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O assassinato de Sancho I de Leão (956-958 e 960-966)

Capítulo 3 – Narrativas anteriores ao século XI

3.2. Os condados de Portucale e Coimbra (séc X-XI) em Lucas e Rodrigo

3.2.1. O assassinato de Sancho I de Leão (956-958 e 960-966)

É no contexto do reinado de Sancho I de Leão que Lucas de Tuy se refere a um conde da região ocidental, de seu nome Gonçalo, que acabaria por desempenhar um papel de relevo nas intrigas políticas em torno da coroa. Devido às poucas palavras que Lucas dedica ao conde, bem como à forma vaga como define os seus domínios, existe a possibilidade de se tratar tanto de Gonçalo Moniz, conde de Coimbra (928-981)242, como

239 São exemplos dessas dificuldades os episódios analisados de seguida, bem como outros em que Lucas

se refere a revoltas na Galiza. A título de exemplo, veja-se CM, IV, 34-36, 262-266.

240 José Mattoso refere-se a ambas as questões na síntese que faz deste período para a “História de Portugal”

que coordena – MATTOSO, José – Portugal no reino asturiano-leonês, p. 531-543.O autor não deixa de mencionar, por várias vezes, os problemas internos que os monarcas leoneses tinham que resolver na região da Galiza, nem o facto de que “as forças de fronteira desempenhavam frequentemente um papel fundamental na decisão de conflitos internos, nomeadamente os que punham em causa a autoridade do soberano” (p. 536).

241 Para uma leitura geral sobre o período em que o território português se encontra sob domínio do reino

asturo-leonês (até Fernando I, o Magno, 1037-1065) veja-se SOUSA, José Alexandre Ribeiro de – «In

finibus Gallecie» ... Veja-se ainda o já clássico trabalho de José Mattoso referente a estas famílias condais:

MATTOSO, José – As famílias condais portucalenses dos séculos X e XI.

242Algumas notas biográficas em MATTOSO, José – As famílias condais portucalenses dos séculos X e XI;

MATTOSO, José – Ricos-Homens, Infanções e Cavaleiros…, p. 22-23. Veja-se ainda BRANCO, Maria João Violante – Antes da independência de Portugal, p. 26-38, especialmente, p. 26-30; e SOUSA, José Alexandre Ribeiro de – O posicionamento da aristocracia galega, p. 56-57.

de Gonçalo Mendes, conde de Portucale (950-997)243. Ambos os magnates da zona mais ocidental do reino de Leão desempenharam papéis centrais nas questões políticas do reino, mas a sua identificação no relato de Lucas não é segura, pelo que este ponto obriga a uma abordagem um pouco distinta e, sobretudo, ainda mais cautelosa.

Primeiramente, existe a necessidade de contextualizar a actuação destes dois condes. A monarquia leonesa ao longo do século X encontrou-se, não raras vezes, numa posição conflituosa devido à oposição entre vários candidatos ao trono, uma vez que a sucessão pelo filho primogénito estava longe de se encontrar instituída. Por vezes, o monarca optava até por dividir os seus domínios caso tivesse vários filhos, sendo que, em várias ocasiões, o trono acabou por ser disputado entre irmãos após o desaparecimento do rei. Esta realidade potenciava as posições aristocráticas, nomeadamente através da constituição de alianças com determinados candidatos ao trono (as mais das vezes, sancionadas através do matrimónio entre familiares desses magnates e os pretendentes), ou até na constituição de verdadeiros grupos comprometidos com a defesa de um candidato, dando origem a revoltas regionais244.

Com efeito, a turbulência existente após a morte de Ramiro II (930-951) e a ascensão ao trono do seu filho, Ordonho III (951-956), deve ser entendida neste contexto e viria a envolver também os magnates das regiões mais ocidentais. Gonçalo Moniz parece afastar-se um pouco da corte durante o reinado de Ordonho III, sendo que volta a emergir como um claro apoiante do irmão do monarca, Sancho I (956-958 e 960-966), que lhe sucede no trono. Neste tabuleiro de alianças, cabe também referir que os condes de Portucale se encontravam, pelo menos momentaneamente, no campo oposto, uma vez que Gonçalo Mendes teria sido apoiante de Ordonho III e opositor de Sancho I245.

