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Alvares afirma que, para tornarem-se tikmu’un – humanos verdadeiros, os Maxakali precisam possuir yãmiy – cantos. De acordo com a autora, “todos os homens são xamãs, ou seja, todos possuem a capacidade de chamar os yãmiy e controlar o seu trânsito”, mas os rapazes que demonstram uma maior inclinação para a vida ritual recebem uma formação especial de seu pai, tio materno ou avô. Este conhecimento especializado é considerado patrimônio exclusivo de um grupo de parentesco. Aquele conhecimento mais geral, ao qual todos os homens e mulheres têm acesso, é transmitido pelos homens mais velhos da aldeia, os yãmiytak (“pai dos cantos”) (Alvares, 1992: 54,55).

F. Popovich afirma a existência de “grupos rituais” que constituem, segundo ela, “verdadeiras sociedades secretas”. Os grupos rituais possuem a mesma denominação que os

yãmiyxop ( yãmiy: espírito, xop: grupo, coletivo)117. Há, entre vivos e mortos, membros do

mõgmokaxop (grupo do gavião), do xxuninxop (grupo do morcego), e assim por diante. A interação entre vivos e espíritos se dá entre os membros de um grupo ritual e os membros de um grupo de espíritos – yãmiyxop de mesmo nome. Algum tempo após a morte, o koxuk (alma) vai morar na aldeia de um dos grupos de espíritos dos quais fazia parte em vida (F. Popovich, 1988: 104, 108, 129).

De acordo com H. Popovich, tanto os meninos quanto as meninas são incorporados aos grupos rituais em momentos significativos de sua vida, como o nascimento, o casamento118 ou a demonstração de comportamento maduro e responsabilidade em relação ao trabalho. A aproximação da morte do doador é também um momento no qual os

117 Ver Mini-Dicionário Maxakali-Português de Charles Bicalho.

118 Alvares (1992: 54) afirma que os jovens (homens e mulheres) precisam possuir pelo menos um casal de yãmiy para poderem casar-se. H. Popovich (1976b: 23) observa que o casamento é a única ocasião na qual as mulheres recebem títulos de pertencimento aos grupos rituais.

“títulos” devem ser passados adiante. As obrigações rituais das mulheres são cumpridas por seus pais e maridos. Os “títulos” de pertencimento a grupos rituais são recebidos de parentes maternos e paternos de gerações ascedentes. Os títulos podem ser tomados e dados a outra pessoa em caso de mau comportamento (H. Popovich, 1976b: 22,23; F. Popovich, 1988: 143-145). Vejamos o exemplo abaixo:

“CO explained that he received ‘titles’ to ritual groups from both maternal and paternal grandparents. He received one from his father at his initiation, for “responsible behavior”. His brother also received one, but this was later revoked for irresponsability and the title was given to another relative. CO received another at his marriage and another upon the death of his mother´s brother. He had something like six ‘titles’ to ritual groups, not counting his wife’s and daugthers’ ‘titles’ that he was obliged to discharge on their behalf” (F. Popovich, 1988: 145).

Já observamos que o pertencimento de um homem a um grupo de parentesco é determinado por sua frequência ao kuxex. Os frequentadores de um kuxex devem lealdade uns aos outros, inclusive no caso de ocorrência de conflitos. F. Popovich transcreve a fala de um homem que conta o que aconteceu quando um membro de outro grupo de parentesco se desentendeu com um morador e participante ativo da vida ritual de sua aldeia:

“Those who were faithful to the rituals came to defend MZ and to kill the outsider instead. Those of the Souls-of –the Dead-group, from the Manioc Stalk group, and from the Hawk group killed the outsider and hid the body…We had not done any wrong and we had

helped Miguelzinho…Later he came back to live with us. Nothing wrong had been done. This is what the ancestors said” (Popovich, 1988: 145).

Este episódio deixa claro que, apesar de possuir títulos referentes a vários grupos rituais, um homem só pode atuar junto aos grupos rituais representados em sua aldeia. Se os frequentadores de um kuxex são aqueles que co-habitam numa mesma aldeia (pelo menos durante a realização de ciclos rituais), pode-se dizer que os grupos rituais descritos pelos Popovich confundem-se com os grupos de parentesco. F. Popovich (1980: 31) afirma a possibilidade de estes grupos rituais terem representado afiliações clânicas119 em fins do fim século XIX, quando os Maxakali eram muito numerosos120. Para ela, com a drástica redução da população, talvez tenha sido necessário atribuir a cada menino o pertencimento121 a mais de um grupo ritual, “para que a prática da religião fosse mantida, assim como sua função social”.

Alvares, que fez trabalho de campo no mesmo ano em que a tese de F. Popovich foi defendida, não menciona os grupos rituais. Mas, como vimos acima, Alvares afirma a existência de grupos de parentesco com conhecimento xamânico especializado. No campo, pude perceber que os organizadores dos rituais e frequentadores de um kuxex são sempre os mesmos homens, moradores constantes ou itinerantes de uma aldeia. Em certos rituais,

119 É importante observar que Popovich (1976b: 2) afirma ser impróprio falar de totemismo entre os

Maxakali:“Totem will not be used, because even though these groups are societies consisting of certain dead and living going by various names, they do not divide the tribe into distinct societies”.

120De acordo com Paraíso (1999), as diversas denominações dos subgrupos maxakali identificavam, inicialmente, os grupos rituais, que se confundiam com as unidades mais abrangentes em termos de organização política, ou seja, pequenas aldeias onde vive uma família extensa em torno de um líder político / religioso. Paraíso sugere que, com o avanço das frentes colonizadoras, essas aldeias acabaram se isolando em termos geográficos, e os vários grupos rituais passaram a ser identificados nos documentos oficias e particulares como tribos distintas.

outros homens convidados formavam uma espécie de platéia. Numa próxima pesquisa de campo, pretendo investigar sobre a existência e dinâmica atual dos grupos rituais descritos pelos Popovich.

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