• Nenhum resultado encontrado

Discorrer-se-á brevemente sobre os diferentes tipos de direitos humanos (SOUSA SANTOS, 1995;BOBBIOet al., 2004) para em seguida, situar a partir do conteúdo normativo a habitação como direito ou o direito à moradia (OSÓRIO; ROLNIK; SARLET; MÜLLER in FERNANDES e ALFONSIN, 2014).

Os direitos civis correspondem ao primeiro momento do desenvolvimento da cidadania, sendo os mais universais, apoiados nas instituições do direito moderno e do sistema judicial que o aplica. É a garantia ao indivíduo de uma esfera de arbítrio e de licitude à sua personalidade: liberdade pessoal, de pensamento, de religião, de reunião e liberdade econômica, desde que não viole o direito de outros (BOBBIO et al., 2004).

Os direitos políticos estão ligados à formação do Estado Democrático representativo e são os de universalização mais difícil, tendo sido traduzidos institucionalmente nos parlamentos e sistemas eleitorais, definindo os sistemas políticos por meio de leis sociais, sua cota no mundo dos produtos, interpondo-se, assim, entre a produção e o consumo” (MARX, 2011, p. 68-69).

35 Apenas uma breve alusão ao título de um dos tópicos do livro de R. Rolnik (2012): “Cidade como mercado”, encaixando com o título de nosso tópico.

em geral. Implica, por isso, uma liberdade ativa, como liberdade de associação nos partidos, direitos eleitorais e, até mesmo, uma participação na determinação dos objetivos políticos do Estado (BOBBIO et al., 2004).

E, por fim, mais tardios os direitos sociais, que apenas se desenvolvem no século XX, maturados por novas exigências da sociedade industrial, em especial após a Segunda Guerra Mundial. São: o direito ao trabalho, à assistência, à educação, à saúde (BOBBIO et al., 2004).

Os direitos sociais têm sido conquistados por meio de lutas das classes trabalhadoras e o processo histórico dessas lutas, bem como a conquista de direitos, ainda que impulsionado por agentes e por reivindicações emancipatórias, ocorre dentro de um marco regulatório liberal, no interior do capitalismo (SOUSA SANTOS,1995).

No debate internacional, os direitos sociais vieram acompanhados dos direitos econômicos e culturais e, dessa forma, foram inseridos no campo dos direitos humanos com o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), adotado em 1966, mas com entrada em vigor apenas em 1976, no âmbito das Nações Unidas (OSÓRIO, 2014).

Amplia-se, portanto, o espectro dos direitos humanos que apelam para direitos coletivos, como o direito à água, extrapolando os direitos individuais (em cuja base se assentam os direitos civis e políticos). Dessa forma, os direitos sociais e, por conseguinte, coletivos atingem, seja com sua presença, seja com sua ausência, comunidades inteiras. O reconhecimento internacional do direito à moradia ganha força nesse rol (ROLNIK, 2014).

Segundo L. M. Osório, o direito à moradia pertence aos dois lados da “divisão imaginária entre os direitos civis e políticos e direitos econômicos e sociais”, sendo reconhecido tanto pelo PIDESC quanto pelo PIDCP (Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos), adotado no mesmo período (OSÓRIO, 2014, p.41).

Ao direito à moradia se atribui um grande alcance, uma vez que está interligado a um conjunto de liberdades e direitos que lhe são inerentes, tais como: alimentação, água, saúde, trabalho, terra, vida e segurança, reclamando assim uma abordagem que

enfatize sua indivisibilidade como direito humano, sem a qual o direito à moradia perde seu significado (OSÓRIO, 2014)36.

Por isso, a moradia foi sendo adjetivada37 ao longo do processo de construção e

elaboração como direito humano internacional: digna e adequada.

Como direito humano está calcado na dignidade humana (cerne dos direitos fundamentais38) cuja base é autonomia, liberdade, participação política e acesso a

recursos materiais, bem como a proteção contra o tratamento desumano e degradante a qualquer pessoa. E, afinal, a falta de moradia afronta a dignidade de quem não a tem, na medida em que priva a pessoa de atividades humanas básicas, como descansar, dormir, lavar-se, comer, entre outras satisfações da esfera do mundo íntimo e privado (OSÓRIO, 2014).

