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Eis a herança do Marquês de Pombal: língua e escolarização na consolidação de uma língua imaginária (século XVIII)

1. ESTADO, ESCOLA, DOCÊNCIA E DOCENTES: (DES) NATURALIZANDO SENTIDOS.

1.1 De nativos a brasileiros: a educação como salvadora e redentora.

1.1.1 Historicizando sentidos.

1.1.1.3 Eis a herança do Marquês de Pombal: língua e escolarização na consolidação de uma língua imaginária (século XVIII)

Em 28 de junho de 1759, é promulgada a Reforma Pombalina que expulsa os jesuítas do Brasil após embates de cunho político e diplomático – que não cabe aqui aprofundarmos – e elege a língua como espaço estratégico de ação. Era de suma importância, de acordo com Orlandi (2013, p. 21) “a construção da unidade imaginária e da homogeneidade como pré-requisitos básicos para se ter a identidade de um país específico, com suas formas de governo e língua nacional”.

A língua geral embora difundida e utilizada em grande parte do território brasileiro ao longo dos séculos XVII e XVIII não se valida pela escrita é “uma oralidade que não se legitimará e que resiste à escolaridade” (ORLANDI, 2013, p.24). Mariani (2003, p.78) nos explica que “do ponto de vista da metrópole, para servir a Deus deve-se doutrinar, e isto pode ser feito em qualquer língua, mas para servir ao Rei é necessário ensinar a língua materna do Rei”. Institucionalizar ideias, nestas condições de produção, “significa torná-las oficiais pelas práticas sociais a elas condizentes, ou seja, estabelecendo o ensino de comportamentos e hábitos dos sujeitos para que se alcance a ideia de unidade nacional e a condição de a ela pertencer” (DI RENZO, 2014, p. 327).

A Reforma Pombalina no Brasil se deu em ritmo distinto da Metrópole, com várias etapas de implantação, demorando cerca de 30 anos para que tivesse início a partir da indicação de um Diretor Geral de Estudos para fiscalização das atividades de ensino da Colônia e para delimitar aqueles que poderiam ou não

lecionar. Em substituição à Companhia de Jesus, é criado o Diretório dos Índios que oficializou de modo impositivo o português como língua a ser falada, ensinada e escrita. Neste horizonte, não se fala mais em língua geral, ela “ou não existe aos olhos da metrópole, ou, se existe, precisa ser corrigida, melhorada, reformada de acordo com os moldes gramaticais portugueses” (MARIANI, 2003, p. 78).

Coube à Reforma Pombalina estatizar “o ensino ao constituir um sistema determinado e controlado pelo Estado, que pela primeira vez assumia diretamente a responsabilidade pela educação tornando-a laica embora a religião católica continuasse obrigatoriamente presente” (CARDOSO, 2008, p. 180). O ensino, que era financiado pela Igreja e seus fiéis, se torna incumbência da Coroa que cria um imposto denominado subsídio literário20 cujos fundos seriam destinados ao pagamento dos professores e manutenção das escolas públicas.

Os padres são substituídos por aqueles cujo ofício principal seria ensinar. As gramáticas produzidas pelos padres jesuítas são proibidas, sendo segundo Fávero (2000), pelo Novo Método de Gramática Latina de autoria dos padres oratorianos. A escolarização deixa de ter como objetivo principal a doutrinação pela fé e passa a ser guiada pelo ensino/imposição de uma língua: o português. Um meio utilizado neste processo de consolidação da língua portuguesa foi o sistema de aulas régias21, destinadas à formação da elite local. Ou seja, grande parte da população foi excluída do processo de escolarização formal.

O primeiro aspecto que nos chama a atenção é a denominação de aulas régias para categorizar o sistema de ensino público. O termo régio tem um caráter ambíguo, pois remete à figura do monarca marcando a presença do soberano nos assuntos referentes ao ensino. Ao mesmo tempo, liga-se ao imaginário de rompimento com a Igreja Católica ao demarcar que as aulas pertenciam ao Rei em contraposição ao ensino tradicionalmente ministrado pelos jesuítas.

As aulas régias eram aulas autônomas e isoladas, pertencentes ao ensino público oficial, sob a responsabilidade de professores concursados e pagos pela

20 Segundo Morais (2012) o subsídio literário foi criado em 1722 e vigorou tanto em Portugal e como

em suas Colônias. Tratava-se de um imposto sobre bebidas (vinho e aguardente) e carne fresca cujo destino seria o financiamento das escolas régias. Apesar do intuito, não fora uma iniciativa exitosa, sobretudo pela dificuldade de fiscalizar a comercialização dos produtos.

21Cada aula régia correspondia a uma escola destinada ao ensino de uma dada disciplina, com único

Coroa. O aluno poderia se matricular nas aulas que julgasse pertinente, não havendo um currículo obrigatório a ser seguido. A escolarização era dividida em duas etapas: Estudos Menores (ensino primário e secundário) e os Estudos Maiores (Ensino Superior) ambos voltados à formação da elite local. O ensino primário, caraterizado pelas escolas de ler e escrever, ensinava ao aluno as primeiras letras (ler, escrever e contar) e os que pudessem seguir com estudos deveriam cursar as aulas de humanidades (Gramática Latina, Língua Grega, Hebraico, Retórica e Poética).

