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3 O CONTADOR-HISTÓRIA-OUVINTE

3.3 A História

A arte de contar histórias é relação, relação indissociável de pelo menos três elementos: o narrador, a história e o ouvinte. Falamos de quem conta, agora iremos dissertar sobre outro elemento importante nessa relação, as histórias. O que são as histórias? Como surgiram e como surgem? De onde vieram, de que falam e para quem falam?

Na arte de contar, as histórias estão no centro, são o centro, a força motriz capaz de criar o encantamento, de transmitir conhecimentos, de formar consciências, de seduzir e gerar sonhos. As histórias são o elo invisível que une o contador e os ouvintes, sem aprisioná-los, sem limitá-los, Tão antigas quanto a fala, elas estão presentes em todas as culturas, em todos os espaços e territórios, elas trazem consigo o verdadeiro dom de comunicar o incomunicável.

Elas simplesmente existem, resistem ao tempo, ultrapassam fronteiras, habitam o imaginário, alegram, provocam prazer, causam espantos, assustam, acalentam. São mentiras que mostram as verdades. São nossas, são de todos e continuarão a existir e a serem criadas, bastando para isto que existam as pessoas que queiram comunicar e contar fatos vividos e imaginados.

3.3.1 Uma breve reflexão sobre estórias e histórias

σa língua portuguesa, observamos a unificação dos termos ―história‖ e ―estórias‖. Guimarães Rosa, mestre do conto, mágico das palavras, as chamava de ―estórias‖, pois eram ouvidas ou inventadas, vinham do mundo do encantamento e permitiam dar vida e vozes a todos os seres: pássaros, árvores, sol, estrelas, fadas, gnomos.

E a história, grafada com ―h‖, diferenciava-se por falar de fatos acontecidos e estudados, ciência: reflexão e análises dos fatos ocorridos nas diferentes civilizações. História, neste sentido, tem sua origem etimológica no grego antigo ―ἱ ορία‖, que significa "pesquisa" "conhecimento advindo da investigação", e era a ciência que estudava o homem e sua ação no tempo e no espaço, bem como a análise de processos e eventos ocorridos no passado.

Talvez, Heródoto tenha sido o primeiro grego a realizar investigações de forma cientifica sobre estes fatos, mas foi Tucídides (460 A.C) o primeiro a aplicar métodos críticos, como o cruzamento de dados e fontes diferentes, nos legando a ―História da Guerra do Peloponeso‖, da qual foi testemunha e participante: são oito volumes que narram a guerra entre Esparta e Atenas ocorrida no século quinto A.C.

A palavra estória caiu em desuso, sendo desestimulada segundo o Novo Acordo Ortográfico, que entrou em vigor em janeiro de 2009, que indica que devem ser utilizadas letras iniciais minúsculas em nomes que indicam domínios do saber, cursos e disciplinas, podendo ser opcional o uso da letra maiúscula. Assim, a palavra história, sendo uma disciplina e ciência, poderá ser escrita com letra inicial maiúscula ou minúscula. Sendo sinônimo de conto e narração, deverá ser escrita com minúscula. Tal fato pouco diz sobre o fenômeno das histórias aqui contempladas nesta dissertação, mas demonstram certo preconceito que valoriza a ação cientifica e desqualifica a ação criativa.

3.3.2 Histórias – muitos nomes, mas o que são?

São inúmeras as classificações que as histórias recebem: mitos, contos de fadas, contos maravilhosos, contos populares, fábulas, lendas, epopeias, contos etiológicos, histórias sem fim, histórias acumulativas, facécias, contos humorísticos, anedotas, piadas, histórias de medos e assombrações, causos. Independente da classificação, elas nos fascinam, nos encantam e nos conduzem a aprendizagem e a imaginação.

