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Além da proximidade espaço-temporal, os povos maxakali e botocudo guardavam muitas semelhanças nos domínios da cosmologia e organização social.

Para Missagia de Mattos (2002: 459), os Botocudo teriam sido praticantes do que ela denominou “xamanismo guerreiro”, ou seja, mantinham uma organização guerreira centrada nos processos de neutralização da magia alheia, bem como de sua pilhagem, visando o aumento do poder sobrenatural do “líder-xamã” e, consequentemente, a proteção física e espiritual de seus parentes. O relato de Mané Kelé Maxakali sugere a participação dos Maxakali neste mesmo sistema:

“Um Maxakali sonhou com Botocudo. Aí foi lá na aldeia deles. Sonhou onde que era. Chegou lá, os Botocudo deram suco de mel pra ele encher a barriga e não correr. O pai dele disse para não chegar perto, senão o outro tomava a flecha dele. O Botocudo pediu a flecha, mas ele não deu. Ficou de longe. Os outros começaram a jogar flecha, mas ele não conseguiu correr muito. Vomitou e jogou flecha também. Foi embora pelo mato, chegou no rio e ficou com medo de atravessar, porque seus três irmãos já tinham morrido nesse rio. Foi nadando, e chegou já morto em sua aldeia. Lá disse que os Botocudo estavam atrás deles, para tomarem cuidado. Na aldeia dos Botocudo tinha um kuxex e uma casa grande pra todo mundo. Aí o homem voltou para procurar os Botocudo. Achou uma fogueira que estava fria. Continou, achou outra que estava quente, aí achou a aldeia deles”68.

Como já foi dito anteriormente, a busca por territórios de caça e coleta era causa de migrações e conflitos. O professor indígena João Bidé Maxakali nos mostra como a prática xamânica orientava o sentido das migrações, antecipando a presença de inimigos:

68 O engenheiro Feldner (1961(1828]: 65), que visitou a aldeia do “capitão” Tomé, fala sobre o uso extraordinário que os Maxakali faziam de seu olfato, em situações de caça ou de guerra. Além de pistas de animais, reconheciam, por meio do olfato, o grupo ao qual pertenciam os moradores de casas abandonadas, quantos eram, de que sexo e há quanto tempo haviam partido.

“Quando acabou a caça, as frutas, a madeira, tudo, os Maxakali resolveram se mudar para outro lugar. O pajé perguntou seus espíritos – o espírito chama o pajé de pai – onde era para ir. Os espíritos falaram baixinho para não ir ali, porque lá tem botocudo armado esperando. Os Botocudo também perguntaram seus espíritos, que falaram dos Maxakali. Então os Botocudo invadiram a aldeia dos Maxakali. Teve luta, mas os Maxakali não lutaram. Foram os yãmiy que lutaram. Eles são mais fortes! É por isso que os Maxakali têm língua e vão ter sempre!”

A partir do relato do engenheiro Feldner, pode-se também depreender a relação entre xamanismo e fluxo migratório:

“O sargento veio um dia dizer-me que todos os Machacarès estavam reunidos no rancho, tristes, negando-se a aceitar a farinha de mandioca. Indo lá pessoalmente, encontrei-os muito abatidos, alguns mesmo em lágrimas, e, depois de muito perguntar, soube que a alma do Chico (Francisco), índio falecido, da mesma horda, visitara de noite o Capitão José, comunicando que todos deviam morrer se não voltassem para Minas. Só por pouco tempo consegui mantê-los comigo depois dessa aparição de Chico.” (Feldner, 1961 [1828]: 65-66)

A desarticulação política causada pela morte do “capitão” Tomé foi fatal para os povos maxakali, que sucumbiram aos Botocudo, seus perseguidores (Tschudi, 1971 [1866]: 229 apud Missagia de Mattos, 2002: 69). As estatísticas preparadas por Guido Marlière demonstram a supremacia dos falantes do Botocudo sobre os povos maxakali ao longo dos oitocentos. Os últimos encontravam-se frequentemente nas divisões militares, servindo

como soldados no combate aos Botocudo (C.Emmerich e R. Montserrat, 1975 apud Missagia de Mattos, 2002: 50). Porém, os Maxakali atuais dizem sempre que venciam (e ainda vencem) os Botocudo, com a força dos yãmiy. O relato de Mateu Maxakali, reproduzido nas palavras de Feldner, deixa entrever que, mesmo vencido, o narrador maxakali dá um tom vitorioso à sua narrativa:

