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Henrique segundo Rodrigo: uir bonus, iustus, strenuus, timens Deum

Capítulo 4 – Narrativas do período condal (séc XI-XII)

4.1. O conde Henrique nas obras de Lucas de Tuy e Rodrigo Jiménez de Rada

4.1.2. Henrique segundo Rodrigo: uir bonus, iustus, strenuus, timens Deum

Como se disse, Rodrigo Jiménez de Rada opta por passar uma imagem distinta daquela que Lucas compusera sobre o conde Henrique. A maior parte da informação que Rodrigo inclui na sua obra sobre Henrique é, ainda assim, proveniente do texto do

tudense. E, comparativamente com o relato de Lucas, a personagem do conde

portucalense é referida menos vezes no texto de Rodrigo o que, pelo menos em parte, deve relacionar-se com o facto de que o prelado toledano encurta ainda mais o reinado de

304 CM, IV, 75, p. 312. 305 DrH, VII, V, p. 226.

Urraca na sua obra do que havia feito Lucas, sendo esse um período em que o conde assume grande protagonismo. As referências que Rodrigo faz ao conde são sempre ainda no reinado de Afonso VI, aliás. Ainda assim, Rodrigo inclui muito mais informação do que havia feito Lucas, algo que é recorrente em vários temas que ambos os prelados tratam.

O conde Henrique é apenas mencionado em dois capítulos da obra do toledano, um deles relativo à genealogia da casa real portuguesa. A outra menção, que surge antes no texto, é apenas na qualidade de esposo de Teresa, filha de Afonso VI, sendo uma passagem em tudo semelhante à que escrevera Lucas:

(…) et exe adem Semena Muninis genuit aliam filiam que Tharasia dicta fuit, quam duxit comes Henricus ex partibus Bisontinis congermanus Raymundi comitis patris imperatoris, ex qua suscepit idem Henricus Aldefonsum, qui fuit postea rex Portugalie306.

Nesta passagem, o conde Henrique surge apenas como o esposo a quem Afonso VI deu a mão de sua filha, Teresa, bem como o pai do primeiro rei de Portugal. Não é, portanto, uma passagem que transmita muita informação. Para além daquela que Lucas já referira, Rodrigo acrescenta apenas dois dados biográficos relativamente importantes: o conde seria oriundo de Besançon e irmão do conde Raimundo, casado com a meia-irmã de Teresa e futura rainha de Leão e Castela, Urraca.

Quanto a essas duas informações, cabe referir que é conhecido suficientemente bem o percurso de ambos e as suas origens. Henrique e Raimundo não seriam irmãos, mas antes aparentados apenas por via de matrimónio entre as suas famílias, uma vez que a irmã de Raimundo teria casado com o irmão de Henrique307. Para além disso, a referência a Henrique como vindo de Besançon deve ser entendida como uma referência à proveniência borgonhesa do marido de Teresa, uma vez que Besançon era uma das cidades principais do ducado da Borgonha308.

A segunda passagem que se refere ao conde Henrique, embora não tendo o próprio como tema principal, aporta mais algumas informações, uma vez que Rodrigo

306 DrH, VI, XX, p. 202.

307 Uma síntese da ascendência familiar de Henrique e de Raimundo, bem como das ligações das suas casas

às casas peninsulares pode ver-se em AMARAL, Luís Carlos; BARROCA, Mário Jorge – A condessa-

rainha: Teresa, p. 13-51.

Jiménez de Rada caracteriza a sua personalidade e refere algumas acções que levou a cabo enquanto conde portucalense:

Verum comes Henrricus, de quo diximus quod Aldefonsus Tharasiam filiam ei dederat in uxorem, cum esset uir bonus, iustus, strenuus, timens Deum, cepit aliquantulum rebellare; non tamen subtraxit hominium toto tempore uite sue, set a finibus Portugalie eiecit, prout potuit, Agarenos, sibi iam specialem uendicans principatum. Hucusque etenim cum gente sua iuxta mandatum ad exercitum et ad curiam ueniebat, set benignitas, inmo negligencia Aldefonsi, tanquam consanguineo et affini improuide defferebat. Ipse uero Henrricus Viseo et Lameco et Portugali sedes restituit cathedrales, et a Toletano primate fuerunt earum episcopi consecrati. Conimbrie etiam eius tempore fuit Burdinus, de quo diximus, primus episcopus consecratus. Bracara etiam, que uariis uastationibus adhuc diruta permanebat, uigili studio restaurauit et per Bernardum Toletanum primatem fuit dignitati pristine restituta; in ea enim sanctum Giraldum Toletanum cantorem, de quo diximus, in archiepiscopum consecrauit. Comes autem Henrricus ad peticionem uxoris sue ciuitates singulis episcopis donationis titulo assignauit, preter Conimbriam, que apud eos tunc temporis ut urbis regia habebatur. Hic Henrricus genuit ex Tharasia Aldefonsum, qui mortuo patre successit in principatu et a principio dux Portugalie dicebatur309.

