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Mendo Gonçalves II, nutritor de Afonso V

Capítulo 3 – Narrativas anteriores ao século XI

3.2. Os condados de Portucale e Coimbra (séc X-XI) em Lucas e Rodrigo

3.2.2. Mendo Gonçalves II, nutritor de Afonso V

Mendo Gonçalves II (999-1008) foi conde de Portucale, descendente do conde de Tui, Afonso Betote, família que esteve desde muito cedo ligada à descendência de Vímara Peres e com a qual haveria de ‘partilhar’ o domínio do condado ao longo do século X265.

Embora se trate de uma figura de grande relevo na viragem do século X para o XI no contexto do reino leonês, acaba por não ter idêntico protagonismo na obra de Lucas, sendo que, por comparação com o texto sobre o conde Gonçalo, as informações que Lucas inclui são de menor relevo.

A figura de Mendo Gonçalves II é alvo de uma referência apenas no Chronicon

Mundi. Lucas inicia o relato do reinado de Afonso V (999-1028), tendo aludido no ponto

anterior à morte do seu pai, Vermudo II. Como Afonso V obteve o reino com apenas 5 anos, Lucas acrescenta a seguir que o monarca foi criado por Mendo Gonçalves, conde da Galiza, e a sua esposa: hic nutritus est a Melendo Gundissalui comite Gallecie et ab

eius uxore comitissa domina Maiore266. De seguida, Lucas enuncia ainda que o casal condal teria dado sua filha, Elvira, como esposa a Afonso V.

264 Este período do século X é particularmente complexo no que toca às disputas entre candidatos ao trono

leonês e ainda mais quanto às alianças levadas a cabo entre candidatos e aristocracias locais. Uma leitura geral dos conflitos sucessórios e do posicionamento da aristocracia galega encontra-se em SOUSA, José Alexandre Ribeiro de – O posicionamento da aristocracia galega...

265 MATTOSO José – Ricos-Homens, Infanções e Cavaleiros…, p. 20-21. 266 CM, IV, 42, p. 274.

Este episódio, curto é certo, importa sobretudo pela altura em que vem no relato do

tudense, confirmando uma tendência de um grande relevo conferido ao espaço galaico-

português dentro do reino leonês ao longo do século X267, tendência essa que passa para a obra de Lucas. Por outro lado, importa também referir a titulação que Lucas atribui a Mendo, ou seja, a de conde da Galiza, quando este exerceu funções como conde de Portucale268. Existe, da parte de Lucas, uma identificação dos territórios portucalenses com a Galiza, sendo que a fronteira a que Lucas confere relevo, neste período, é a que se materializa no rio Douro.

De facto, voltando um pouco atrás no relato do tudense, este refere-se ao Douro como separando as terras do conde Gonçalo Moniz, que governa Coimbra, das terras a norte, que o rei Sancho I teria submetido e que, subentende-se, estariam sob o domínio de outro magnate (no caso, Gonçalo Mendes, precisamente o pai do conde Mendo Gonçalves II). Embora esta passagem possa ser entendida como uma referência a um opositor (conde de Portucale) e a um apoiante (conde de Coimbra) de Sancho I – e daí a divisão que o rio Douro protagoniza –, por outro lado, também se pode ver esta passagem à luz da rivalidade que existiu ao longo do século X entre os dois condados que viriam a ser o núcleo do reino português269. E, por essa via, entender melhor a designação de Mendo Gonçalves II como conde da Galiza e a identificação da região portucalense com a Galiza, uma vez que Lucas estaria a incluir o prócere portucalense num grupo de magnates que se opôs ao reinado de Sancho I270.

Deste modo, ao que tudo indica, Lucas estaria também a interpretar uma realidade em que o controlo dos monarcas leoneses dos territórios entre o Douro e o Mondego seria apenas nominal, actuando os condes de Coimbra “sob moldes de quase independência,

267 É exemplo disso a união entre a família de Mendo Gonçalves II e a família real leonesa, mas também

muitos outros casamentos entre monarcas leoneses e famílias da região mais ocidental do reino, ou ainda cargos honoríficos e privilégios. Veja-se MATTOSO, José – Ricos-Homens, Infanções e Cavaleiros…, p. 18-19.

268 MATTOSO, José – Ricos-Homens, Infanções e Cavaleiros…, p. 19. 269 MATTOSO, José – Portugal no reino asturiano-leonês, p. 537.

270 Veja-se o já referido artigo de José Alexandre Sousa que analisa também as posições de Gonçalo Mendes

e, entre outros aristocratas galego-portucalenses, Rodrigo Vasques, definindo alguns grupos em torno dos candidatos ao trono: SOUSA, José Alexandre Ribeiro de – O posicionamento da aristocracia galega..., p. 49-70.

contra o rei de Leão”271, muitas vezes jogando com o poder dos líderes muçulmanos de

Córdova para “alcançarem um poder próprio, mais do que para defenderem os interesses do rei de Leão ou do califa de Córdova”272.

Uma última referência quanto a esta passagem prende-se com o nome que Lucas atribui à esposa de Mendo Gonçalves II – Maiore. Ao que tudo indica, o Chronicon Mundi é a única fonte do século XIII que se refere à condessa como Maior, uma vez que, quer na documentação, quer na cronística do século XII, esta é referida como Tutadomna.

Em relação ao conde Mendo Gonçalves II e à acção que este desenvolve na passagem – ou seja, a educação do jovem Afonso V –, não parece existir da parte de Lucas nenhum comentário ou indício de desaprovação desta tutela. Para além de a referir como um dado mais que inscreve na sua obra, Lucas apenas faz alusão ao matrimónio de Afonso V com Elvira, filha de Mendo Gonçalves II, e à descendência desse enlace – nomeadamente, Vermudo III (1028-1037) e Sancha de Leão (que viria a casar com D. Fernando I de Leão e Castela).

