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“Não tem nada no mundo que não tem palavra prá índio, só não tá na minha idéia, mas não tem nada neste mundo que bugre não fala” Chico Bugre122

“…eles inventam palavras, todas as vezes que vêm um objeto que não conhecem. As mulheres sobretudo são excelentes para a invenção destas palavras novas… Enfim eis-me chegando (em 1836) na embocadura deste rio, do qual conservei o noeis-me indígena (Mokury) (Mo – vá) (Kury – lavar)”. Victor Renault123.

As observações feitas pelo viajante no século XIX continuam sendo válidas para os Maxakali. Objetos ou seres recém-conhecidos são imediatamente nomeados. No zoológico, diante de um elefante pela primeira vez em sua vida, Daldina chamou-o xuitut (amãxui: anta, tut: mãe), classificando-o como “parente da anta”. Da mesma forma, o local onde se encontra o cristo redentor foi por ela denominado topa pet (pet: casa, ninho), “casa de

topa124. Para que sua existência seja reconhecida e, portanto, lembrada125, todas as coisas e seres precisam ser nomeados. Um rapaz maxakali mostrou-me um desenho - presente de um missionário - de uma mata cheia de animais. Contou que “topa chegou e perguntou: como você se chama, e você, e você? Então os animais foram respondendo, eu sou o carneiro, eu me chamo peixe, cada um falou seu nome”. Assim, os Maxakali nomeiam seus

122 Depoimento colhido em Itambacuri (local onde vários grupos indígenas de Minas Gerais foram aldeados por missionários) em 1972 por Missagia de Mattos (2002: 3).

123 Viajante citado por Missagia de Mattos (2002: 3)

124 É muito comum entre os Maxakali este processo de criação de novas palavras. Pode-se citar exemplos como: carro - mitutmõg (mitut: casa, mõg: ir - “casa que vai”), café - konãg mani (konãg: água, mani: preta), etc.

125 Na língua maxakali, um único verbo yumug – significa aprender, conhecer, saber, lembrar. (Comunicação pessoal de Sandro Freitas, linguista estudioso do maxakali).

animais de estimação, suas aldeias, suas escolas. Quando faziam um desenho, as crianças pediam que eu escrevesse ao lado o “nome do desenho”. Os adultos, por sua vez, demonstram grande preocupação em relação às listas de nomes e documentos.

Os Maxakali dizem que as crianças recebem seus nomes apenas quando já conseguem se sentar sozinhas e começam a engatinhar. Segundo Totó, as pessoas que geralmenete dão nome à criança são aquelas por ela chamadas ãtak (pai), mãy (mãe), xukux (tia ou avó) e yãyã (tio ou avô)126.

Alguns informantes disseram-me que as pessoas têm nomes em maxakali. Às vezes contavam-me o nome de alguém que não estava presente, mas nunca diziam o próprio. De acordo com informantes, os parentes se tratam por termos de parentesco e os cônjuges pelo nome. Para comunicar-se de longe, usam diversos tipos de assovios.

De acordo com F. Popovich (1980: 6), “The indigenous name seen to have been for spiritual rather than social identification”. Como vimos acima, os títulos de pertencimento aos grupos rituais são atribuídos à criança na época de seu nascimento, entre outras ocasiões. Assim, penso que os títulos rituais e nomes indígenas possam vir ser um único objeto, que merece ser investigado numa próxima pesquisa de campo.

Quando indaguei Totó sobre os nomes em maxakali, ele disse “é pra casar” e falou algo sobre yãmiyxop. Começou a fazer risquinhos no chão, para se lembrar do que ele chamou “nomes de antigamente”. Para cada risco, ele dizia um nome, parecia haver um repertório fixo. Alguns dos nomes que compreendi eram nomes de animais. Totó citou um homem que tem um destes nomes (kokiti – macaco) que, segundo ele, não são mais usados. No entanto, conheci uma criança que tem um dos nomes mencionados por Totó.

126 Alvares (1992: 45) afirma ter levantado um sistema de transmissão de nomes em linhas paralelas de mesmo sexo e gerações alternadas. Mas, segundo a autora, o sistema não é regular e “pouco permanece quanto à onomástica maxakali”.

Perguntei como é possível hoje haver o casamento, já que os nomes necessários “para casar” estão em desuso. Totó respondeu: “os pais das crianças conversam, aí

resolve.” É importante observar que, de acordo com Alvares, os jovens (moças e rapazes) precisam ter, pelo menos, um casal de yãmiy para que possam se casar e, segundo H. Popovich, títulos de pertencimento aos grupos rituais são dados às pessoas quando se casam. Uma possível ligação entre os nomes indígenas, os cantos xamânicos e os títulos de pertencimento aos grupos rituais surge novamente.

Sempre que perguntamos a um Maxakali - como você se chama? -, dizem apenas o nome em português. As mulheres e crianças começam a rir e escondem-se, muito envergonhadas. Quando eu perguntava qual era o nome em maxakali de uma pessoa com quem eu tinha mais intimidade, sempre riam e diziam “não tenho”. F. Popovich (1980: 6) afirma que esta relutância em dizer o próprio nome deve-se a sua “natureza mística”. Penso que, talvez, o embaraço causado esteja também ligado ao “apelo sexual” destes nomes, ou seja, ao fato de que eles “servem para casar” e são usados entre os cônjuges127.