A adequação da moradia, por sua vez, está prevista pelo PIDESC a partir dos seguintes elementos constitutivos: (a) segurança jurídica da posse; (b) disponibilidade de serviços, materiais, instalações, infraestruturas essenciais e recursos naturais coletivos39; (c) acessibilidade aos custos financeiros associados à moradia, sem

comprometimento das demais satisfações de necessidades básicas; (d) habitabilidade dada pela segurança física dos ocupantes contra riscos estruturais e proteção contra intempéries e vetores de doenças; (e) acesso a equipamentos públicos sociais; (f) políticas de apoio ao direito de expressão da identidade cultural da habitação (OSÓRIO, 2014; SARLET, 2014).

A luta por esse direito foi travada em um movimento internacional que resultou na mobilização popular, em 1996, na 2ª Conferência das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos (que deu origem à agenda Habitat II). Ressalta-se, porém, que seu reconhecimento como direito universal foi um dos pontos mais polêmicos e

36 Consideração atribuída à Miloon Kothari, ex-Relator Especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para o Direito à Moradia Adequada. Mandato de 2000 a 2008.

37Para Ingo W. Sarlet: “a ausência de qualquer adjetivação não autoriza que o direito à moradia tenha o seu conteúdo esvaziado (...) situado aquém das exigências da dignidade da pessoa humana e do correspondente mínimo existencial”. Contudo, “a adjetivação tem o mérito inquestionável de afastar interpretações demasiadamente restritivas, que possam vir a reduzir excessivamente o objeto do direito à moradia ou deixá-lo na completa dependência do legislador infraconstitucional”(SARLET, 2014, p. 270). 38Sarlet (2014, p.264): “é na dignidade da pessoa humana que reside o fundamento primeiro e principal, e de modo particular, o alicerce de um conceito material dos direitos fundamentais, o que evidentemente também se aplica aos direitos fundamentais econômicos, sociais e culturais em geral, e ao direito à moradia em particular”.

39 Água potável, energia para cozinhar, aquecimento e iluminação, saneamento e instalações sanitárias, meios de armazenamento de alimentos, recolhimento de lixos, drenagem e serviços de emergência.

assegurou, com ressalvas, o direito à moradia como direito humano e o fim dos despejos forçados (SAULE JR. e ROLNIK, 1996; RODRIGUES, 2007a)40.

O direito à moradia, expresso no Artigo 6º da Constituição Federal Brasileira (1988), foi incluído por Emenda Constitucional (EC nº26, de 2000) e, a exemplo dos demais direitos sociais,

comunga do pleno estatuto jurídico-constitucional dos direitos fundamentais, ou seja, integra o elenco dos limites materiais à reforma constitucional e, na condição de norma de direito fundamental, é sempre diretamente aplicável, a teor do que dispõe o artigo 5º, parágrafo 1º, da CF. (SARLET, 2014, p. 269).

Entretanto, foi preciso a regulamentação do Estatuto da Cidade, em 2001, para que esse direito fosse colocado em evidência e tensionado por meio de instrumentos, como a função social da propriedade (privada) e da cidade.

Inscrita na luta dos movimentos populares urbanos, a reivindicação pelo direito à moradia digna41 se expressa no Brasil há décadas. Essa reivindicação é histórica num

país onde o Estado relegou a população pobre à margem da cidade formal, segregada social e espacialmente. A solução popular encontrada para a satisfação da necessidade de moradia foi a autoconstrução nas encostas de morros, várzeas, áreas sujeitas à inundação, dando origem a diversos loteamentos clandestinos e favelas, banalizadas na paisagem urbana brasileira (MARICATO, 2006).

Consolidada a posse, a reivindicação comunitária se dirigia aos demais serviços associados e complementares à moradia: creche, escola, hospital, posto de saúde, quadras de lazer, segurança e cultura, na compreensão de que, em realidade, lutava-se pelo direito ao acesso à cidade com seus equipamentos públicos e sociais, sempre distantes e apartados da periferia.

Com o fim do regime militar e o restabelecimento da participação política e social, os movimentos populares puderam se reorganizar. Em 1987 surge o Movimento Nacional da Reforma Urbana como um pilar aglutinador do amplo espectro de agentes e instituições sociais (encabeçadas pela sociedade civil organizada em movimentos

40A resistência se deu justamente na medida em que se impôs aos Estados signatários a obrigação em realizar esse direito por meio de planos e programas habitacionais, assim como o estabelecimento de sistemas eficazes de proteção deste direito.

41Na Constituição Federal Brasileira, o direito à moradia se apresenta de forma genérica, sem o acompanhamento de adjetivos como digna ou adequada.

populares, entidades de classe e organizações não governamentais), empenhados no lema que tem como um dos princípios o direito à moradia como direito humano (ORLANDO JR, 2009).

