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Sem fé, sem lei, sem Rei: língua, escolarização e religião (trans)formando a terra em que se plantando tudo dá (séculos XVI e XVII).

1. ESTADO, ESCOLA, DOCÊNCIA E DOCENTES: (DES) NATURALIZANDO SENTIDOS.

1.1 De nativos a brasileiros: a educação como salvadora e redentora.

1.1.1 Historicizando sentidos.

1.1.1.2 Sem fé, sem lei, sem Rei: língua, escolarização e religião (trans)formando a terra em que se plantando tudo dá (séculos XVI e XVII).

Partimos do princípio de que, ao longo da história do Brasil, foi construído um imaginário de que a educação representaria a possibilidade de vencer a barbárie, civilizar e contribuir para o progresso da nação (SAVIANI, 2008; VIEIRA SILVA, 2015). Nossa história está ligada à memória da educação como a responsável pela revitalização do país, como se fosse a principal solução para os problemas socioeconômicos vivenciados em cada época.

Segundo Aranha (1989, 2006), no início da Colonização, a inserção do Brasil no chamado mundo ocidental civilizado envolvia: a colonização, a educação e a catequese intimamente articuladas entre si. Os europeus que deixavam sua terra natal e por aqui se estabeleciam, se deparavam com um ambiente distinto do que estavam acostumados. Inexistiam por aqui os valores europeus – tidos pelos colonizadores como modelares e essenciais para o pleno funcionamento social de uma civilização - a religião católica, a figura do rei e a administração jurídica.

O discurso sobre o índio, segundo Nunes (1994), era o impossível na formação ideológica europeia e acabava por assombrar incessantemente a cena discursiva que se construía nas terras brasileiras. Era preciso mudar os hábitos dos nativos, sedimentar consciências, instituir a visão do colonizador e suas ideias bem como levar as luzes onde supostamente prevaleciam as trevas. Neste sentido, Saviani (2008) nos fala que Dom João III se mostrava preocupado com a situação da Colônia brasileira e indicou uma solução para este problema. Para este monarca, mandar povoar as terras era um meio de converter os que aqui viviam na santa fé católica de modo que os gentios pudessem ser doutrinados e ensinados a ser civilizados. Ou seja, os índios deveriam “deixar os costumes, submeter-se às ordens e à tutela do colonizador, servir de mão-de-obra [...] suas qualidades morais

passam a ser o respeito, a submissão, a obediência, qualidades que os colocam diante das leis do colonizador” (NUNES, 1996, p.27). Este o primeiro projeto de escolarização posto em prática após o descobrimento do Brasil.

Tomé de Souza, primeiro governador geral, chegou ao Brasil acompanhado por jesuítas19 comandados pelo padre Manoel da Nóbrega em 1549. Seria este o princípio de uma longa história marcada por 210 anos de permanência da Companhia de Jesus nas terras brasileiras instituindo um verdadeiro monopólio. “São os jesuítas que, ao longo da história da formação da sociedade colonial, exercerão um papel influente na composição das políticas linguístico colonizadoras tecidas pelos reis portugueses e pelo Vaticano” (MARIANI, 2003, p. 76).

Mariani (op.cit) define o acordo firmado entre Igreja e Metrópole no século XVI durante a Contrarreforma como colonização linguística, ou seja, um projeto político linguístico de larga escala engendrado em torno da ideologia do déficit dos nativos. Nessas condições de produção, o índio não é ignorante apenas das letras e das ciências produzidas na Europa. Ele é o selvagem, o ateu, aquele cuja falta da cultura europeia é definida como ausência de fé e de bons costumes. Escolarizar neste caso significava adesão plena à cultura portuguesa: rígida, hierárquica e centrada na religião. Pode-se dizer que os “padres vestiram literalmente os índios, fazendo com que se envergonhassem de sua nudez, mas também, vestiram simbolicamente com outros valores que não eram os seus” (ARANHA, 1989, 2006, p. 120).