Há muito os líderes maxakali, encarregados de travar relações com os Brancos, vêm adotando nomes em português, como foi o caso do já citado capitão Tomé. Nimuendaju (1958:59) cita os nomes em português de dois líderes maxakali, que conheceu em 1939. Com a criação do posto em 1940, os funcionários deram a cada bebê maxakali um nome de santo em português. Só então as mulheres passaram também a adotar estes nomes, para que pudessem ser identificadas pelos agentes do governo (F. Popovich, 1980: 6). Atualmente, todas as crianças maxakali recebem de seus pais nomes em português, muitas vezes inspirados por estrangeiros com quem tenham tido algum contato. Uma criança, nascida

durante minha estadia em campo, recebeu o meu nome. Alguns informantes maxakali disseram que, hoje, todos têm dois nomes: um em maxakali e outro em português.

Os estrangeiros não poderiam se relacionar com os Maxakali tratando-os por termos de parentesco. Assim, o nome em português passou a ser imprescindível para o estabelecimento de relações com os Brancos. Os nascimentos são rapidamente comunicados ao chefe de posto, para que ele possa dar entrada no pedido de auxilio maternidade. Todos têm carteira de identidade indígena, título de eleitor e CPF pois, para que um Maxakali se torne cidadão brasileiro, garantido assim seu acesso aos benefícios concedidos pelo Estado, é preciso que ele tenha um nome (que possa ser usado em público) e documentos que comprovem sua existência, tal como os animais que disseram seu nome para Topa, no episódio acima. Cientes disso, os Maxakali ressaltam a importância da escrita

“para poder assinar”128. Já perceberam também a importância da nomeação de suas escolas e aldeias. Quando perguntei a um professor o nome de sua aldeia, ele me falou vários nomes e perguntou qual seria “bom pra pôr no documento”. Logo em seguida, fez uma lista com os nomes dos alunos em seu caderno.

Alvares (1998) observa que o uso do nome em português é necessário nas escolas maxakali “para que as crianças sejam retiradas de sua rede de parentesco” para serem reagrupadas na categoria de alunos. A autora analisa os problemas enfrentados pelos Maxakali ao se defrontarem com a ideologia individualista acionada através do uso dos nomes, tão necessários ao andamento da instituição escolar129. Alvares, que pôde acompanhar o processo de implantação da escola maxakali observou, neste primeiro

128 Apenas parte dos homens adultos são letrados, porém todos, inclusive mulheres e crianças sabem assinar seu nome, e afirmam ser esta a importância da escrita.

129 Um dos maiores problemas observados por Alvares (1998) foi quanto à distribuição individual da merenda escolar, pois a partilha dos alimentos é um dos pilares da construção do parentesco maxakali, como em grande parte das sociedades indígenas.

momento, uma preocupação obcessiva dos professores com listas de nomes dos alunos e tudo o que dizia respeito à burocracia escolar. Nas palavras da autora:

“Mas se os Maxakali querem uma escola para ensinarem às suas crianças apenas sobre a sua própria cultura130, para em uma palavra, permanecerem o mesmo, é através de uma instituição estrangeira, carregada de uma nova ideologia e de novos significados, que tentam fazê-lo. É sob o regime da diferença, domesticando-a, que os Maxakali buscam permanecerem os mesmos. Tarefa, sem dúvida, complicada” (Alvares, 1998).

Além de servir “para assinar”, os Maxakali afirmam também que a escrita serve “para não esquecer”. Muitos Maxakali escreviam seus nomes em pedaços de papel e me davam, ou pediam para eu escrever seus nomes e o de seus parentes em meu caderno, “para lembrar”. Rominho (filho de Daldina) cantou uma canção que dizia o nome dos moradores da aldeia e, em seguida o refrão “An te yumug” (eu conheço, eu me lembro). Além de gravar, ele escreveu a música em meu caderno de campo. A canção foi cantada por vários dias por crianças e adultos. Rominho disse que “a música é para todo mundo saber o nome do outro, para não esquecer”. Em Belo Horizonte, quando eu e Daldina visitamos a pesquisadora Vania Noronha, que fez trabalho de campo entre os Maxakali, Daldina cantou com ela a mesma música (usando o nome de outras pessoas), para lembrar do tempo que passaram juntas.

130 As duas disciplinas que compõem o currículo da escola maxakali são “alfabetização em maxakali” e “cultura maxakali”.

Assim como o canto acima, a escrita é também usada pelos Maxakali “para não esquecer”, como dizem131. Vimos como a nominação está ligada ao reconhecimento da existência e à “lembrança” das coisas e seres. A escrita “para assinar” e “para não esquecer” tem então sua “função individualizante” subvertida, reforçando a “função nominação” própria do universo maxakali. Se a escrita pode ser usada a serviço da memória, ela pode ser usada também a serviço do parentesco que, como vimos, encontra na memória seu principal idioma. É neste contexto que analiso o uso da escrita pelos Maxakali, no capítulo IV.

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