Positivamente, a não institucionalização de um conjunto de direitos sociais no Brasil materializou a bandeira de luta da Reforma Urbana. A ausência do direito à moradia deu forma a diversos processos de ocupação de terra na periferia das cidades do país, impulsionando a organização autogestionária, a formação política e comunitária de lideranças, bem como a criação de movimentos populares de bairros, favelas e conjuntos habitacionais. Mais recentemente, eclodiram no centro das capitais e de diversas cidades, movimentos de ocupação de prédios vazios e/ou sem uso social (BUONFIGLIO, 2007).

Num percurso de mais de um século, entre a constituição da primeira favela brasileira e seu reconhecimento oficial como território legal, muitas violações ao direito à moradia, e, portanto, ao direito humano ocorreram e têm ocorrido no país, sob os mais variados discursos ideológicos: higienista, ambientalista, protecionista, de gestão empresarial.

Nas últimas décadas, constata-se explicitamente a ideologia da cidade- mercadoria, reduzida a um objeto de luxo à venda pela gestão empresarial (VAINER, 2000)42. Esse discurso ideológico ganha nova roupagem, dissimulando os impactos

sociais dos megaeventos que inauguram cidades de exceção (VAINER, 2013) ancoradas aos interesses empresariais que comandam a limpeza da cidade pobre, para dar lugar a investimentos lucrativos, como grandes obras viárias e novos estádios de futebol, às vésperas da Copa do Mundo de 2014.

Assim, as cidades de exceção têm sede no Brasil onde se consagra a ausência do direito à cidade e direito à moradia, e cujo mote são os conflitos fundiários urbanos que, via de regra, são responsáveis pelo despejo de milhares de famílias, quando não de comunidades inteiras dos locais onde residem. Sob as mais variadas justificativas técnicas e políticas, como: comunidades em áreas de risco, áreas de proteção ambiental, áreas prioritárias para projetos de reestruturação de um bairro ou projetos de

42

Cidade-mercadoria: a cidade reduzida a uma forma passiva, a um objeto (de luxo) à venda a partir da disponibilização de determinados atributos específicos de infraestrutura ou simbólicos que são valorizados pelo capital transnacional num grande mercado de cidades competitivas entre si.

infraestrutura, os despejos, remoções ou reintegrações de posse revelam a disputa pela posse e propriedade da terra.

As formas de manifestação do conflito fundiário urbano se dirigem aos locais notabilizados por precariedade e informalidade (na posse), e onde residem famílias que nunca tiveram um título de propriedade que atestasse que o imóvel ocupado é seu. Cumpre salientar que os despejos movidos pelo Poder Público, com ou sem a ocorrência de truculência policial, não deixam de se configurar como situações de violência estatal, no mais das vezes contra comunidades pobres (MÜLLER, 2014).

Do ponto de vista sociológico, o autor chama a atenção para a criminalização em “um insistente processo de desqualificação das pessoas e comunidades que são vítimas desses conflitos” e que, em última instância, são “consideradas culpadas por seu próprio drama”. Isso leva a uma “invisibilidade proposital” desse que é um dos problemas sociais mais graves no Brasil, com flagrante violação de direitos humanos (MÜLLER, 2014, p. 178). De Pinheirinho, em São José dos Campos (SP), à Vila Autódromo, no Rio de Janeiro, repete-se a negação cotidiana do direito de morar, de viver e de ocupar para grande parte da população pobre do Brasil.

Como assinalado anteriormente, a segurança jurídica da posse é uma das condições para a adequação da moradia. E, afinal, o direito de ocupar um lugar no espaço e nele permanecer, está abrigado pelo direito à moradia e, nesse sentido, o senso de pertencimento é um relevante aspecto imaterial da habitação (OSÓRIO, 2014; SARLET, 2014).

Do ponto de vista jurídico, convém ressaltar que o direito à moradia é um direito autônomo isto é, independe e se distingue do direito de (e à) propriedade. Muito embora, sob certas circunstâncias e “disposição constitucional expressa”, o direito à moradia assuma “a condição de pressuposto para a aquisição do domínio” no caso do usucapião especial urbano e rural, podendo atuar ainda como “elemento indicativo da aplicação da função social da propriedade”. Sua imbricação com o direito a uma vida digna implica que, em diversas situações, o direito à moradia “ocupe uma posição preferencial em relação ao direito de propriedade ou mesmo outros direitos” (SARLET, 2014, p. 270). O autor situa o importante debate gerado em nível jurídico sobre as limitações da propriedade, sua tutela constitucional e sobre sua função para além daquela meramente patrimonial.