A fé supostamente foi capaz de dissolver parte das diferenças culturais, regionais e sociais de um povo que era colonizado. Podemos dizer que, neste período, a catequese equivale à escolarização e o nativo à posição sujeito aluno. O trabalho missionário, de cunho didático-religioso e permeado por preceitos católicos, ensinava os rudimentos da língua, os valores do colonizador e não propriamente a palavra escrita do humanista. Tínhamos assim um modelo de educação dual e hierárquico que investia na produção de discursos e leituras sobre viver na Colônia. Os índios precisavam ser doutrinados e ensinados sobre um mundo europeu que já estava pronto, angariando súditos ao Rei e adeptos ao catolicismo. Já os filhos dos colonos recebiam uma educação propedêutica

19 Cabe ressaltar que a única ordem religiosa que tinha mais independência, acesso direto ao Papa

vislumbrando o ingresso nas universidades europeias, à hegemonia cultural e política da Colônia. Construíam-se assim duas posições distintas: a do índio dominado (iletrado, bárbaro, incompleto, nativo, aquele que desempenharia o trabalho braçal a quem a catequese bastava) e a do branco dominante (letrado, colonizador, europeu, detentor do saber, trabalhador intelectual e que receberia formação humanística). “Esse era o lugar de onde devia falar e ser falado, para ser reconhecido e identificado por si mesmo e pelo outro” (VEIRA SILVA, 2015, p. 149). Ou seja, uma escolarização dual (uma para o índio e outra para o branco) em que os saberes eram hierarquizados e o acesso era permitido de acordo com a posição ocupada pelo sujeito na formação social. Salientamos, que neste período, as mulheres não tinham acesso à escolarização que se voltava aos homens.

A catequese, enquanto projeto educacional, fomentou a prática da linguagem no Brasil. Era preciso aprender a falar com/como o nativo para impulsionar a evangelização. Um caminho foi a criação e o uso de instrumentos linguísticos. Para Auroux (2014), os instrumentos linguísticos (dicionários e gramáticas, por exemplo) são saberes construídos com base na escrita que trabalham na gramatização, processo que conduz a descrever e a instrumentalizar uma língua na base duas tecnologias, que ainda hoje, são os pilares de nosso saber metalinguístico: a gramática e o dicionário (AUROUX, 2014, p.65) que acabam por afetar a língua e a sua constituição. Este processo produziu, no período em tela, um saber e conhecimentos metalinguísticos sobre a língua geral - produto da miscigenação entre o português e as línguas indígenas. Foram elaboradas gramáticas (citamos aqui a Arte da Gramática da Língua mais usada na costa do Brasil, escrita pelo Padre José de Anchieta e a Arte da Língua Brasília de autoria do Padre Luís Filgueira), vocabulários, catecismo, cartilhas e compêndios. Estes instrumentos linguísticos criaram uma prática linguístico - pedagógica movida no/pelo discurso religioso que significa o novo a partir da memória proveniente da formação discursiva europeia. De acordo com Vieira Silva (2002, p. 356) “instaurou um processo de significação determinado sobre o próprio mundo dos nativos, que direcionou a representação e a interpretação do discurso, que irá determinar a constituição de nosso discurso pedagógico”.

No final do século XVII, o Iluminismo ganha força em Portugal, tendo como uma de suas principais bandeiras, a criação e consolidação dos Estados Nacionais.

Há, assim, uma grande preocupação em se forjar uma identidade nacional, algo que passa pela institucionalização de uma língua oficial. Neste contexto, a proposta jesuítica não atendia mais aos anseios da Coroa Portuguesa já que educava prioritariamente para fé deixando em segundo plano à imposição do português como língua a ser falada. A conversão dos índios em católicos poderia se dar em qualquer língua, já a transformação do nativo em súdito só seria possível através do uso da língua do Rei. Nos deteremos no próximo tópico a esta questão.

1.1.1.3 Eis a herança do Marquês de Pombal: língua e escolarização na