Em 1954, o escritor italiano Ítalo Calvino recebeu a encomenda de recolher e transcrever uma antologia de fábulas italianas que pudessem ser comparadas às coletâneas francesas e alemãs, realizadas por Perrault e dos Irmãos Grimm, estas histórias populares, recolhidas num longo e laborioso estudo de dois anos, que ele assim as define:

E penso que seja isto: as fábulas são verdadeiras. [...] São, tomadas em conjunto, em sua sempre repetida e variada casuística de vivências humanas, uma explicação

geral da vida, nascida em tempos remotos e alimentada pela lenta ruminação das consciências camponesas até nossos dias; são o catálogo do destino que pode caber a um homem e uma mulher, sobretudo pela parte de vida que justamente é o perfazer-se de um destino: a juventude, do nascimento que tantas vezes carrega consigo um auspício ou uma condenação, ao afastamento da casa, às provas para tornar-se adulto e depois maduro, para confirmar-se como ser humano. E, neste sumário desenho, tudo: a drástica divisão dos vivos em reis e pobres, mas sua paridade substancial; a perseguição do inocente e seu resgate como termos de uma dialética interna a cada vida; o amor encontrado antes de ser conhecido e logo depois sofrimento enquanto bem perdido; a sorte comum de sofrer encantamentos, isto é, ser determinado por forças complexas e desconhecidas, e o esforço para libertar-se e autodeterminar-se como um dever elementar, junto ao de libertar os outros, ou melhor, não poder libertar-se sozinho, o libertar-se libertando; a fidelidade a uma promessa e a pureza de coração como virtudes basilares que conduzem à salvação e ao triunfo; a beleza como sinal de graça, mas que pode estar oculta sob aparências de humilde feiura como um corpo de rã; e sobretudo a substância unitária do todo: homens animais plantas coisa, a infinita possibilidade de metamorfose do que existe. (CALVINO, 2006, p. 25,26).

Podemos dizer ser quase impossíveis encontrar, nas mais diversas culturas, uma pessoa que não tenha vivenciado o valor de ouvir uma história e que esta não esteja ligada à sua formação. As histórias orais fazem parte da ontogênese humana. Crescemos embalados pelo delicado e poético som de nossas mães, que nos acalentam com histórias ouvidas de suas avós, que criam um ambiente de aconchego, de carinho, afeto, inquietude, assombro e imaginação.

No Brasil, país extremamente pluricultural, somos ricos em histórias, ou contos, ou lendas de diferentes culturas, tais como as histórias indígenas, africanas e as histórias de origem portuguesa, que trazem traços da cultura árabe, judaica e até mesmo indiana. Temos em Câmara Cascudo, uma das maiores referências no acolhimento e preservação das histórias orais, que ele sabiamente as escreveu para preservá-las. Para ele o conto popular é revelador do ponto de vista da construção do conhecimento:

O conto popular revela informações histórica, etnográfica, sociológica, jurídica, social‖. É um documento vivo, denunciando costumes, ideias, mentalidades, decisões, julgamentos. Para todos nós é o primeiro leite intelectual. Encontramos nos contos usos estranhos, de hábitos desaparecidos que julgávamos tratar-se de pura invenção do narrador. (CASCUDO, 2006, p. 257-8).

O contador de história francês Jean Claude Carrière (2008), na sua introdução aos ―Contos Filosóficos do Mundo Inteiro‖, nos aponta que apesar de diferentes elementos que compõe a vida, esta não é senão narrativa, e sem a possibilidade de contar essa narrativa não somos nada, ou somos muito pouco. Para ele, a história, antes de tudo, é um

movimento de um ponto a outro, que jamais deixa as coisas como estavam, que vivemos nessa constante mudança, temos um começo e teremos um fim.

3.3.3 Histórias, de onde chegaram?

Carrière (2008), ao indagar sobre a origem ou origens das histórias, nos convida a passear pelo tempo dos sonhos, os sonhos de outrora são parentes dos nossos sonhos. De tempos em tempos sonhamos e caímos repentinamente no sono, sempre, desde o mais antigo dos tempos, quando ainda éramos lêmures, ou espécies de macacos, que à noite dormiam nas árvores com medo de cair na boca de um predador. Para ele as narrativas já eram contadas nas cavernas da pré-história, fazendo rir e amedrontar, há mais de 300 séculos.

