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2 HISTÓRIA DE VIDA E PERCURSO FORMATIVO E PROFISSIONAL: A MOTIVAÇÃO

2.1 HEREDITARIEDADE, PRIMEIRAS IMPRESSÕES E LOCALIZAÇÕES NO MUNDO

As diversas defesas, teóricas e práticas, traçadas nesse trabalho de doutoramento me fizeram refletir sobre a necessidade de contar um pouco sobre a minha história. Ao realizar esse esforço de narrativa, defrontei-me com as seguintes questões: O que conheço da minha própria história? Quem sabe dela? O que sei é suficiente para uma narrativa? Quem deve contá-la?

Quais informações devo buscar? Quais são as causas do ocultamento de alguns acontecimentos?

As histórias são válidas somente se me encaixar em extremos de condições sociais e psicológicas?

Apresento, inicialmente, a minha árvore genealógica e afetiva (FIGURA 6). Esse exercício me fez refletir sobre como conhecia e ainda conheço muito pouco em relação a minha história familiar; que devo procurar saber mais a respeito dela, pois considero importante o reconhecimento social de nossas histórias de vida. Por outro lado, se essa história não é valorizada, devemos assumir, também, a responsabilidade de poder contá-la. Se não contamos a nossa própria história, o outro não o fará, principalmente, se pertencermos a estratos não dominantes desta sociedade. Apesar de um devido desconforto social, faço a seguinte pergunta:

que dificuldades, preconceitos, fragilidades e vulnerabilidades sociais vivenciadas pela nossa ancestralidade devem ser trazidas à luz para o enfrentamento e superação de variadas questões cotidianas vividas que ainda são reflexos de nossa herança histórica?

Figura 6 – Minha árvore genealógica e afetiva.

Fonte: documentos e informações prestadas pelos familiares de Rodrigo Capelle Suess, 2022.

Essa necessidade existencial e da pesquisa me fizeram buscar, em mim e na memória de outras pessoas, os elementos básicos para a composição do conjunto de ideias apresentados a seguir. A busca por essas questões atribui mais sentido para o enredo de minha vida e para a tese defendida neste trabalho e permitiu quebrar o que divide a história do meus pais e a história

da humanidade, da história de minha própria existência. Tenho a certeza de que carregamos conosco a síntese do que fomos até então, mas também todo o leque de possibilidades daquilo que podemos ser enquanto indivíduos e sociedade; essa junção de passado e futuro, singular e universal nos ajuda a reconhecer o que somos nesse presente. Não se trata de uma binaridade humilhado e humilhante ou superado e superante, mas de complexas relações e trajetórias de seres humanos que são históricos. Todo ser humano tem, faz e deve ter o direito de ser reconhecido enquanto sujeito histórico. Com isto, eu, Rodrigo Capelle Suess, enquanto ser humano, reivindico e uso o direito de contar a minha história.

O meu recorte familiar e temporal, para contar a minha hereditariedade, começa pelos meus bisavós, pois suas escolhas também tiveram influência em minha vida. Começo a narrar brevemente a respeito de dez pessoas, que são pais dos meus avós, avós de meus pais e, por fim, meus bisavós. Pelo materno são: Benedita Alves da Silva, Osvaldo Gonçalves da Silva, Francisca Ferreira, Mario Cerqueira Van Capelle, e pelo lado Paterno são Alvorinda Rodrigues França, João Inácio Gonçalves, Suzane Kummer, João (Hans) Evangelista Süss (Süß), Bolzani e Ângela Bolzani (pais adotivos da avó Ilda). Começo pela origem materna.

De origem materna

Benedita Alves da Silva e Osvaldo Gonçalves da Silva são pais de minha avó Sirlene e avós maternos de minha mãe Renata; já Francisca Ferreira e Mario Cerqueira Van Capelle são pais de meu avô Renan e avós paternos de minha mãe. Apresento primeiro a história de Benedita e Osvaldo. O meu bisavô nasceu em Minas Gerais e se mudou para o estado de Goiás, onde se casou com a minha bisavó, na cidade de Alexânia. Ela morava e trabalhava na área rural de Goialândia, possuía duas irmãs e um irmão, era empregada de uma fazenda na qual apanhava café e cuidava da roça. Meu bisavô era negro e minha bisavô era indígena, segundo um relato de uma tia-avó “ela falava para nós que era índia, que ela foi pega no laço, ela tinha todos os traços de uma índia, era bem morena do cabelo lisinho” (ENTREVISTADA - PARTE MATERNA, 2020, sic!). Mudaram para Alexânia e, posteriormente, para a cidade de Anápolis.