É neste contexto específico que o relato de Lucas circula quando se refere ao conde Gonçalo. Ao todo, são apenas duas as vezes em que o conde é mencionado pelo tudense,

243 MATTOSO, José – Ricos-Homens, Infanções e Cavaleiros…, p. 20; SOUSA, José Alexandre Ribeiro

de – O posicionamento da aristocracia galega..., p. 55-56.

244 Sobre este processo, veja-se o trabalho de SOUSA, José Alexandre Ribeiro de – «In finibus Gallecie» …,

p. 89-136.

245 Para uma leitura sobre o contexto em que se inserem os problemas sucessórios que se seguem à morte

de Ramiro II, bem como para uma análise sobre o que os documentos revelam do posicionamento de Gonçalo Moniz e Gonçalo Mendes nestas questões, veja-se SOUSA, José Alexandre Ribeiro de – O

sendo que numa delas se desenvolve o episódio do assassinato de Sancho I para, na segunda ocasião, que surge pouco depois, apenas se aludir novamente ao conde e ao episódio que acabara de ser relatado, quase como um aparte e ligá-lo, assim, a uma outra personagem.

A primeira passagem insere-se no relato do reinado de Sancho I, estando Lucas a descrever a intenção do monarca de trasladar o corpo de S. Paio para Leão. Nesse contexto, enviou mensageiros para procurar persuadir os líderes muçulmanos e, conseguido o seu consentimento, saiu à frente de um exército de Leão, passando a Galiza e aproveitando para submeter a região246. Ao saber disto, o conde Gonçalo, que governava para lá do rio Douro – qui dux era ultra flumen illud247 – reuniu o seu exército e foi ao encontro do monarca leonês.

Depois, acrescenta Lucas, Gonçalo teria enviado mensageiros ao rei, prometendo pagar o tributo pelo controlo do condado que governava em oposição ao próprio monarca – dato iuramento, ut solueret tributum de ipsa terra, quam tenebat callide aduersus

regem248. Por fim, Lucas encerra o relato deste episódio afirmando que o conde Gonçalo teria então pensado num estratagema, enviando ao monarca uma maçã envenenada e causado assim a morte deste, três dias depois.

Torna-se necessário, desde logo, analisar esta passagem. As fontes – nomeadamente a Historia Silense e a Crónica Sampiro – referem-se a este episódio nos mesmos termos em que Lucas o descreve249. Esse facto levou a que vários autores250 concordassem em

246 Esta indicação que Lucas dá de que o rei teria submetido a Galiza deve ser entendida face ao período de

enormes disputas internas no reino de Leão, nas quais os magnates galegos tinham um enorme papel, a que já se fez menção. Nesta passagem, Lucas estaria a referir-se, entre outros, a Gonçalo Mendes, conde portucalense que se opunha a Sancho I. Veja-se, por exemplo, FURTADO, Rodrigo – Cuando Portugal

era reino de León…. Para um enquadramento da actuação das elites galaico-portucalenses no processo

plurissecular de autonomia veja-se MATTOSO José – Ricos-Homens, Infanções e Cavaleiros…, p. 15-25, especialmente 17-19.

247 CM, IV, 34, 264. 248 CM, IV, 34, 264.

249 É, aliás, à Cronica Sampiro que recorre José Mattoso quando analisa o episódio: MATTOSO, José – Portugal no reino asturiano-leonês, p. 538. Quanto à Historia Silense, veja-se a passagem que recolhe no

seu trabalho SOUSA, José Alexandre Ribeiro de – O posicionamento da aristocracia galega..., p. 70, que demonstra muita proximidade ao que redigiu posteriormente Lucas de Tuy.

250 Por exemplo BRANCO, Maria João – Antes da independência de Portugal, p. 26-30; MATTOSO, José

– Portugal no reino asturiano-leonês, p. 538. Rodrigo Furtado menciona apenas que teria sido um dos dois condes de nome Gonçalo a envenenar o monarca – FURTADO, Rodrigo – Cuando Portugal era reino de

atribuir o ónus do assassinato de Sancho I ao conde Gonçalo de Coimbra, uma vez que é isso que parecem afirmar os diversos textos, ao referirem-se ao conde que governava para lá do Douro. Todavia, José Alexandre Sousa argumenta que teria sido antes o conde Gonçalo Mendes, de Portucale, a cometer esse crime, baseando-se, por exemplo, no percurso conhecido desses dois magnates251, mas também na documentação posterior. Essa documentação apresenta o conde Gonçalo Moniz próximo da corte régia, assinando documentos de Ramiro III, filho de Sancho I, e, por seu turno, o conde Gonçalo Mendes afastado dos centros políticos e circunscrevendo-se à região de Guimarães.