Tampouco o reconhecimento do direito à moradia como direito humano internacional trouxe o fim de despejos forçados que continuam a ocorrer em todos os lugares do mundo. No âmbito do direito internacional, criaram-se as “Relatorias” pelo Direito Humano à Moradia Adequada, com uma rede internacional que denuncia, acompanha e procura soluções para pôr fim aos despejos forçados e garantir o direito à moradia (RODRIGUES, 2007b).

Para a ex-Relatora Especial da ONU para o Direito à Moradia Adequada, Raquel Rolnik (2014), o acesso à terra é uma fronteira na discussão dos direitos econômicos e sociais e não há uma formulação clara sobre o direito à terra no âmbito dos direitos humanos. Durante seu mandato43, a autora testemunhou a ameaça do acesso à terra

em diversos países. Ela aponta a contradição existente entre o valor de uso (da casa) e o valor de troca (da propriedade privada):

as contradições que existem entre uma multiplicidade de formas de acesso à terra, praticadas especialmente por comunidades com menos recursos econômicos, e a transformação da propriedade privada (comprada e vendida, escriturada no cartório e nas diversas formas de registro que existem) num padrão universal, numa regra única de acesso à terra, capaz de se transformar numa mercadoria transacionada no mundo. (ROLNIK, 2014, p. 29).

Como D. Bensaïd (2008, p. 67) proclamou em seu corolário da globalização, trata-se do “direito profano à existência” sobre o “direito sagrado à propriedade”. Possuindo a propriedade privada da terra, inclusive, características de “absolutismo, exclusividade e perpetuidade” que “cria um poder de monopólio tanto mais ilegítimo quanto o incremento da renda fundiária resulta fundamentalmente de investimentos coletivos” (SOUSA SANTOS, 1995, p. 69).

A Relatoria pelo Direito Humano à Moradia Adequada apenas tem constatado in loco “a base fundamental das violações do direito à moradia” capaz de “engendrar as situações mais extremas” por todo o mundo (ROLNIK, 2014, p. 29). Nesse sentido, a ex-relatora aponta que os despejos e remoções forçadas constituem 98% das denúncias de violações recebidas.

É dessa perspectiva que o direito à moradia deve ser compreendido como direito de defesa, isto é, “a moradia como bem jurídico fundamental, deve ser protegida contra

toda e qualquer sorte de ingerências indevidas”. Essa função defensiva tem por “objeto imediato a resistência a uma intervenção” e se dirige inclusive ao Estado: “O Estado bem como particulares tem o dever jurídico de respeitar e não afetar a moradia das pessoas”, ao mesmo tempo em que “exige-se dele uma atuação positiva, de prestação fática (material) ou normativa”(SARLET, 2014, p. 274-275). Portanto, o direito à moradia possui uma dupla dimensão: positiva e negativa:

Na sua condição de direito de defesa, o direito à moradia tem por objeto em primeira linha a sua não afetação por parte do Estado, ao passo que não sua condição de direito a prestações, o direito à moradia terá por objeto a criação e estruturação de órgãos, a edição de normas que estabeleçam procedimentos de tutela e promoção dos direitos, o fornecimento de bens e serviços ou outras ações comissivas. (SARLET, 2014, p. 276).

A habitação figura como um direito social e coletivo expresso na bandeira do direito à moradia, e tal como os demais direitos humanos, sua implantação e universalização não são um processo dado, mas em construção, com um longo caminho de luta já percorrido e ainda por percorrer.

Ainda que a habitação como direito “encontre substância legal em diversos textos internacionais de direitos humanos e tenha sido ratificado e reafirmado por meio de diversos instrumentos declaratórios e de orientação de políticas” (OSÓRIO, 2014, p. 41), ainda é um direito distante, lesionado ou ausente, reclamado em grande parte do mundo.

O sentido da luta social pelo direito à moradia no território onde é negado, de fato, é uma dimensão crucial, paralela e simultânea à importância da construção e reconhecimento do direito à moradia pelos sistemas jurídicos internacionais. O direito à moradia corre o risco de se tornar um direito social vago se depender tão somente de instrumentos urbanísticos, técnicos ou textos legais. Afinal, “mais importante do que apregoar, no papel, é atingir os obstáculos que impedem o acesso a esses direitos” já que “nada garante aquilo que é resultado da correlação de forças, especialmente em uma sociedade patrimonialista, onde a propriedade privada da terra tem tal importância. Estamos no terreno da política e não da técnica” (MARICATO, 2002, p. 184-185).

A necessidade de habitação está colocada no horizonte da vida cotidiana, tencionando o campo do direito, porque não atendido em uma sociedade capitalista em que a necessidade básica e social sempre se repõe.