Na cidade meu bisavô trabalhou de pedreiro e minha bisavó de lavadeira. Não possuíam estudos, eram analfabetos, seus seis filhos tiveram poucas oportunidades de escolarização, uns não chegaram a ir para o banco escolar, outros atingiram o primário, como é o caso da minha avó Sirlene. O ingresso prematuro no mercado de trabalho se aliou à falta de oportunidades na efetivação desse feito.

De pais muito pobres, meus tios-avôs não conseguiram romper com essa lógica: um deles cresceu com deficiência de hormônio de crescimento e não teve condições de seguir um tratamento, já os outros seguiram ofícios como pintor, pedreiro, dona de casa e empregada doméstica. Houve processo de traição e separação desses meus bisavôs, além do desgaste da relação devido o abuso alcoólico do meu bisavô, o que levou a minha bisavó a cuidar sozinha dos filhos. Um dos maridos de uma tia-avó se mudou para o Japão, melhorando, um pouco, a qualidade de vida de sua família. Uma de minhas tias-avós foi expulsa de casa devido a uma gravidez precoce, teve outros filhos e muitos foram criados por outras famílias devido à pobreza e problemas com o alcoolismo.

Apresento a seguir os meus bisavós Francisca e Mário. O sobrenome Van de Cappelle é de origem belga-holandês, em tradução livre significa “da Capela”, familiarmente temos a sua expansão no território brasileiro por meio do meu tataravô, Jorge Van de Cappelle, que nasceu na cidade de Paris, mudou-se para o Brasil, exerceu a profissão de artista e relojoeiro e faleceu em Juiz de Fora em 1924. Seu filho Mario Cappelle casou com a minha bisavó, Francisca Ferreira, conhecida como dona Chiquinha. Ele nasceu no distrito de São Pedro de Alcântara em Juiz de Fora-MG, em 1911, e ela em Alvinópolis-MG, em 1909. Meu bisavô era negro, alto e de olhos castanho escuro e a minha bisavó era branca, baixa e cabelos claros. Ele abandonou o seminário e se formou em engenharia, já a minha bisavó não teve muito estudo devido a sua condição de mulher e condições financeiras, tratava-se de uma pessoa bem humilde.

Muitos parentes contam que ele ganhou na loteria esportiva em MG e ficou rico. Se conheceram em João Monlevade-MG e mudaram de Belo Horizonte para Anápolis, pois acreditavam que Goiás era uma “terra de promissão”. Por muito tempo tiveram uma boa vida, sendo aceitos na alta sociedade Anapolina da época. Não soube administrar o dinheiro e logo perdeu tudo, separou-se de minha bisavó e a deixou sozinha com os filhos. Tiveram sete filhos, quatro homens e três mulheres. Em um dos nascimentos acabou desenvolvendo a surdez. Uma dessas filhas morreu cedo e deixou dois filhos; o filho homem foi cuidado e tratado pelos meus tios-avôs como irmão, a sua irmã foi cuidada por outra família.

Os meus tios-avôs não tiveram as mesmas oportunidades de estudo de seu pai; pelo contrário, quase não tiveram estudo. Depois do abandono do pai, passaram muitas dificuldades:

a minha bisavó trabalhou de camareira, ela e seus filhos dormiram por muito tempo no hotel em que ela trabalhava e consequentemente os filhos acabaram exercendo ofícios de taxista, mecânico, pintores e lanterneiros de carros; as filhas se envolveram com a costura, produção de salgados e ensino.

Meu avô Renan nasceu em João Molevade-MG e conheceu a minha avó Sirlene em Anápolis. Mecânico e lanterneiro, se casou com a minha avó que trabalhava de doméstica na casa de alguns médicos da cidade. Ela chegou a estudar como bolsista em uma das melhores escolas de Anápolis, mas sua formação não passou do primário. Era uma moça que chamava muita atenção, em sua juventude, por causa de sua beleza.

Nessa cidade tiveram três filhos, a minha mãe e mais dois tios. Meu avô se apaixonou rapidamente por minha avó, mas isso não foi o suficiente para terem uma vida de tranquilidade.

Mudaram-se para Formosa-GO com a esperança de uma vida mais próspera. Meu avô começou a beber muito jovem e esse vício causou sérios problemas na família e no trabalho, como um grave acidente e a demência em sua velhice. Meus tios, igualmente, se envolveram com álcool e suas vidas foram intensamente marcadas por esse mal, falecendo um deles em decorrência da depressão e do abuso dessa substância. Minha avó, pessoa extremamente esforçada, trabalhadora, direita e responsável sofreu muito com essas questões; morreu muito nova em decorrência de um aneurisma cerebral. Criou por um bom tempo dois filhos de uma de suas irmãs, justamente a que tinha menos condições.