Logo, parece existir neste ponto uma identificação errónea (a acreditar nos argumentos aduzidos por José Alexandre Sousa) do conde conimbricense como o responsável pelo assassinato. O facto de as fontes não serem totalmente claras, referindo- se apenas a um Gondissaluus252, que governava terras junto ao Douro, torna difícil a

identificação correcta da personagem em causa, uma vez que ambos os condes que governavam Portucale e Coimbra neste período se chamavam Gonçalo e detinham propriedades junto ao rio Douro253. Ainda assim, como já foi referido, o percurso de ambos no que toca às suas opções políticas e à proximidade à corte leva a crer que o mais provável perpetrador seria o conde portucalense. Um outro factor que pode indicar no mesmo sentido é a tal revolta a que Lucas se refere e que o rei Sancho I teria aplacado. Essa revolta é claramente identificada para as zonas a norte do Douro254, na Galiza sobretudo, e não parece existir qualquer dificuldade do monarca com o conde conimbricense.

251 Como já foi referido, Gonçalo Moniz teria sido apoiante de Sancho I e Gonçalo Mendes opositor deste

monarca e apoiante do seu antecessor e meio-irmão, Ordonho III (e à morte deste, do seu filho, o futuro Ordonho IV, que reinou entre 958 e 960). Já Paulo Merêa defendia que o conde coimbrão seria apoiante de Sancho I e o portucalense seu opositor. Consulte-se MERÊA, Paulo – De “Portucale” (civitas)…, p. 22- 23.

252 CM, IV, 34, 264.

253 A referência que Lucas faz ao conde em questão como governando terras para lá do Douro parece indicar

terras a sul (levando em conta que esse é o sentido mais comum nos textos desta época e também pelo facto de Lucas escrever em Leão e, portanto, para lá do Douro a partir dessa cidade ser, à partida, no sentido sul). No entanto, José Alexandre Sousa refere que Sancho I teria vindo a Coimbra, existindo um documento que o coloca na cidade, tendo depois iniciado o percurso de volta a Leão e aproveitando para se encontrar com o conde portucalense. Tendo em conta essa leitura, a localização altera-se e para lá do rio Douro pode perfeitamente referir-se ao conde portucalense e às terras que se encontram a norte do rio.

Seja como for, o interesse deste episódio não se esgota na identificação da personagem, como se verá. Por agora, importa referir qual o segundo momento em que Lucas se refere ao conde Gonçalo.

Esse segundo momento é apenas uma referência breve, embora necessite também de ser contextualizada. Lucas relata a morte de Ramiro III (966-984), filho de Sancho I, e refere que Vermudo II (984-999) teria reclamado o trono, sendo o mais próximo na sucessão (era primo de Ramiro). Criticando o rei, Lucas dá o exemplo de algumas calúnias lançadas contra o bispo de Iria-Compostela, Ataúlfo255, a que o rei teria dado ouvidos. Então, o monarca colocara o bispo em frente a um touro selvagem, que em vez de atacar se prostrou aos joelhos do prelado. Lucas termina o episódio relatando a morte do referido bispo, envolto numa aura de santidade, e criticando o rei. Afirma, no entanto, no fim da passagem, que Vermudo II fora levado a acreditar nas calúnias porque Ataúlfo era filho do conde Gonçalo, qui regi Sancio dederat uenenum in pomo256.

As duas passagens são muito interessantes para analisar, não só quanto ao papel do conde conimbricense/portucalense, mas também quanto aos métodos utilizados por Lucas para encadear o relato e construir uma narrativa partindo de elementos distintos que agrega numa só passagem. Quanto ao papel do conde, é interessante verificar, por um lado, que Lucas opta por não encobrir as dificuldades que os monarcas leoneses tinham com os magnates galaico-portucalenses, algo que se pode ler em várias passagens na obra, sobretudo para este período. Por outro lado, Lucas coloca claramente o conde Gonçalo como um opositor ao monarca e, mais ainda, recorre à tradição de que Sancho I tinha sido assassinado, referindo a responsabilidade do magnate.