Esta passagem, como se pode ver, está repleta de informação sobre o conde Henrique. Rodrigo começa desde logo por adjectivar a sua personalidade, referindo-se- lhe como uir bonus, iustus, strenuus, timens Deum. Para além da referência à strenuitas, que é um topos algo comum em Rodrigo, as referências à bondade, ao sentido de justiça e à religiosidade do conde são relativamente distintivas, embora sirvam no texto apenas como uma espécie de advertência com que Rodrigo introduz um ponto menos positivo. E esse ponto é a actuação do magnate portucalense sob moldes de grande autonomia.

Escreve então Rodrigo que Henrique teria começado a actuar por sua conta, atacando os muçulmanos a sul e reivindicando o principado portucalense para si. Embora o toledano faça questão de acrescentar que Henrique nunca atraiçoou Afonso VI e sempre se dirigiu a este quando convocado, a ideia que deixa passar é a de um monarca

ligeiramente negligente ao ponto do seu genro conseguir actuar de forma cada vez mais autónoma no condado. E, quanto a Henrique, de alguém que actua conscientemente no sentido de engrandecer o seu território e reafirmar o seu poder sobre o mesmo. No fundo, Rodrigo descreve aqui uma relação tipicamente feudal, tendo o vassalo que acorrer às convocatórias do seu soberano, mas não deixando nunca de procurar, dentro do seu próprio domínio, a actuação mais independente que lhe seja possível. Nada menos seria de esperar de alguém proveniente de uma das casas ducais mais importantes do reino francês.

Um outro aspecto interessante desta passagem prende-se com a afirmação de que Henrique teria restaurado as sés de Viseu, Porto e Lamego, bem como reconstruído Braga. Em todas estas acções, Rodrigo faz questão de referir Bernardo, arcebispo de Toledo (1085-1124/25), que seria o braço eclesiástico do reino e, por isso, do condado, e cuja autoridade Henrique respeitava – seguindo o relato do toledano. Aliás, o texto passa até a ideia de uma estreita colaboração entre ambos, porquanto a restauração de dioceses e a nomeação e consagração de bispos para as mesmas nunca poderiam ser acções levadas a cabo apenas e só pelo conde. Ao fazer isto, Rodrigo está mais uma vez a afirmar a primazia toledana ao nível peninsular, sobretudo em territórios que Braga disputava como seus sufragâneos – Lamego e Viseu, mas também Coimbra – e na própria diocese bracarense, uma vez que neste excerto S. Geraldo (1097/1099-1108) é consagrado pelo próprio Bernardo, em Braga.

Em relação a esta abordagem de Rodrigo à acção eclesiástica de Henrique, é preciso fazer notar alguns aspectos. Primeiramente, e seguindo a ordem do texto, Henrique é colocado a restabelecer as sés de Viseu, Lamego e Porto, tendo Bernardo de Toledo consagrado os respectivos bispos. Nesta parte, Rodrigo altera os dados, ao que tudo indica de forma propositada, uma vez que veicula informações erradas ou parcialmente falsas que têm o condão de enaltecer a posição da sua arquidiocese e do seu antecessor na mesma, Bernardo.

A diocese do Porto foi, de facto, provida de bispo entre 1112-1114, quando Hugo (1113-1136) se torna no primeiro prelado da diocese restaurada310. Já as dioceses de Lamego e Viseu311 apenas receberiam bispo decorrida que era a década de 40 desse século XII, na sequência da conquista de Lisboa em 1147, e pela acção de Afonso Henriques, em colaboração com o enérgico arcebispo de Braga, João Peculiar (1138-1175)312.