A minha mãe nasceu nesse contexto, viveu sua infância e início da adolescência em Anápolis e a metade de sua adolescência em Formosa-GO. Teve uma criação muito rígida e desde muito cedo teve que assumir muitas responsabilidades com questões domésticas, com a criação de seus irmãos e com o trabalho em suporte, por exemplo, a uma lanchonete que meus avós tinham em Anápolis. Muito magra sofreu bullying na escola; estudou continuamente até a 8ª série quando conheceu o meu pai. Casou-se muito nova, aos 15 anos, em decorrência de uma paixão e, também, como fuga de um ambiente familiar complicado em decorrência dos exageros relacionados ao alcoolismo do meu avô e de seu exacerbado controle.

A mudança para Formosa implicou em uma nova rotina, sem familiares próximos, a construção do pertencimento à cidade foi lenta. Há 28 anos teve a sua primeira filha e um ano depois o seu primeiro filho, Vanessa e Rodrigo. Quando casou, recebeu um lote de presente de meu avô paterno e mudou-se para a casa ainda em construção. Parte significativa de sua vida foi trabalhando em casa e em diversos comércios em Formosa. Em 2010, minha avó paterna lhe ajudou a montar uma loja de locação de ternos, o que faz desde então. Teve muitas dificuldades e desenvolveu depressão após a perda de minha avó Sirlene e de meu tio Max.

Entretanto, recentemente em 2019, em uma gravidez inesperada, gerou a terceira filha 26 anos após o seu último filho. Trata-se da Isabela, a esperança de novos tempos e de renovação geracional.

De origem Paterna

Da parte paterna herdei o sobrenome Suess. Suess, Sühs, Süss e Suss são sobrenomes derivados da família alemã Süß. Em tradução literal significa doce, fofo e afável. Meu bisavô Johann Evangelist Süss, nasceu na cidade de Altheim em 1898 na Alemanha. Serviu na Primeira Guerra Mundial na “Techn. Betriebs-Btl. München A. Kompagnie”. Fugindo dos horrores de uma das guerras mais sangrentas do mundo contemporâneo, viajou em um navio desacompanhado, realizando serviços em troca da viagem. Chegou ao Brasil em abril de 1918, por meio do porto de Recife-PE. Em 11 de novembro daquele ano foi assinado o Armistício de Compiègne que colocou fim a essa guerra. Ao chegar ao país foi informado que a colônia alemã se localizava no sul do país e assim realizou uma longa viagem. Chegou muito doente na colônia de Gerisa, no Rio Grande do Sul, onde foi cuidado pela enfermeira Suzanna Kummer, mulher com quem se casou e teve quatro filhos.

Da guerra carregava um ferimento na perna que exigia cuidados contínuos, tratava-se de estilhaços de uma granada que havia estourado perto de sua trincheira. No Brasil, exerceu a profissão de professor e complementou a sua renda com a abertura de uma pequena venda. Em registro de presença denominado “Aula pública subvencionada pelo Município de Carazinho-RS”, no mês de dezembro de 1931, meu bisavô assinou como João Ev. Suess. Suzanne faleceu de câncer e deixou cinco filhos órfãos. Em 1937, João se casou com Florentina Hartmann, também descendente alemã, sua segunda esposa com quem teve mais quatro filhos.

A sua descrição é de um homem alto e magro, de olhos azuis, carinhoso, bondoso, meigo e com forte sotaque alemão. No país foi colunista do Jornal Brasil Post, publicado em língua alemã e destinado ao público alemão no país, com o codinome de “Kampvogel”, em tradução,

“Pássaro do campo”. Apenas em 1951, conseguiu rever alguns parentes por meio de uma viagem que realizou à Alemanha. Viveu parte significativa de sua vida em Carazinho, Itapera e Almirante de Tamandaré do Sul no Rio Grande do Sul. No decorrer de sua vida teve problemas com o alcoolismo. Faleceu em 1973, aos 75 anos, vítima do câncer de bexiga. Sua morte foi lamentada por esse jornal em seu número 1209, página 17 com o seguinte título

“Unserem ‘Kampvogel’ zum Gedächtnis”, em tradução: Em memória do nosso Pássaro do campo.

