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Para a compreensão da produção da política, a teoria precisa rearticular os agentes cada vez que os aciona, uma vez que não estão soltos num espaço etéreo, como entidades abstratas vagando no universo da teorização, eles se imbricam num espaço-tempo preciso.

A produção da política se desenrola no interior de uma dimensão denominada esfera pública, definida como uma arena de lutas onde se estabelecem “conflitos em

77Hirsch (2010, p. 111).

torno de diferentes alternativas possíveis” e onde é disputada “fundamentalmente, a visão de mundo que informa a ação sobre a realidade” (MELAZZO, 2010, p. 18).

Portanto, a arena de lutas de Poulantzas (1985) é retomada para dar forma à esfera pública como ambiente conflituoso da produção das políticas sociais.

A política pública78 apenas pode ocorrer no seio da esfera pública quando os interesses privados divergentes da arena de lutas e as “linhas de ação particulares” convergem em decisões e ações públicas que se institucionalizam. Assim, só se justificaria o uso desta expressão “política pública”, quando se aproxima dos interesses de uma coletividade, extrapolando os limites de proveitos particularistas ou mesmo individuais, na medida em que deve ser expressão de um debate público, aberto à participação de interesses contraditórios dos interessados diretos ou indiretos. Por sua vez, os atores devem possuir graus de legitimidade, conferidos pelo processo político para sua formulação e execução. (...) Ou seja, as políticas para que sejam efetivamente públicas, pressupõem a participação democrática como seu requisito fundamental e (...) pressupõem um entrelaçamento entre agentes sociais com sua própria visão de mundo, o que, por sua vez, decorre de sua posição na estrutura social, particularmente em suas dimensões econômicas e políticas. (MELAZZO, 2010, p. 13-14).

Da mesma maneira que, em um espaço concreto, a produção da política se desenrola num horizonte temporal preciso, determinado pelo período de atuação do governo que a produz, que a coordena, ou ainda, que a transforma (no caso de já haver se institucionalizado).

Enquanto “curso de ação (ou inação79) deliberada”, as políticas públicas

envolvem uma escolha consciente e com algum nível de racionalidade e objetividade:

(...) toda política pública se constitui como uma opção dentre um número finito de opções/possibilidades. Porém, como opção política, isto é, que envolve conflitos de interesses, seu desenho final é, na maioria dos casos, uma combinação e uma ponderação de diferentes opções, que passam pelo crivo da objetividade. (MELAZZO, 2010, p. 15).

78A política pública pode ser compreendida como uma vertente de pesquisa aplicada que nasce da ciência política na década de 1950, nos Estados Unidos, denominada “policy science”, que objetivava a orientação e o aprimoramento da racionalidade das decisões de organizações públicas e agregava conhecimento aos processos de formulação e implementação de políticas estatais. Esse campo de investigação apresenta uma natureza descritiva, com o predomínio de estudos empíricos ligados desde sua origem à razão instrumental (ARRETCHE, 2003; ANDREWS, 2005 e FREY, 2000; MELAZZO, 2010). 79A “não ação” se refere a “amplas áreas onde se percebem a atuação indireta ou mesmo a não atuação de governos, seja por incapacidade – técnica, administrativa ou política – de trazer as questões-problema ao centro dos processos de planejamento e gestão, seja, ainda, por não reconhecer relevância a essas mesmas questões ou, ainda, pela não execução de decisões já tomadas”(MELAZZO, 2010, p. 15).

Se a formulação da política estatal é um exercício de racionalidade80 com

capacidade de objetividade e seletividade na definição de interesses, tomando esses termos emprestados de C. Offe (1984), tal exercício – cercado de critérios, parâmetros, opções de inclusão e exclusão – não escapa à ação social concreta que é condicionada por mecanismos individuais e coletivos.

