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Na definição de mercadoria – a principal categoria de análise em O Capital – Marx atribui sua utilidade à satisfação das necessidades humanas:

A mercadoria é, antes de mais nada, um objeto externo, uma coisa que, por suas propriedades, satisfaz necessidades humanas, seja qual for a natureza, a origem delas, provenham do estômago ou da fantasia. Não importa a maneira como a coisa satisfaz a necessidade humana, se diretamente, como meio de subsistência, objeto de consumo, ou indiretamente como meio de produção. (MARX, 1971, p. 41-42).

Dessa forma, a satisfação da necessidade é uma condição sine qua nonpara qualquer mercadoria (HELLER, 1986, p.21).

Para além de sua utilidade, como objeto de necessidade, a mercadoria se torna valor de troca. Toda e qualquer mercadoria se realiza, pois, nessa dupla condição em si, como objeto, valor de uso, e como valor de troca: “adquire uma dupla existência, ao

28 O subsídio federal foi dividido por faixas de renda: para as famílias de até R$ 1.600,00 a renda familiar (faixa 1) há subsídio integral; para as famílias acima dessa faixa de renda familiar, o subsídio é menor, mas ainda sim garantido: até R$3.100,00 a renda familiar (faixa 2) e até R$ 5.000,00 (faixa 3).

lado de sua existência natural adquire uma existência puramente econômica” (MARX, 2011, p. 135)29.

Enquadramos a habitação como mercadoria, nessa síntese contraditória do valor de uso e valor de troca. Como mercadoria, imediatamente atende à e satisfaz a necessidade básica e elementar como subsistência do habitante da cidade que precisa de um teto para reproduzir sua própria condição humana. Contudo, mesmo aqui, se processa essa dupla existência: esse bem imóvel, financiado ou adquirido, comprado, herdado, autoconstruído ou ocupado, pode ainda servir como valor de troca, circulando no mercado imobiliário. O exercício de abstração em Marx se realiza, de fato, na cabeça do trabalhador ou de qualquer indivíduo que, morando em uma cidade, torne-se possuidor da mercadoria habitação30. Assim é que se pode compreender que, mesmo

para aquele indivíduo para quem a habitação é uma mercadoria de difícil acesso e que dela necessite como valor de uso, recorra à prática de mercado, despojando-a e alienando-a por um determinado período para trocá-la por dinheiro31.

Mas, de que forma essa mercadoria imóvel, fixa e circunscrita circula? É uma mercadoria que não pode circular no sentido físico, e não é posta em circulação como valor de uso (exceto quando troca de mãos por indivíduos que dela necessitam para morar), mas, tão somente, como valor de troca para aquele que as compra, para alugá- las ou utilizá-las como edificações para a produção. Torna-se capital fixo circulante para o negócio da construção: “O valor de uso imóvel, como casa, é assim a forma mais palpável do capital fixo. No entanto, ele pode circular no mesmo sentido em que a propriedade imóvel de modo geral – como título” (MARX, 2011, p. 990). Há uma longa discussão acerca da propriedade (privada) fundiária que é tornada valor permutável a

29Citação na íntegra de Marx: “O processo, portanto, é simplesmente o seguinte: o produto devém mercadoria, i.e., simples momento da troca. A mercadoria é transformada em valor de troca. Para se equiparar a si mesma como valor de troca, a mercadoria é trocada por um signo que a representa como valor de troca enquanto tal. Como tal valor de troca simbolizado, a mercadoria pode então ser trocada em proporções determinadas por qualquer outra mercadoria” (MARX, 2011, p. 140).

30Citação na íntegra de Marx: “Pelo fato de que o produto devém mercadoria, e a mercadoria devém valor de troca, o produto adquire primeiro na cabeça, uma dupla existência. Essa duplicação ideal acontece (e tem de acontecer) de modo que a mercadoria aparece duplicada na troca efetiva: de um lado, como produto natural, de outro, como valor de troca. Em outras palavras, seu valor de troca adquire uma existência material dela separada”(MARX, 2011, p. 135-140).

31 Essa questão é particularmente relevante para a gestão da política habitacional quando a moradia adquirida ou construída com subsídios estatais torna-se valor de troca, sendo repassada ou vendida pelo beneficiário do programa à outra pessoa ou família, ainda que para essa última tenha valor de uso.

partir de um longo processo histórico e arbitrário, que acompanha e fundamenta a própria história do capitalismo e que aqui não esgotaremos32.

Assim sendo, a propriedade (sob a forma de terreno edificado ou sem edificação) possui um valor permutável que transcende seu valor de uso e atua como parte do circuito do capital. E, aqui, ganha seu máximo de relevância como mercadoria essencial; objeto da geografia urbana. É dessa perspectiva que a habitação como mercadoria se situa também dentro do debate da economia política da urbanização33.