Entre as minhas tias-avós, a maioria se casou e dedicou-se à vida doméstica e à costura, tendo uma delas formação técnica em contabilidade de empresas. Os meus tios-avôs seguiram como relojoeiro, pedreiro, caminhoneiro, agricultor e com a prestação de serviços voltados à agricultura. Um deles se tornou prefeito por dois mandatos no município de Carazinho-RS.

Uma prima de 2º grau relatou a seguinte questão: “[...] só em determinada idade eu me perguntei: ‘eu deveria ter perguntado mais, saber mais de nossa história, mas o meu contato com vô’ [...] eu era muito pequena, foi tão bom, mas se eu tivesse perguntado mais para ele, eu saberia mais coisa”. Reconhecendo que as fontes orais são limitadas e se perdem no tempo.

A história de vida de minha avó paterna é uma história de superação e contestação. Seus ancestrais se constituem em platinos, poloneses, italianos e brasileiros; a chegada dos primeiros antepassados provavelmente esteve relacionada à Guerra do Paraguai. Do seu pai herdou o sobrenome Gonçalves, abrasileiramento do nome González. O seu avô materno, conhecido como “Seu Alvino França”, era um grande dono de terras no Rio Grande do Sul que cultivava fumo, pinhos de corte e pimenta, criava gado e possuía uma fábrica de charuto. A gravidez de minha bisavó criou uma grande expectativa de um herdeiro que pudesse cuidar dos negócios.

Segundo relatos de minha avó “[...] ele comentava que eu teria que me vestir de homem e que iria cuidar da lavoura com ele” (ENTREVISTADA - PARTE PATERNA, 2020, s. p.). Contudo, morreu enquanto ela era criança em um trágico acidente de cavalo. Deixou como herdeiras apenas mulheres que não puderam aproveitar de toda riqueza deixada, pois diversos parentes não aceitaram as suas posses às terras herdadas. Aqui, mais uma vez, o particular reflete o conteúdo do contexto nacional de machismo e patriarcado que se constitui ainda como um grave problema da sociedade brasileira, mas fortemente desenvolvidos na segunda metade do século XX (COSTA, A., 2005).

Nos primeiros anos de vida, minha avó teve pouco contato com o seu pai, que também era um agricultor de fumo, pois ele era visto pelo meu tataravô como uma má influência devido ao consumo do álcool, impedindo a sua filha, minha bisavó, de permanecer com ele. Minha bisavó, após essa perda trágica de seu pai, casou-se novamente e teve mais dois filhos. Impedida uma vez de viver com a sua primeira paixão, não resistiu à frustração de uma traição no seu segundo relacionamento e cometeu suicídio. Com cinco anos de idade, minha avó foi morar com vários familiares: até os dez anos morou com uma bisavó, depois do seu falecimento, foi criada por um tio e pelo próprio pai. Sofreu diversas restrições materiais e afetivas nesse último período. Aos 14 anos foi adotada por um casal de pessoas de meia-idade, que possuía boa parte de seus filhos formados e independentes. Trata-se do casal Bolzani, donos de uma fábrica de camas, que a adotou e conseguiu atender suas necessidades afetivas e materiais. Frequentando os clubes tradicionais de Carazinho, com forte vigilância dos seus pais adotivos, conheceu o meu avô, casando-se aos 18 anos e ele com 25 anos.

Nos primeiros anos de casamento, morou em uma chácara e, posteriormente, com o nascimento dos quatros filhos, mudou-se para a cidade. Meu avô possuía curso de contabilidade

e adquiriu muita experiência com máquinas agrícolas; mesmo sem estudo formal, compôs a engenharia de duas grandes fábricas de máquinas agrícolas do Rio Grande do Sul com destacada contribuição na projeção de implementos agrícolas. Com o trabalho nessas empresas e sem herança, conseguiu comprar a sua primeira propriedade rural. Com o tempo começou a cultivar soja, milho, arroz e feijão e a criar gado, porco e galinha. No ano de 1985, vendeu a sua propriedade no RS e comprou a fazenda Cana Brava em Serra Bonita, hoje o município de Vila Boa-GO. Devido à falta de infraestruturas mínimas, como energia elétrica, a trocou por outra propriedade agrícola no município de Simolândia-GO. Com a aposentadoria em 1989, mudou-se completamente para o Estado de Goiás. Na nova cidade, Formosa-GO, a minha avó paterna abriu uma loja de locação de roupas para festas na década de 1990 e a família a mantém até hoje como um ramo familiar tradicional na cidade.