A objetividade empregada, ainda que com finalidade pragmática, não é neutra, porque depende do formulador da política. Como afirmou o autor, a deliberação depende de ponderações que já são filtros orientados por ideologias e visões estabelecidas de mundo:

Quanto aos formuladores de políticas é necessário ressaltar, ainda, que produzem suas propostas e caminhos para ação a partir de suas leituras do mundo sensível. Isto é, encontram-se necessariamente limitados por um conjunto restrito de possibilidades que se ajustam a suas origens, formações e perspectivas da realidade. Daí, em primeiro lugar, não haver qualquer possibilidade de neutralidade técnica em sua ação e, tão importante quanto, em segundo lugar, existirem constrangimentos de conhecimento sobre a realidade. (MELAZZO, 2010, p. 26).

Do mesmo modo, o formulador da política se situa dentro do Estado:

As condições de sua formulação foram historicamente delegadas ao Estado, também crivado de historicidade em suas condições concretas de atuação a cada momento; sua implementação não é neutra em relação aos objetos da política e não é imune às próprias condições da ação. (MELAZZO, 2010, p. 15).

Como adverte o autor, a política formulada não está imune às próprias condições da ação social (concernente ao individual e ao coletivo) e da ação institucional (concernente ao Estado). Questiona-se, portanto, quais as condições reais de ação e intervenção para a produção da política?

Essa questão vai ao encontro das teorias da ação social de Hirsch (2010). Para o autor, o Estado não pode ser encarado como sujeito ativo autônomo que dirige a sociedade, é antes uma engrenagem posta em movimento pela ação social. Isto é, o Estado é formado e gerido por indivíduos que agem socialmente (embora de forma

80 Retomar-se-á a “racionalidade política” de C. Offe (1984) em contraposição à “racionalidade burocrática" no capítulo 4.

deliberada, não sempre com toda a clareza ou consciência de seus efeitos). E essa engrenagem que resulta numa estrutura e na própria aparelhagem, como apontado no tópico 2.2, acaba por condicionar os indivíduos, resultando em uma ação constrangida, limitada.

A política pública envolve roteiros estratégicos para a intervenção sobre a realidade e apresenta um movimento interno desde sua concepção até sua implantação, a saber: concepção, formulação, exposição, apresentação, execução, a avaliação, correção (MELAZZO, 2010).

A produção da política se estrutura enquanto processo em movimento, incluindo sempre as dimensões técnica e política. Trata-se de um curso que envolve um acontecer rumo a uma direção traçada e que, contudo, não é tão rígido nem linear e apresenta desvios.

Como qualquer outra ação social, o “acontecer” é imprevisível, estando sujeito a eventos fortuitos, a alterações de rumo que obrigam, necessariamente, a retomada e reformulação de ações (MELAZZO, 2010).

A produção da política pública vai ao encontro do debate sobre o planejamento, já que conceber e formular a política são atividades intrínsecas à prática do planejar:

O desafio é então planejar de modo não racionalista e flexível, entendendo-se que a história é uma mistura complexa de determinação e indeterminação, de regras e de contingência, de níveis de condicionamento estrutural e de graus de liberdade para a ação individual, em que o esperável é frequentemente sabotado pelo inesperado o que torna qualquer planejamento algo ao mesmo tempo necessário e arriscado. (SOUZA, 2013, p. 51).

Nem a implantação da política pública é um processo apenas administrativo e burocrático de execução de tarefas previamente estabelecidas, nem a definição de metas e recursos cabe exclusivamente à etapa da formulação. Em realidade, os momentos não são estanques e em todos há a necessidade de planejamento, reorientação e revisão da estratégia. Todos os momentos da produção da política abarcam conflitos e poder como um “complexo jogo de oposições e alinhamentos, negociações e barganhas” (MELAZZO, 2010, p. 25).