Os professores responsáveis pelas aulas régias passaram a pertencer ao quadro de funcionários públicos, sendo designados para tal função através de concursos (CARDOSO, 2008). Ainda segundo Cardoso (op. cit), tinham que cumprir com uma série de compromissos tais como: financiar a sua escola (na maioria das vezes a residência do professor funcionava como ambiente de ensino); adquirir os materiais necessários às aulas; levar os alunos à missa no mínimo um domingo ao mês; promover educação cívica e arcar com as despesas referentes ao seu treinamento. Observamos aqui que a escolarização ainda não possui um local específico para o seu funcionamento como estamos acostumados atualmente. As atividades de ensino aprendizagem se misturam à vida particular do professor e ao ambiente domiciliar. Temos a migração de um sistema de ensino que se dava na Igreja para um modelo estatal - domiciliar. Apesar das aulas régias pertencerem e serem responsabilidade do Rei, a organização, a manutenção e condução das aulas ficava a cargo do professor. Ocorria ainda o atravessamento da Igreja e das práticas católicas na escolarização da população. A despeito da posta separação entre Igreja e Estado, no tocante aos assuntos do ensino, vemos a religião presente nas obrigações do mestre. O professor público era pago com subsídios da Coroa, todavia não deixava de prestar serviços à Igreja Católica, quando, por exemplo, tinha por obrigação de levar os alunos à missa aos domingos garantindo, assim, a frequência dos fiéis aos rituais religiosos.

O desempenho dos professores levava em conta o cumprimento das obrigações acima elencadas e observava a sua conduta pessoal, que era atestada pelo chefe de polícia, pelo pároco e pelos pais dos alunos. Estes sujeitos eram as principais fontes de informações da Coroa quanto ao trabalho do professor. Não havia preocupação quanto à formação inicial docente, aos saberes necessários ao

exercício do magistério, sobre quais métodos e processos de ensino aprendizagem seguir. O que define um bom professor, no Brasil Colônia, é o olhar do outro sobre os modos de ser agir e a forma como ele ocupa a posição professor na formação social. Ser docente, nestas condições de produção, é seguir um dado código moral social e estar alinhado aos preceitos da religião professada pelo Rei, ou seja, a católica.

De acordo com Cardoso (2008), o ordenado era pago ao professor em quarteis (3 parcelas dividas ao longo do ano) e o valor variava em função da localização da escola e das disciplinas ministradas. Os professores de locais com maior população e cidades de maior porte recebiam ordenados maiores. Vejamos a tabela 01.

Tabela 01: Disciplinas lecionadas x remuneração docente entre os séculos XVI e XVIII.

Disciplina ensinada Valor do

recebimento em quarteis

Professor de primeiras letras de localidade com poucos habitantes ou professor substituto

80$000 Professor de primeiras letras de localidades com maior

quantidade de habilitantes

150$000

Professor Filosofia 460$000

Fonte: Baseado em Cardoso (2008, p. 189)

Na tabela 01, observamos os valores pagos pela Coroa aos docentes de diferentes disciplinas. Apesar de todos exercerem a mesma profissão, o vencimento se dá considerando a quantidade de alunos atendidos e a disciplina lecionada. As cidades com menor número de habitantes e as zonas rurais pagavam os menores vencimentos. Não se fazia necessário, neste período, escolarizar aqueles (sobretudo negros e índios) que viviam nos cantos do país cuja atribuição seria trabalhar na lavoura, profissão que era aprendida pela criança no mundo doméstico, na convivência com os adultos. Já nas vilas e cidades do Brasil Colônia, havia a necessidade de mão de obra especializada (que dominasse os rudimentos

da língua, soubesse ler, escrever e contar) para ocupação de postos burocráticos e no comércio (cargos destinados aos brancos libertos) bem como uma minoria que ingressaria nos cursos superiores da Europa. Daí a necessidade de atrair bons professores para o meio urbano ofertando melhores ordenados quando comparados aos dos colegas que trabalhavam no meio rural.

Outra pista deixada pelos ordenados pagos aos docentes no Brasil Colônia é a valorização do professor que ministrava Filosofia (disciplina que preparava diretamente para os cursos de nível Superior na Europa) em contraposição ao professor de primeiras letras. A discrepância entre os ordenados é grande, podendo um docente de Filosofia receber até cinco vezes mais que um professor de primeiras letras. Indicativo de que se valorizava monetariamente muito mais ao docente que preparava para o ingresso nas Universidades (diga-se de passagem, ministrava aulas para uma minoria, composta pela elite) do que aqueles que se dedicavam ao ensino dos rudimentos. Ou seja, desde os primórdios da construção do sistema público de ensino brasileiro, o professor primário não é valorizado em seu ordenado, o que também traz a marca do descaso com este nível de escolarização destinado, naquele período, a população branca pobre masculina.