Ou seja, Lucas passa claramente uma imagem negativa da aristocracia enquanto grupo insubordinado, algo que vai ao encontro do sentimento anti-aristocrático que alguns historiadores identificam no prelado257. Como refere Georges Martin, Lucas procura

255 A identificação não é clara, uma vez que a tradição coloca este episódio do milagre de Ataúlfo no período

em que teria sido bispo de Iria-Compostela Ataúlfo II, entre 855-867. Como se pode ver, Lucas recolhe o episódio e coloca-o não no reinado de Ordonho II, mas no de Vermudo II, filho de Ordonho III. A Historia

Compostelana, por exemplo, coloca o pontificado de Ataúlfo II no reinado de Afonso III, morrendo o bispo

em 866 (embora vários autores tenham, entretanto, verificado que o bispo não poderia ter morrido antes de 867) – HC, I, II, 2, 70-72.

256 CM, IV, 36, 266.

afirmar várias posições ideológicas, sendo uma delas, no “plan social, le comportement tyrannique de l'aristocratie et de ses chefs”258.

A outra passagem, embora não ofereça mais nenhum dado significativo relativamente ao conde Gonçalo – exceptuando o facto de referir que o bispo de Iria-Compostela seria seu filho –, é, no entanto, exemplificativa dos métodos empregues no género historiográfico no século XIII e, concretamente, por Lucas. Isto porque, como foi já referido, este episódio do milagre do touro levado a cabo por Ataúlfo, bispo de Iria- Compostela, está ferido de anacronismo no relato do tudense. Lucas terá recolhido o episódio em alguma obra que consultou, sendo que, por exemplo, este é já descrito no

Chronicon Iriense e na Crónica Sampiro.

Porém, Lucas não coloca o episódio na cronologia correcta, mas antes faz avançar um século para inseri-lo no reinado de Vermudo II e, mais significativamente, para colocar o bispo como filho do conde Gonçalo, que havia envenenado Sancho I de Leão, sendo por esse motivo que Vermudo II agiu de forma errada e deu credibilidade aos caluniadores. Neste ponto, pode observar-se a tal ortodoxia política que refere Enrique Jerez Cabrero259, que leva Lucas a atenuar as críticas a Vermudo II, colocando as culpas no comportamento prejudicial da aristocracia, sendo que, neste caso, ao hipotético comportamento negativo de um magnate se junta a exemplar conduta do bispo e a ‘desculpabilização’ do monarca. A questão torna-se ainda mais complexa porquanto no reinado de Vermudo II ocorreu, de facto, um episódio semelhante: Paio Rodrigues (977-985), filho do conde Rodrigo Velasques260, foi colocado na sé de Compostela, tendo posteriormente sido expulso pelo rei e substituído por Pedro de Mezonzo. Este episódio vem descrito na Historia

Compostelana261, que, ao que tudo indica, Lucas não terá consultado262. Curiosamente, também o episódio do bispo Ataúlfo e do touro selvagem vem narrado na Historia

Compostelana263. Aliás, o único elemento que Lucas inclui no seu relato que não encontra

258 MARTIN, Georges – Les juges de Castille..., p. 230. 259 Consulte-se o capítulo 1.

260 Para as ligações familiares deste conde da região de Ourense e a sua filiação, veja-se SOUSA, José

Alexandre Ribeiro de – O posicionamento da aristocracia galega..., p. 54-55.

261 HC, I, II, 7-8, p. 74-75.

262 Segundo Emma Falque, nem Lucas nem Rodrigo utilizaram a Historia Compostelana. Veja-se,

FALQUE, Emma – La Historia Compostelana en el panorama…, p. 472-476.

semelhante na HC é precisamente a filiação do bispo compostelano numa casa condal da região de ‘Portugal’.

A disposição que Lucas confere a estes dois episódios, misturando-os e criando um novo em que recolhe elementos de ambos, é não só exemplificativa dos pequenos detalhes em que se vislumbra verdadeiramente a importância do seu trabalho ‘compilatório’, mas também – e sobretudo – prefigura um exemplo de como o passado estava ao seu dispor para ser alterado. E, neste caso, a alteração levou a uma descrição muito negativa do conde Gonçalo, a uma ligação sua a um bispo de Compostela e à menorização do papel de Vermudo II nos conflitos entre as facções aristocráticas galaico-portucalenses264.