Meu pai nasceu em 1964, na cidade de Passo Fundo-RS, e com oito anos foi morar com a família em Caxias do Sul por causa de uma nova oportunidade de emprego que havia surgido para o meu avô. Pessoa de natureza tímida, interrompeu os seus estudos na 8ª série devido às responsabilidades que assumiu com as atividades agrícolas da família. Conseguiu concluir dois cursos técnicos, um de Mecânica Geral e o outro de Desenho Industrial, chegando a estagiar e ser empregado nessas áreas, mas tão breve interrompeu sua trajetória, após a mudança para o Estado de Goiás. Impossibilitado de trabalhar com o que havia estudado, em seu tempo livre, realizou a pintura de diversas telas de cunho paisagístico e religioso. De 1985 a 1990 trabalhou como tratorista e agricultor na fazenda Cana Brava. Posteriormente, após uma breve experiência profissional com solda e estofamento de carros, abriu uma estofaria de carros em Formosa a qual conseguiu manter até 2018. Certamente não foi um dos negócios mais lucrativos em um tempo que progressivamente se viu aumentar a aquisição de veículos novos e a redução do tempo de troca de veículos. Em 1990 conheceu a minha mãe e logo se casou, como relatado acima.

Confesso que a expectativa causada por ser neto de um produtor rural e por ter como principais sobrenomes palavras de origem estrangeiras pesou mais do que a realidade. Meu pai, como estofador de carros, e minha mãe, como doméstica e trabalhadora, conseguiram me dar uma boa formação, mas muito simples, bem distante da imaginada por muitos. Uma qualidade de vida razoável se deu muito recentemente com a abertura de uma loja de locação de roupas por parte de minha mãe. Atualmente a família se encontra saindo de uma grave crise devido a pandemia, que acertou em cheio o setor de festas. Para mim, o que importa, realmente, é o fato de ter otimizado quase todas as coisas que me foram ofertadas.

Acesso à educação

O que tem a ver a história da educação e da sociedade brasileira com a história da minha família e com a minha história? Primeiro que, como seres históricos, estamos sempre em um contexto, que ora desempenha mais influência nas tomadas de decisões, ora menos. No caso aqui apresentado o universal reflete no particular e o particular se constitui em enredos autorais, desenvolvendo possibilidades dadas pela esfera da educação e sociedade do período. É tempo de questionar a fala simples de nossos antepassados que justificam a sua falta de escolarização com a seguinte resposta “eu não gostava muito de estudar” ou “eles não gostavam muito de estudar”. O Estudo não se trata apenas de gosto, mas de um direito e uma necessidade humana.

Esse discurso é muito conveniente para o Estado e para as elites que ocuparam o comando desse país, pois transferem a culpa totalmente para o indivíduo e se esquecem da responsabilidade fundamental do Estado, que é a oferta de uma boa educação para todos. Os nossos ancestrais, quando perguntados a respeito de quanto estudo possuíam, não deveriam se sentir envergonhados ou recuados, mas deveriam compreender que essa responsabilidade, conhecendo a história da educação no Brasil, é, sobretudo, do Estado brasileiro que ainda é incipiente, em muitos aspectos, na promoção de uma aprendizagem digna.

A geografia da educação no Brasil se desenvolveu, por muito tempo, ao ritmo dos interesses das oligarquias e do poder religioso; seu retrato ainda hoje é reflexo das profundas desigualdades sociais e regionais que coexistem no território brasileiro. O acesso universal à Educação Básica ainda não se concretizou e, em termos de qualidade, o problema é ainda maior, principalmente, em referência ao serviço prestado às camadas mais populares. Mesmo para classes dominantes, que tiveram acesso aos melhores níveis de educação, o conhecimento adquirido se mostrou muito mais apto ao interesse de adaptação do Brasil ao cenário internacional do que um conhecimento criativo e inventivo para problemas nacionais (SAVIANI, 2012; PIANA, 2009; LIBÂNEO, OLIVEIRA E TOSCHI, 2012; GREMAUD;

VASCONCELLOS; TONETO JÚNIOR, 2017; FREIRE, 2014a, 2014b; SANTOS;

SILVEIRA, 2011; MOREIRA, 2014a).

Entende-se também o porquê desse discurso ser comum entre os meus antepassados e de muitos outros brasileiros. Na época em que essas pessoas estavam em idade escolar, era necessário gostar muito para estar na escola e, mesmo com esforços extraordinários, nem sempre era possível ir até ela, pois é conhecida a insuficiência de escolas nas cidades e a inexistência desses espaços no campo, sem contar com a inserção precoce de crianças e adolescentes no mercado de trabalho no Brasil para ajudar suas frágeis famílias. Esse é um fato