Quanto ao caso portuense, é ainda importante referir que, tendo sido a diocese restaurada em 1112 – isto é, no ano em que Henrique viria a morrer – não é segura a posição do conde relativamente à escolha de Hugo. Se, por um lado, se pode ver na escolha do prelado franco, vindo de Compostela, uma reaproximação entre Urraca e o conde portucalense, no contexto dos confrontos entre esta e o rei aragonês313, por outro, não deixa de ser verdade que Henrique teria algumas dificuldades em aceitar a colocação de um tão próximo colaborador de Santiago de Compostela na diocese do Porto, tendo em conta os esforços que desenvolvera para recuperar a dignidade de Braga314 e a

oposição que a esta movia o prelado compostelano. Mais ainda, esta nomeação colocaria o Porto fora da órbita de Braga – como veio a suceder –, pondo assim em causa os esforços

310 Existem alguns trabalhos que se referem a este processo. Veja-se, por todos, AMARAL, Luís Carlos – A restauração da diocese do Porto…. Alguns contributos também em MARQUES, José – As dioceses portuguesas até 1150; AMARAL, Luís Carlos; BARROCA, Mário Jorge – A condessa-rainha: Teresa, p.

285-287; e SILVA, Maria João Oliveira e – Scriptores et notatores…, p. 7-11.

311 Existiu uma restauração de Lamego e Viseu, ainda em 1071, por ocasião da nomeação de Pedro para a

cátedra bracarense, também ela restaurada. Todavia, à morte do primeiro bispo de Lamego após a restauração, tanto esta diocese como a de Viseu foram colocadas sob a governação do bispo de Coimbra para assim colmatar os poucos rendimentos que essa diocese de fronteira apresentava. Só após a definitiva conquista de Lisboa, em 1147, seriam Viseu e Lamego providas de bispo próprio. Sobre esta questão veja- se MARQUES, José – A Igreja no tempo de D. Afonso Henriques…, p. 27-70 (especialmente, p. 30-33) e a respectiva bibliografia elencada.

312 Para uma análise referente às restaurações de Lamego, Viseu e, sobretudo, Lisboa, bem como as

possíveis implicações que essas restaurações teriam nas relações Braga-Compostela, veja-se MARQUES, Maria Alegria Fernandes – A restauração das dioceses...

313 É essa a argumentação de Bernard F. Reilly: “In April and May of 1112, when Urraca was in Galicia

organizing support for a counteroffensive against Alfonso of Aragón and working out a temporary alliance with Count Henry of Portugal, the canons Muño Alfónsez and Hugh of Santiago de Compostela were elected to the sees of Mondoñedo in Galicia and Oporto in Portugal, respectively (…). But there can be no doubt that the assent of Urraca and of Count Henry had to be secured to such an arrangement.” – REILLY, Bernard – The Kingdom of León-Castile under Queen Urraca..., p. 229-230.

314 Uma síntese do processo da restauração dos direitos metropolíticos de Braga e do envolvimento do

conde Henrique pode consultar-se em AMARAL, Luís Carlos; BARROCA, Mário Jorge – A condessa-

rainha: Teresa, p. 127-150. Sobre a arquidiocese de Braga no período em que governa o condado

portucalense Henrique, consulte-se, de uma forma mais desenvolvida, AMARAL, Luís Carlos – Formação

conjuntos de Henrique e S. Geraldo para fazer coincidir a estrutura eclesiástica com a dimensão geopolítica do condado315.

O próprio envolvimento do conde na escolha é questionável, uma vez que todos estes acontecimentos sucedem no mês em que o borgonhês viria a falecer, Abril. Logo, é possível que a escolha de Hugo já não tenha sequer passado pelas mãos de Henrique316. O que se depreende da escolha de Hugo – tenha ou não a anuência do conde (ou posteriormente, da condessa Teresa) – é que se tratou de um fortalecimento da posição de Diego Gelmírez (1100-1140), bispo de Santiago de Compostela, e também da rainha Urraca317, no espaço do condado portucalense.

Por fim, ainda relativamente à restauração destas dioceses, Rodrigo menciona o papel de Bernardo de Toledo como tendo consagrado os bispos de Porto, Viseu e Lamego. Se quanto a Viseu e Lamego não existia sequer um bispo para consagrar, cabe também aqui referir que o bispo Hugo do Porto foi consagrado, juntamente com Munio, bispo de Mondonhedo, por Maurício, arcebispo de Braga (1109-1118), metropolita de ambos, nas proximidades de Pontevedra, em Março de 1113318.

