Augusta com júbilo

e olhar ardente para aquele que as mira, imagem que insinua o desejo físico, arrematam a cena lançando-lhe beijos com os dedos.

É válido mencionar que a insinuação amorosa entre um homem mais velho e moças mais jovens também está presente no poema Leila121, o qual descreve

eroticamente uma garota de apenas treze anos. Embora essa temática hoje possa nos parecer polêmica, por remeter a pedofilia, no século XIX ela não seria estranha pois era comum moças muito jovens serem consideradas já prontas para o casamento, conforme bem observa Marcus Vinícius de Freitas sobre a publicação de Leila no Periódico Aurora Brasileira, encabeçado pelos estudantes brasileiros na Universidade de Cornell122.

Ainda sobre a fala de Cora em Flirtations, é curioso observar a semelhança com a Young-Lady do canto décimo d O Guesa:

(O GUESA escrevendo personals no HERALD e consultando as SYBILLAS de NEW -YORK :)

— Young-Lady da Quinta Avenida, Celestialmente a flirtar

Na egreja da Graça . . . — Tal caça

Só mata-te almighty dollár.

(canto décimo, p. 237)

Na estrofe supracitada, o Guesa escreve para a coluna Personals do Herald, jornal nova-iorquino da época, e consulta videntes na cidade em busca de uma jovem senhora residente da Quinta Avenida - endereço nobre em Nova York já naquela época - que teria flertado com ele na Igreja da Graça. Vale lembrar que a menção à Quinta avenida também aparece em Flirtation quando Cora diz que, mediante a cortejos ou galanteios (flirtation), ali se casará.

121 Sousândrade publicou quatro poemas intitulados Leila. Dois deles aparecem na obra Liras

Perdidas, publicada postumamente em 1970, mas que apesar do título em comum são distintos. Já as outras duas publicações de Leila se deram em Impressos, Vol. I (1868) e Obras Poéticas (1864) sendo o segundo uma versão ligeiramente modificada do primeiro.

As vozes presentes na estrofe acima sugerem dois pontos de vista distintos sobre essa Young-Lady. A primeira parece enfeitiçada por seu gesto e qualifica o flerte como celestial, isto é, em consonância com o recinto religioso. No entanto, a segunda voz , talvez a resposta a publicação no Personals, ou uma profecia da sibila consultada, satiriza a busca do Guesa pela moça afirmando que a mesma só se renderia ou seria abatida nesta caça amorosa pelo almighty dollár ou dinheiro todo poderoso, expressão (cunhada por Washington Irving na crônica Creole

Village, de 1837, na qual o dólar todo-poderoso é descrito como objeto de devoção

generalizado em todo o país123) geralmente utilizada para satirizar a obsessão por bens materiais e enriquecimento. Portanto, a jovem nova-iorquina de boa estirpe flertaria indiscriminadamente, mas só se interessaria por homens ricos e, por isso, não estaria interessada no Guesa. Apesar do que nos explica Miller sobre o cunho dessexualizado do flirt, de acordo com os relatos de estrangeiros analisados pela pesquisadora, Frederick G. Williams124 ao comentar essa mesma estrofe sousandradina sugere que a young-lady fosse uma prostituta e que Sousândrade iria em busca de aventuras amorosas na Igreja da Graça, análise com a qual não concordamos.

O Guesa também frustra-se com o comportamento da nova-iorquina fútil (cosmetic woman) em outra passagem do poema, no Canto Epílogo d O Guesa:

È Lala livre ; electrica scintilla Perigosa e gentil : ora, bucolica A s sombras ; d entre satyros sbrazila A fazer desespêro ; ora, diabolica, Fúlguro o olhar e o cincto, de repente Desapparece por de tras das trevas — E alta noite ainda escutam-se das selvas Cantos de amor. Co o dia, ao descontente

123 Cf: HENDRICKSON, Robert. The Facts on File Dictionary of American Regionalism. New York:

Facts On File, 2000. p. 595; FOLSOM, George; Shea, John Gilmary, Stiles, Henry Reed at alli. The Historical Magazine. Vol. X, Second Series. numb. 1. July, 1871. p. 139. Disponível em: <https://books.google.com.br/books?id=skGeGikQMwIC&dq=Creole%20Village%20de%20Washin gton%20Irving%20(1837)%2C%20almighty%20dollar&pg=PA1#v=onepage&q=Creole%20Village %20de%20Washington%20Irving%20(1837),%20almighty%20dollar&f=false> Acesso em 21. maio.15

124 Cf: WILLIAMS, Frederick G. Sousândrade em Nova lorque: Visão da Mulher Americana. Hispania,

Estende a linda mão, quer um presente

De quem lhe è gloria e guarda, e amores seja Na mesma hora — se não, Clary a deseja, Fred a requesta . . .

Oh, sólta a viridente Aza da borboleta !

Estava o Guesa Qual ao rebaixamento de desgôsto

De um que, em terreno a crer-se de pureza, Subito afunda no infernal esgôto.

(Canto Epílogo, p. 345-346)

O comportamento inconstante de Lala encanta o Guesa, mas ela quer dele mais que afeto e segurança, Lala quer presentes , mimos materiais que pressupõe considerável condição financeira do seu parceiro. O Guesa, na impossibilidade de atender o pedido da mulher desejada, a perde, pois cobiçada que é Clary a deseja, Fred a requesta , Lala abandona o Guesa com a rapidez do bater de asas de uma borboleta. Por essa razão, a pureza da Young-Lady, ou Lala, de maneira semelhante à estrofe do Canto Epílogo supracitada, é questionada pelo Guesa que vê-se em terreno de podridão, ou infernal esgôto , como ele define seu sentimento sobre o que considera desvirtude feminina.

Jose Martí em suas crônicas sobre os Estados Unidos também registrou semelhante impressão em relação à jovem americana. Para Martí elas possuíam prácticas nociones de la vida e por isso agiam menos com paixão que com razão. As jovens americanas estariam interessadas apenas em bens materiais, assim como a personagem Lala, pois las mujeres americanas parecen sólo tener un pensamiento fijo cuando conocen a un hombre: ¿Cuánto tiene ese hombre? (MARTÍ, 1991 [1880, vol. 19], p.117) . Em outra crônica publicada seis anos mais tarde, em 1886, Martí repete esta ideia quando escreve que: la desvergonzada y odiosa avaricia de la neoyorquina moderna, que cuando se la toca, como esos maniquíes de ladrones llenos de campanillas, suena toda a moneda (Martí, 1991 [1886, vol.10], p. 429) .

Martí e Sousândrade nas passagens citadas referem-se a nova-iorquina moderna, ou seja, à mulher jovem. Para o cronista cubano, as mulheres mais velhas, especificamente as da Nova Inglaterra, ainda carregavam a moral e valores de seus antigos antepassados, imigrantes puritanos. Martí associava essas mulheres à majestosas estátuas gregas, em oposição as jovens bonecas ordinárias que circulavam por Nova York, conforme as duas visões dicotômicas da figura feminina que nos fala Nicola Miller.