No seu conjunto, as referências no Chronicon Mundi aos condes das regiões de Portucale e Coimbra valem essencialmente como reflexo que são da importância do espaço mais ocidental no contexto do reino de Leão. Tanto os episódios em que Lucas culpabiliza um conde da região de entre o Minho e o Mondego pela morte de um monarca, como o episódio em que Lucas descreve as ligações estreitas entre a família real e o conde portucalense, são exemplificativos do relevo desse espaço e dos seus principais actores.

Contudo, os episódios que aludem ao conde que assassina Sancho I merecem uma referência isolada, porquanto refletem, para além dessa importância e da propensão anti- aristocrática de Lucas, tendências autonomistas muito enraizadas, visíveis, por exemplo, na forma como Lucas descreve a actuação do conde que governava as terras em oposição ao próprio monarca. Mesmo que se tome essa indicação como uma referência de Lucas à oposição que alguns magnates sempre moviam quando existia um novo soberano, não deixa de transparecer na obra do tudense, nesta passagem e noutras, essa tal autonomia dos espaços mais fronteiriços. Esta, potenciada, é certo, pelas dificuldades do reino leonês

271 MATTOSO, José – Ricos-Homens, Infanções e Cavaleiros…, p. 22. 272 MATTOSO, José – Ricos-Homens, Infanções e Cavaleiros…, p. 23.

em controlar e administrar de maneira efectiva todos os seus domínios, não deixa nunca de ser uma marca característica de espaços como Portucale, Coimbra e Castela mais a oriente, permitindo-lhes posteriormente desenvolver processos muito próprios e por vezes até contraditórios aos que se passavam nas zonas centrais do reino e até na Galiza, onde as elites estavam muito mais vinculadas à coroa e seus representantes.

Antes ainda de terminar a análise destes excertos, deve constatar-se que também Rodrigo incorpora estes elementos na sua narrativa. Embora, como se disse, conceda muito menos atenção do que Lucas ao período do reino asturo-leonês, o toledano não deixou de inscrever na sua obra a passagem sobre o reinado de Sancho I, o seu assassinato e, inclusivamente, o episódio em torno do bispo Ataúlfo273.

O essencial do relato é idêntico ao que havia narrado Lucas. Assim, a motivação de Sancho I para trazer as relíquias de S. Paio até Leão, a sua incursão pela Galiza para submeter alguns revoltosos e até a referência ao conde Gonçalo274 estão presentes no texto

do toledano. Até este ponto, o que Rodrigo parece fazer é pegar nas palavras de Lucas e de certa forma sintetizar a informação.

Quanto ao episódio do bispo Ataúlfo, também a maioria do que Rodrigo narra parece ser uma síntese do que havia escrito Lucas. Ainda assim, Rodrigo não identifica o bispo como sendo de Compostela – não faz qualquer menção à sede compostelana, algo que é um traço comum a grande parte da obra275. Também não se refere explicitamente a qual teria sido o crime cometido pelo bispo, mas identifica os acusadores – elementos estes que partilha com o relato de Lucas, ao contrário da Historia Compostelana, que identifica o crime mas não os acusadores276.

273 Estas passagens encontram-se nos capítulos X e XIII do livro V. Veja-se DrH, V, X-XIII, 158-161. Na

edição da tradução, p. 201-205.

274 Juan Fernández Valverde, na sua edição da versão traduzida da obra de Rodrigo Jiménez de Rada, coloca

em nota uma identificação do conde Gonçalo que, infelizmente, pouco esclarece, uma vez que se refere a Gonçalo apenas como “un conde gallego”. Essa é a informação que ambos os textos (de Lucas e Rodrigo) deixam entender também. Uma vez que ambos se referem às terras galegas como vindo até ao Douro (consequência, talvez, da identificação que fazem destas com a província romana da Galécia), este pode ser entendido como mais um dado a apontar para a identificação do conde com Gonçalo Mendes, de Portucale. Para a identificação de Juan Fernández Valverde, veja-se JIMÉNEZ DE RADA, Rodrigo – Historia de los

hechos de España, p. 201, nota 40.

275 Veja-se a nota 262 que indica o artigo de Emma Falque onde a autora tenta encontrar uma justificação

para o silêncio de Lucas e Rodrigo quanto a Compostela e a sua Historia.

Portanto, Rodrigo parece em tudo seguir Lucas neste excerto, reorganizando e reescrevendo não raras vezes o latim do tudense, mas mantendo os traços gerais que este havia querido exprimir na sua narrativa. O único elemento distintivo é que, quando menciona o facto do bispo Ataúlfo ser filho do conde Gonçalo, refere-se a este último como “aquele príncipe”277 que havia envenenado o rei Sancho I. Ainda assim, trata-se

apenas de um elemento lexical.

Ao que tudo indica, Rodrigo não procurou nesta passagem diminuir a carga negativa a que Lucas frequentemente associa a aristocracia, ao contrário, por exemplo, do que viria a fazer com a figura do conde Henrique, como se verá. Em parte, isso pode dever-se ao facto de este episódio apresentar um conde isolado a cometer o crime, sendo que normalmente Lucas opta por se referir ao grupo em si como sendo a causa de algo negativo. Para além disso, neste ponto Lucas não parece fazer nenhum tipo de julgamento geral, nem tão-pouco uma associação entre esse conde e a restante aristocracia, que no episódio, embora apareça revoltosa, acaba por ser submetida pelo monarca. Este facto poderia ter levado a que Rodrigo não sentisse tanto a necessidade de alterar um evento que, afinal, tinha acontecido três séculos antes e não era, de todo, de grande importância na narrativa, quer de um, quer de outro.