“Num assalto dos Botocudos às aldeias dos Machacarès, várias famílias dêstes foram inteiramente exterminadas, entre outras a de Mateu, meu companheiro na presente excursão. Foi êle o único que logrou escapar. O pai, após longa e desesperada luta, recebeu grave flechada no baixo ventre. Assim mesmo, conseguiram afinal levá-lo consigo e, com cuidado, tentaram extrair a flecha, que penetrara profundamente. “Não”, disse o selvagem, “os meus dois irmãos estão mortos; onde êles morreram, eu tabém quero ficar”. Quebrou a flecha, voltou correndo para seu rancho, matou a quantos inimigos aí havia e, encontrando-se assim vencedor, em pé, dentro de sua cabana, arrancou a flecha de encontrando-seu ferimento, caindo sôbre os cadáveres dos inimigos, para não mais se levantar” (Feldner, 1961 [1828]: 67).

Para Mané Kelé Maxakali, “agora só tikmu’un é índio puro”. Contou que, quando vai às reuniões do CIMI ou da Secretaria de Educação, os outros índios falam em português, “não têm língua”69. Ao contrário dos Maxakali, que têm língua porque seus

yãmiy são fortes, como observou João Bidé Maxakali no relato acima. Segundo Mané Kelé, uma moça branca disse para os outros índios: “vocês não têm língua, não são índios,

69 Estas reuniões geralmente contam com a participação apenas dos povos indígenas de Minas Gerais. Dentre os oito grupos indígenas reconhecidos em Minas Gerais, apenas os Maxakali têm a língua indígena como primeira língua. Atualmente apenas três anciãs krenak (últimos descendentes de povos botocudo) falam o próprio idioma como primeira língua. Alguns membros do grupo aprenderam o krenak como segunda língua, e vêm se esforçando para ensinar o idioma (como segunda língua) para as crianças na escola indígena.

os Maxakali têm língua, eles são índios de verdade!”. Comentou que “ãyuhuk (Branco) não gosta de índio sem língua”. A fala destes informantes indica que, além de se verem vitoriosos devido à conservação de sua língua, os Maxakali vêm as alianças que fazem com os Brancos não como sinal de impotência diante de um inimigo poderoso, mas como sinal de poder, ao conquistar a aliança de um inimigo ainda mais poderoso que os próprios Botocudo. É neste sentido que compreendo também a fala de um professor maxakali: disse-me que, ao contrário dos Krenak e dos Pataxó, os Maxakali gostam dos pesquisadores e querem ensiná-los o seu idioma.

Assim, as relações guerreiras entre povos maxakali e botocudo remete-nos à análise feita por Eduardo Viveiros de Castro e Manuela Carneiro da Cunha (1986: 12) sobre a guerra tupinambá:

“Herda-se uma memória. Nesse sentido, a memória não é resgate de uma origem ou de uma identidade que o tempo corroeu, mas é ao contrário fabricação de uma identidade que se dá no tempo, produzida pelo tempo, e que não aponta para o início dos tempos mas para seu fim.”

De forma análoga aos Tupinambá, que eram também praticantes de uma guerra centrada na vingança, os Maxakali atuais parecem ter herdado uma memória a respeito de relações com inimigos tradicionais mobilizada hoje para mover uma guerra atualizada na forma da disputa pela “autenticidade indígena”, alcançada através da prática ritual e do uso da língua, e propagandeada através da instituição escolar.

Numa passagem transcrita acima, Mané Kelé Maxakali aponta a “chegada do governo” como impedimento para a realização da guerra. Afirma ainda que, não fosse por

isso, estariam “brigando até hoje”. Já o professor Joviel Maxakali, que contava sobre as pinturas utilizadas pelos antepassados na guerra, comentou sobre os dias de hoje: “Nós não fazemos mais guerra, agora a gente tá pensando.” Da primeira fala, depreende-se que, se pudessem, os Maxakali ainda fariam a guerra. A segunda fala remete-nos às formas de atualização da guerra presentes nas práticas xamânicas e escolares, analisadas nos capítulos seguintes.

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