Ainda antes de mencionar a actuação de Henrique relativamente a Braga, Rodrigo refere a consagração de Maurício ‘Burdino’ como bispo de Coimbra (1098-1109), designando-o como o “primeiro bispo de Coimbra”. Neste ponto, basta apenas lembrar que antes de Maurício tinha já existido um bispo de origens francófonas no comando

315 Luís Carlos Amaral confere bastante relevo ao facto de ter existido “uma articulação muito estreita, e,

em certos momentos, uma quase completa identificação, entre os interesses, as estratégias, os objectivos e as ambições dos prelados bracarenses e os das várias chefias e mais destacados magnates portucalenses” (p. 356). Para além disso, refere ainda que a instalação “dos condes portucalenses garantiu à diocese um apoio do qual nunca desfrutara até aí, proporcionou-lhe também outros benefícios que não demoraram muito a manifestar-se, quer no engrandecimento do senhorio, quer no reforço do poder eclesiástico e senhorial dos arcebispos” (p. 356). Veja-se a análise que leva a cabo deste período em AMARAL, Luís Carlos – Formação e desenvolvimento…, p. 355-417.

316 Assim o indica Luís Carlos Amaral, ao referir que a escolha de Hugo teria sido levada a cabo

“seguramente após o desaparecimento do conde D. Henrique” – AMARAL, Luís Carlos – A restauração

da diocese do Porto…, p. 44.

317 Bernard F. Reilly coloca a tónica no fortalecimento da posição de Urraca que a nomeação de Hugo

representaria: “So much did the queen hold the upper hand that two canons of Santiago, Muño and Hugo, were elected to the sees of Mondoñedo and Oporto at that time” – REILLY, Bernard – The Kingdom of

León-Castile under Queen Urraca..., p. 80.

espiritual de Coimbra, nomeadamente Crescónio (1088-1098), isto depois da morte do bispo moçárabe, Paterno (1080-1088)319.

Quanto à referência que Rodrigo faz à restauração da diocese de Braga e o papel que nesse processo desempenhou Henrique, a questão é distinta. Rodrigo é conciso na informação que fornece no que diz respeito a Braga. Vale a pena recuperar as suas palavras:

Bracara etiam, que uariis uastationibus adhuc diruta permanebat, uigili studio restaurauit et per Bernardum Toletanum primatem fuit dignitati pristine restituta; in ea enim sanctum Giraldum Toletanum cantorem, de quo diximus, in archiepiscopum consecrauit320.

Nesta passagem, Rodrigo começa por referir que Braga permanecia “destruída após sucessivos ataques”321 à época da governação de Henrique, e que fora este, em

conjunto com Bernardo de Toledo, que devolvera a sé bracarense “à sua primitiva dignidade”322, consagrando nela S. Geraldo. A referência aos sucessivos ataques pode ser

entendida ora como uma relativamente longínqua recordação dos ataques muçulmanos, sobretudo os liderados por Almançor (978-1002), ora como uma quase tão longínqua referência às incursões normandas que infligiram graves danos em todo o Noroeste peninsular, ainda no início do século XI.

Todavia, o que realmente importa salientar desta passagem é o papel que Rodrigo confere a Henrique – e a Bernardo de Toledo – como restaurador de Braga. Neste ponto, Rodrigo parece esquecer – ou omitir – por completo a verdadeira data da restauração de Braga, 1071, e o seu primeiro bispo enquanto sé restaurada, Pedro (1071-1091)323. Este facto torna-se mais relevante quando se considera a data da restauração de Toledo, ou seja, quando se nota que esta cidade apenas fora conquistada aos muçulmanos em 1085 e que, portanto, vários anos antes de receber de novo a presença de um prelado, já Braga tinha um episcopado relativamente longo (Pedro desempenhava essas funções há 14 anos

319 MARQUES, José – As dioceses portuguesas até 1150, p. 207. Este excerto é analisado no ponto 4.2. 320 DrH, VII, V, p. 226.

321 “(...) que uariis uastationibus adhuc diruta permanebat” – DrH, VII, V, p. 226. 322 “(...) primatem fuit dignitati pristine restituta” – DrH, VII, V, p. 226.

323 Sobre a restauração de Braga e a actuação de Pedro consulte-se, por todos, COSTA, Avelino de Jesus

da – O bispo D. Pedro... Um contributo mais recente para o governo deste prelado em AMARAL, Luís Carlos – Formação e desenvolvimento…, p. 213-354.

quando a cidade do Tejo é tomada por Afonso VI). De uma forma subtil, ao mencionar Bernardo como restaurador da dignidade de Braga, Rodrigo encobria assim a antecedência de que Braga gozava quanto à sua restauração, mesmo que o percurso de Pedro tenha acabado por levar à sua deposição e à vacância da sé bracarense.