Se a realização do valor de uso se dá apenas e exclusivamente quando há o consumo diário da habitação, por outro lado, o valor de troca permeia e demarca distintas práticas de um mercado (imobiliário) que movimenta grandes somas de capital. Para adquiri-la, é preciso comprá-la ou alugá-la em um mercado (formal ou informal) para o qual existe uma infinidade de empresas imobiliárias. Esse amplo mercado imobiliário é liderado por diversos agentes sociais; proprietários rentistas que extraem a renda fundiária do imóvel; o capitalista fundiário que acumula propriedades urbanas, disponibilizando-as no mercado ou as estocando tão somente para a especulação (imobiliária), esperando alcançar um lucro maior; os corretores de imóveis que agenciam a venda e a compra; profissionais liberais, como engenheiros e arquitetos, agentes cartoriais, etc.

A especulação imobiliária promove a criação mercantil da escassez e resulta na valorização diferencial das diversas frações do território urbano pela seletividade dos lugares, uma vez que ocorre a implantação diferencial de serviços coletivos e infraestrutura, bem como a dotação diferenciada de recursos. Essa dinâmica não está isenta de expectativas, modismos e valores criados pelo marketing urbano (seja nas construções, seja nos terrenos) e contribui para influenciar e encarecer ainda mais a mercadoria terra e habitação, acentuando o problema do acesso a elas (SANTOS, 1993).

32Citação na íntegra de Marx: “A história da propriedade fundiária que mostrasse a transformação progressiva do senhor feudal em rentista fundiário, do arrendatário vitalício por herança, semi tributário e frequentemente privado de liberdade no moderno fazendeiro, e dos servos da gleba e do camponês sujeito à prestação de serviços no assalariado rural, seria de fato a história da formação do capital moderno” (MARX, 2011, p. 309).

33 Ver, em especial, os artigos do livro “A Produção Capitalista da Casa (e da Cidade) no Brasil Industrial”, organizado por E. Maricato (1992).

Aí reside outra peculiaridade central da mercadoria habitação, que é sua imobilidade e, por conseguinte, sua dependência intrínseca do mercado de terras. Não é uma mercadoria que pode ser produzida e consumida em qualquer lugar, em qualquer terreno, mas requer uma determinada porção de terra, de solo edificável (HARVEY, 1980; RODRIGUES, 1988 e VALENÇA, 2003).

Portanto, a habitação “não é uma mercadoria qualquer como ventilador ou sapatos”, mas, de natureza peculiar com características complexas e implicações profundas em sua forma de produção e consumo (VALENÇA, 2003, p. 166). O preço da mercadoria habitação é formado por seu alto valor agregado (decorrente de uma produção complexa que mobiliza grande número de mão de obra e agentes para todas as etapas pelas quais sua produção perpassa) e, por fim, pelo valor da terra sobre a qual a moradia se assenta, o que ajuda a compor, de modo drástico, uma realidade desigual nas cidades brasileiras: a exclusão e marginalização dos pobres das melhores áreas das cidades. Ermínia Maricato aponta justamente para essa equação negativa no país, na proporção do salário do trabalhador que não consegue acessar a moradia: “A proporção dos excluídos do mercado legal, em cada cidade, varia de acordo com o preço da moradia e os rendimentos das diversas camadas sociais” (MARICATO, 2002, p. 156). Da mesma forma, a dificuldade de acesso à terra e moradia resulta nos enormes sacrifícios e uma vida inteira de trabalho de grande parte da população brasileira, composta de trabalhadores de baixa renda (RODRIGUES, 2011a) que aspiram a esse “bem maior” e, por vezes, conseguem adquiri-lo (VALENÇA, 2003).

No elevado preço da mercadoria habitação estão embutidos outros aspectos: sua oferta é limitada no curto prazo, enquanto sua produção e comercialização dependem de condições estáveis, o que significa que se trata de um mercado sensível às mudanças econômicas e políticas bruscas; o tempo de produção é relativamente longo, o que a torna uma mercadoria de difícil execução (VALENÇA, 2003; HARVEY, 2005;RODRIGUES, 1988).

Por fim, não há mercadoria que se iguale à habitação no aspecto da alienação e exterioridade para o trabalhador que a produz34. Em outras palavras, o pedreiro, mestre

27 “Na sociedade, no entanto, a relação do produtor com o produto, tão logo este esteja acabado, é uma relação exterior, e o retorno do objeto ao sujeito depende de suas relações com os outros indivíduos. Não se apodera dele imediatamente. Tampouco a imediata apropriação do produto é a finalidade do produtor quando produz em sociedade. Entre o produtor e os produtos se interpõe a distribuição, que determina,

de obras e demais trabalhadores da construção civil não se apoderam do objeto de seu trabalho cotidiano; a habitação é para outrem. De fato, entre a produção (que é apropriada de forma privada por outros) e seu posterior consumo, ou melhor, entre a necessidade básica de morar e a realização dessa necessidade satisfeita vai uma grande distância que é já a distribuição dentro da divisão social do trabalho, que alija e aparta o trabalhador dos frutos de seu trabalho. Já a autoconstrução popular da moradia, sem engenheiro nem arquiteto, habitação como valor predominante de uso, necessidade básica, social e urgente reflete a realidade brasileira.

Pode-se mesmo concluir que, da síntese contraditória entre a habitação como necessidade social básica e a habitação como mercadoria cara, resulta a combinação tão difundida no Brasil da autoconstrução da moradia: o lote precário, irregular e periférico.

Assim, a habitação como mercadoria estabelece um nexo intrínseco com a cidade como mercado35.