Abrimos parênteses aqui para deixarmos registrado que desde os primórdios do ensino público brasileiro havia insatisfação do docente quanto as suas condições de trabalho. De acordo com Cardoso (2008), os vencimentos eram alvo de críticas por parte dos profissionais do magistério devido à discrepância nos valores, pelo fato de não serem pagos ao mesmo tempo a todos os docentes e pelo atraso. “O pagamento atrasava muito, em certos casos até anos, trazendo muitas dificuldades aos professores, que, no entanto, persistiam no ofício” (CARDOSO, 2008, p. 189). Cabe salientar que a docência era uma das poucas profissões que ofertava os mesmos salários para homens e mulheres (atuantes apenas no ensino primário, sendo uma minoria), algo que era garantido por lei.

Uma forma de compensar os baixos ordenados pagos nos tempos de Brasil Colônia e os atrasos no repasse dessa verba foi à valorização do magistério socialmente. O alvará real de 1759 estabeleceu que os professores teriam

o privilégio de nobres, incorporados em direito comum, e especialmente no Código Título de professoribus et medicis. Isto significava passar da condição de plebeu à pessoa honrada, ou seja, ganhar um título de distinção social e política, que trazia

vantagens na ascensão social, além de garantir certos privilégios, como a isenção de determinados impostos, a possibilidade de ocupar postos destinados à nobreza, a exclusão de penas infames, ou ainda, o privilégio de não ir parar na prisão (CARDOSO, 2008, p. 188).

Numa sociedade em que os caminhos para ascensão social eram restritos, ser professor era um meio de obter distinção social e ter acesso à alguns privilégios restritos a uma minoria. Esta era uma vantagem, tendo em vista os baixos ordenados pagos, os atrasos no repasse das verbas e a constante vigilância da população sobre as ações do professor tanto dentro como fora de sala de aula.

A expulsão dos jesuítas não produziu rupturas significativas, pouco mudou a realidade educacional vivenciada e tampouco contribuiu para a universalização do ensino. De cara, vivenciamos a falta de condições materiais para substituir o legado jesuítico que perdurou por mais 200 anos. A grande maioria dos professores, conhecidos neste período como mestres no ofício, era leiga (não tínhamos por aqui instituições que preparavam docentes e esta questão não era objeto de preocupação) e muitos reproduziam a prática dos jesuítas22 mantendo sua obra pedagógica e seus métodos de ensino uma vez que a Igreja era quem detinham a tecnologia do ensinar. Definimos como tecnologia do ensinar o Ratio Studiorum, sistematização da pedagogia jesuítica em 467 regras com objetivo de unificar o procedimento pedagógico. Tais regras instruíam o jesuíta docente sobre a natureza, extensão e obrigação de seu cargo.

Permanece um sistema de ensino hierárquico (quanto aos saberes e ao tipo de escolarização ofertada) auxiliando na construção de lugares distintos. Havia aqueles (grande parcela da população) para quem apenas a instrução dentro da cultura oral e o que era proferido pelo pároco local eram suficientes (mulheres, negros, índios, população pobre). Outros (população branca liberta) receberiam instruções rudimentares abarcando, sobretudo o uso do português como língua nacional visando apagar e silenciar a língua geral. Esta parcela da população seria também a que serviria como mão de obra para as funções burocráticas e mercantis. Já a classe dominante, ou seja, a aristocracia rural composta pelos senhores (de terras, engenhos, escravos...) era formada para ocupar posições de comando,

muitos tendo sido educados na Europa. Percebemos assim uma hierarquização social tanto dos saberes como da escolarização ofertada à população demarcando quais os lugares deveriam ser ocupados pelos sujeitos de acordo com o tipo de saber ao qual tiveram acesso.

Existiu um grande descompasso entre o pretendido pelo governo monárquico e aquilo que as condições sociais e econômicas do período permitiram dentro de um modelo excludente e escravista. Apesar dos pesares, não podemos deixar de atribuir a Pombal o mérito da primeira experiência de ensino público promovida pelo Estado na história da educação brasileira. Embora existam críticas ao modelo proposto, foi o primeiro passo para que o ensino deixasse de pertencer a Igreja e passasse para a responsabilidade da Coroa, acompanhando o movimento de outros países europeus e seguindo a corrente Iluminista. No entanto, o casamento entre Igreja e Coroa, no tocante à educação, continuava vivo, com uma nova roupagem já que a Coroa era provedora da escolarização pública e a Igreja dos mestres e das metodologias de ensino mais comumente utilizadas.

Após a exposição sobre a escolarização decorrente da Reforma Pombalina, seguiremos nos enveredando em outro período importante para compreensão da formação social brasileira e da historicidade de nossa educação: o Império.

1.1.1.4 De Colônia à Capital do Império: a escolarização primária nos tempos