Esta leitura, no entanto, é mitigada pelas palavras que o toledano escolhe empregar no texto. Com efeito, Rodrigo faz alusão “à sua [da sé de Braga] primitiva dignidade”, parecendo com isto referir-se então não ao momento em que Braga foi restaurada como diocese – 1071 –, mas antes ao momento em que lhe viu serem reconhecidos os direitos metropolíticos de que usufruíra outrora, sendo assim ‘verdadeiramente’ restaurada. Deste modo, Rodrigo fazia referência a um processo que ocorreu, de facto, sob os auspícios e direcção sobretudo de Bernardo de Toledo e de Afonso VI, tendo S. Geraldo sido, inclusivamente, consagrado em Sahagún pelo arcebispo toledano324.

De qualquer maneira, a forma como Rodrigo opta por registar essas informações, ignorando a data de 1071 e fazendo recair a importância do momento sobre Bernardo, é ilustrativa dos meios pelos quais o toledano vai compondo a sua narrativa imbuída de uma perspectiva que favorece as suas pretensões.

A última informação digna de registo que se encontra nesta passagem sobre Henrique prende-se com a entrega do senhorio das cidades sedes de bispado mencionadas aos respectivos bispos, algo que o conde teria feito a pedido de Teresa (que, acrescenta Rodrigo de forma significativa, tinha tratamento de rainha por ser filha de rei)325. Ora, esta é outra questão em que é necessário recorrer a dados históricos para avalizar a veracidade das palavras de Rodrigo.

Das dioceses enumeradas nesta passagem – Porto, Braga, Lamego, Viseu e Coimbra – já se fez alusão ao facto de Lamego e Viseu não terem sido providas de bispos até ao reinado de Afonso Henriques, pelo que não poderia ter ocorrido semelhante doação

324 Para além da bibliografia citada na nota anterior, consulte-se ainda, no que toca à dupla questão da

escolha de Geraldo e à restauração dos direitos metropolíticos de Braga, AMARAL, Luís Carlos – A vinda

de S. Geraldo…, p. 157-192. Ver ainda, para o enquadramento desse processo no âmbito peninsular,

AMARAL, Luís Carlos – As sedes de Braga…, p. 17-44.

325 “Comes autem Henrricus ad peticionem uxoris sue ciuitates singulis episcopis donationis titulo

das cidades aos respectivos bispos. Restam, assim, Porto, Braga e Coimbra. Acresce que Rodrigo refere no texto que essas doações não incluíram a cidade de Coimbra, que apud

eos tunc temporis ut urbis regia habebatur, isto é, “que aquelas gentes consideravam

então como cidade régia”.

Deve colocar-se de parte a identificação que Rodrigo faz de Coimbra como cidade

régia durante o governo do conde Henrique, uma vez que esta afirmação se deve entender

como uma extrapolação por parte do toledano daquela que foi uma realidade apenas com Afonso Henriques e após 1131. Logo, retirando Coimbra, restam apenas as cidades de Braga e Porto como aquelas que poderiam ter sido entregues aos respectivos prelados. Para o caso do Porto, é conhecida a doação do burgo que faz Teresa a Hugo, já no ano de 1120, num contexto de tentativa de equilíbrio de poderes entre Teresa e Urraca que, como muitas outras questões neste período, extravasou o político e implicou o eclesiástico326.

Todavia, como se percebe, o conde já nada poderia ter a ver com tal doação, uma vez que, como já se referiu, falecera em 1112.

Quanto a Braga, existe também a doação do seu senhorio ao bispo, no caso a Maurício ‘Burdino’, e esta foi, de facto, levada a cabo pelo conde Henrique que, juntamente com a sua esposa, a condessa Teresa, em 1112, doou o referido couto à sé de Braga327. De todas estas referências, parece que apenas a doação de Braga encontra nas palavras de Rodrigo e nos factos históricos alguma harmonia.

A análise desta passagem – que se alongou devido não só às muitas informações que Rodrigo transmite, mas também, e sobretudo, devido à necessidade de as contextualizar e apresentar a versão historicamente apurada – permite retirar alguns pontos de grande interesse quanto às motivações do prelado toledano ao escrever sobre o conde Henrique.

Primeiramente, deve salientar-se que, embora apenas refira o conde Henrique por duas vezes (ao contrário de Lucas, que o faz em quatro ocasiões), Rodrigo aporta muito mais informação sobre a figura em si do que o bispo tudense. Isto porque o tudense coloca

326 Sobre a doação de Teresa veja-se SILVA, Maria João Oliveira e – Scriptores et notatores…, p. 9-10.

Veja-se ainda, sobre essa mesma doação e a posterior outorga do foral do Porto por parte de Hugo, COELHO, Maria Helena da Cruz – O foral do Porto…

327 Sobre a doação do couto por parte dos condes ao arcebispo bracarense veja-se AMARAL, Luís Carlos