Assim ele imagina a origem das histórias:

Assim, ao reconhecer nessas histórias uma qualidade social, intelectual, como se poderia dizer, somos levados a nos transportar desajeitadamente à nossa origem tão lenta e tão longa, e tão difícil de se desvendar. Em que estágio começa uma civilização? Por quais sinais a reconhecemos? Talvez por meio desse indício preciso: um homem, uma mulher, ou um grupo de homens e mulheres, num determinado momento, se desviando da tradição mítica, da repetição das verdades ancestrais, inventa uma situação, personagens, uma ação estruturada, um desfecho, uma história.

Nasce o autor, ainda que anônimo. Ele é o primeiro mentiroso coletivo (...). Sua história é uma falsidade, uma fabulação. Mas ela agradou, será repetida, vai entrar sem esforço na existência cotidiana de onde não será mais arrancada. Assim, sob uma forma de narrativa, a mentira se torna a aliada de todos, o mestre para a vida, o traço de união, o inseparável. (...) Elas são vivas, desconcertantes, frívolas. São como flores, ou doces, que os convidados trocam no fim de uma refeição – sem pretensão de um pensamento elevado, longe do sermão, da sisudez, do didatismo. Montaigne dizia que ele narrava, que não ensinava (Kaïdara) [(...] nos adverte docemente: ―Eu sou fútil, útil, instrutivo. (CARRIÈRE, 2008, p.18,19).

Sobre de onde as histórias vêm, Carrière (2008), ele as recolhe na tradição do budismo zen e na tradição sufi, onde a história é considerada como a ferramenta do conhecimento. Que essas duas fontes bebem nos reservatórios mais antigos, na tradição indiana, na africana e chinesa. Ele reconhece que o mundo islâmico – além do sufismo – refinou a arte da narrativa, entrelaçou, ornamentou e costurou com ouro e sombra essas histórias. Vêm da tradição judaica, onde a arte de narrar é tão importante quanto a própria história, que tem um sentido oculto, sendo o oculto o verdadeiro. Vêm ainda da tradição europeia e ameríndia, onde a beleza de uma história vem sempre da obscuridade.

3.3.4 Histórias transformam

As histórias têm muitas funções: comunicar, transmitir, formar, socializar, educar, entreter, mas vejo a força transformadora das histórias como um soberano destaque, principalmente quando nos atentamos para o processo de educação emocional. Nancy Mellon esboça um pequeno quadro do poder transformador das histórias no processo emocional, que apresento abaixo:

QUADRO DE TRANSFORMAÇÕES EMOCIONAIS GERADAS PELA ARTE DE CONTAR HISTÓRIAS DE PARA Passividade Esperança Preguiça Diligência Solidão União Obstinação Bondade Impaciência Paciência Doença Saúde Deficiência Dom Embaraço Graça Raiva Amor Vaidade/orgulho Compreensão Hiperatividade Calma Impotência Potência Confusão Clareza

Vício Iluminação espiritual

Mentira Coragem para a verdade

Violência Gentileza

Amargura Bom gosto

Vacuidade Plenitude

Medo Coragem

Superficialidade Profundidade

Morte Vida nova

Animal/ animal feroz Ser humano

Quadro 1: As transformações emocionais geradas pela arte de contar histórias. (MELLON, 2006, p.246-7).

O quadro de transformações emocionais provocadas pela arte de contar histórias, desenvolvido pela contadora de histórias e terapeuta Nancy Mellon é o resultado de mais de 20 anos de observação. Apesar de ter uma visão mecanicista, processo quase natural quando se processam tabelas sobre temática subjetiva, apresenta, dentro dos seus limites, mudanças significativas observadas no campo emocional, sobre a prática de contar historias em escolas, clínicas de terapias, hospitais, teatros, e núcleos familiares.

Durante séculos as histórias iluminam as almas humanas. Elas são livres, têm o poder da mudança, trocam-se as palavras, mudam-se os cenários, mas elas permanecem vivas, guardando consigo o segredo de iluminar ambientes, renovar sonhos, povoar imaginários. Possuem o intrigante mistério de transformar e unificar a dor e a alegria, a escuridão e a luz. Nas histórias o narrador e o ouvinte se encontram, se encantam e estão unidos para sempre.