Nos roteiros estratégicos da produção da política pública entremeados de caminhos eletivos/entrecruzados/entrepostos, não podem passar despercebidos os

momentos de exposição, apresentação, avaliação e correção da política (situados entre a concepção e a execução). Eles têm sido incorporados no bojo da política contemporânea, à luz do controle social, restaurando, em alguma medida, a legitimidade do Estado, ampliando a esfera pública e alargando a prática política, anteriormente monopólio exclusivamente estatal (influenciado por agentes capitalistas). As Audiências Públicas representam bem esses momentos de captura de linhas de ação particulares divergentes num esforço de buscar o consenso de agentes cujas ações sociais e relações de força são desiguais. Da mesma forma, os conselhos instituídos encarnam ambientes constituídos para fiscalização, avaliação e possível correção de rumos da política adotada, e alguns deles têm tentado conquistar um poder maior de deliberação de fato, para além de serem apenas conselhos consultivos.

A teoria social crítica deve problematizar tais momentos e ambientes porque, frequentemente, têm sido utilizados com o intuito de pactuar, validar e referendar um dado aspecto ou uma intervenção arbitrária, causados pela política pública em questão, sob a ideologia da participação popular. A presença de atores sociais diversos na esfera pública não implica necessariamente uma maior participação popular, nem o estabelecimento de um equilíbrio com iguais possibilidades de ação/intervenção. Como adverte Melazzo (2010), é preciso pensar em estratégias para a qualificação do que se entende por participação popular, sob o risco de cair na “pseudoparticipação” (SOUZA, 2013).

Na perspectiva exposta aqui, o Estado exibe uma face de articulador e a esfera pública, uma instância de articulação, na promoção de debates de uma agenda pública. Entretanto, não se pode esquecer que essa esfera pública mais ampla, porque permite explicitar o conflito, não torna o desenho político horizontal, mas tão somente ameniza o arranjo vertical da clássica mediação Estado/Sociedade no processo de produção de políticas sociais. Da mesma forma, se ocorrem a influência de demandas da sociedade civil e a influência do poder do mercado e, em última instância, se é possível concluir que os agentes do mercado e da sociedade civil produzem política, esta não é livre nem espontânea, mas mediatizada e filtrada pela ação do Poder Público. Assim, é o Estado, materializado em aparelhos heterogêneos e corporificado na ação social de gestores públicos reais, que ratifica, sanciona e chancela as políticas sociais.

Recapitulando, a ação social dos indivíduos não é livre, mas atrelada a determinados agentes, situada em posições estruturais e condicionada a determinados contextos. Como os indivíduos-agentes são investidos de ideologias e visões de mundo, linhas de ações em várias direções serão acionadas e disputadas concomitantemente. Vale lembrar que a própria ação social se altera na medida em que se alteram as correlações de força.

A política implantada será sempre definida por complexas relações de força e, como resultado final, são diferentes estratégias e distintas políticas públicas sociais adotadas perante as massas populares e aos problemas sociais. Uma vez alcançado o nível da institucionalização, a política é inscrita na aparelhagem de Estado, tornando-se uma política social a ser transformada/reelaborada/mantida por governos sucessores. De fato, na política pública “nada se cria, nada se destrói, tudo se transforma”, como salienta Bonduki (2014, p. 302).

O conceito de política pública nos auxilia na explicação de aspectos relevantes da produção da política estatal social e não deve ser incorporado de forma acrítica, nem ser compreendido como atividade exclusivamente técnica ou neutra, reduzindo-o simplesmente a um programa de ação governamental (MELAZZO, 2010).

A produção da política possui um tempo-espaço preciso que não se restringe ao espaço estatal, mas se forma em uma esfera pública (arena de lutas cujas disputas e conflitos são inerentes aos diversos agentes sociais) e, em um tempo determinado, por um período de atuação com um ou mais governos (que a produzem, a ratificam e a coordenam). Da mesma forma, a produção da política é um processo em movimento que pode ser capturada por alguns momentos-chave, que são também momentos críticos plenos de conflito.