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História da elaboração da Lei nº 9.985/00

3.2 Unidades de conservação

3.2.1 História da elaboração da Lei nº 9.985/00

Apenas a partir da segunda metade da década de 1970, começa a haver, no Brasil, preocupação em se utilizar critérios científicos para a escolha da categoria de manejo a ser instituída, o local a ser protegido e a dimensão da área afetada pela unidade de conservação. Até então, somente circunstâncias políticas e questões estéticas determinavam a criação de UCs. Em 1976, com a publicação do trabalho

Uma análise de prioridades em conservação da natureza na Amazônia308, foi

possível a elaboração de um Plano do Sistema de Unidades de Conservação do Brasil, elaborado e publicado em duas etapas, a primeira, em 1979, a segunda, em 1982309. A finalidade dos Planos se constituía, basicamente, em identificar áreas

prioritárias para conservação e nelas propor a criação de novas unidades, tendo sido

licenciadas. As áreas do entorno de unidades de conservação encerram, assim, tanto zonas de amortecimento quanto zonas de transição, que admitem, inclusive, sobreposição, eis que seus objetivos não são, necessariamente, coincidentes. Nesses casos, deverá ser observada, sempre, a maior restrição, conferindo-se ao ambiente natural a maior proteção possível.

308 WETTERBERG; PÁDUA; CASTRO; VASCONCELOS (1976). 309 MINISTÉRIO DA AGRICULTURA (1979, 1982).

também mencionada a necessidade de ampliação das espécies de categorias de manejo até então existentes310.

Em 1988, o IBDF contratou a Fundação Pró-Natureza – FUNATURA, á época sob a direção de Maria Tereza Jorge Pádua, para a elaboração de um anteprojeto de lei instituindo um sistema nacional de unidades de conservação, o que, inclusive, já estava previsto no Programa Nacional de Meio Ambiente, na forma de revisão e atualização do Plano do Sistema de Unidades de Conservação, em suas duas Etapas. Em 25/07/88, IBDF e SEMA assinaram um Protocolo de Intenções com a FUNATURA, para que se executasse a primeira fase do projeto, consubstanciada na revisão e atualização conceitual do conjunto de categorias de unidades de conservação311.

Diversos consultores e especialistas participaram do trabalho, coordenados por Ibsen Gusmão Câmara. Várias reuniões técnicas e dois seminários, um em São Paulo e outro em Brasília, foram realizados, tendo a Funatura, em sua proposta de anteprojeto, organizado nove categorias de manejo em três grupos: parque nacional, reserva ecológica, monumento natural e refúgio da vida silvestre (UCs de proteção integral); reserva de recursos naturais, (UC de manejo provisório); reserva de fauna, área de proteção ambiental e reserva extrativista (UCs de uso sustentável). Além disso, o anteprojeto estabelecia os objetivos nacionais de conservação da natureza, fixava critérios para criação e gestão de unidades de conservação e criava alguns tipos penais312.

A FUNATURA entregou o anteprojeto, em 1989, ao recém-criado Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis - IBAMA, tendo o mesmo sido aprovado, com poucas alterações, pelo CONAMA. Encaminhado à Casa Civil, o crime de dano a UCs, previsto no anteprojeto, foi transformado em ilícito administrativo. Em 22/05/1992, o ex-Presidente Fernando Collor enviou o Projeto de Lei ao Congresso Nacional, mediante a Mensagem nº 176. Na Câmara dos Deputados, foi autuado com o nº 2.892/92 e encaminhado à Comissão de Defesa do Consumidor, Meio Ambiente e Minorias – CDCMAM. Inicialmente

310 A respeito dos Planos do Sistema de Unidades de Conservação, ver capítulo II. 311 MERCADANTE (2001).

distribuído ao deputado Tuga Angerami, passou à relatoria do Deputado Fábio Feldmann, em dezembro daquele mesmo ano.

Em 1994, o relator apresentou proposta de substitutivo, que contemplava substanciais alterações do texto original, tendo em vista a necessidade de envolvimento das populações locais nos processos de criação e gestão de unidades de conservação. Citando os documentos internacionais Nosso Futuro Comum313 e

Estratégia Global para a Biodiversidade314, concluiu no sentido de que a diversidade

biológica deve ser valorizada não apenas econômica ou ambientalmente, mas também socialmente, devendo ser respeitadas as fontes de alimento, locais de moradia e demais condições essenciais de subsistência das populações tradicionais, bem como ser protegidos e valorizados os conhecimentos tradicionais associados315.

Foi, então, incorporado ao projeto um artigo traçando os princípios do SNUC, dentre os quais o de garantir às populações tradicionais, cuja subsistência dependa da utilização de recursos naturais existentes no interior de UCs, o acesso controlados aos recursos, meio de subsistência alternativo ou justa indenização pelos recursos perdidos. Também foram delineados princípios versando sobre a participação das populações locais na criação, implantação e gestão das unidades de conservação. Com isso, o substitutivo apresentou uma definição de população tradicional: “população culturalmente diferenciada, vivendo há várias gerações em um determinado ecossistema, em estreita dependência do meio natural para sua alimentação, abrigo e outras condições materiais de subsistência, e que utiliza os recursos naturais de forma sustentável”.

O substitutivo também voltou a estabelecer um tipo penal específico para danos à integridade de unidades de conservação e extinguiu a categoria de reserva biológica, que havia sido mantida pela Casa Civil, ao lado de estação ecológica. Justificou a medida em face da inexistência, após a criação do IBAMA, de dois sistemas paralelos de unidades de conservação, como ocorria no tempo em que tais espaços estavam sob a administração de SEMA e IBDF, paralelamente.

313 Relatório da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e desenvolvimento, 1997.

314 Documento realizado conjuntamente pela UICN, PNUMA e WRI, 1992. Maiores detalhes sobre

estes dois documentos podem ser encontrados no capítulo II desta tese.

Um workshop promovido pelo Ministério do Meio Ambiente - MMA, em novembro de 1994, promoveu um amplo debate sobre o substitutivo, elogiado por socioambientalistas e criticado por preservacionistas. Ao final da legislatura (90/94), apresentou o Relator um texto muito próximo ao original, o que demonstrou ter cedido às pressões desses últimos316.

Em 1995, assume a relatoria do Projeto de Lei o Deputado Fernando Gabeira, tendo em vista ter o Deputado Fábio Feldmann assumido a Secretaria de Meio Ambiente do Estado de São Paulo. Com os resultados de audiências públicas realizadas em diversas capitais para a discussão do Projeto de Lei, apresentou o Deputado Fernando Gabeira novo substitutivo, com a incorporação das alterações inicialmente propostas por Fábio Feldmann, acrescentadas dos resultados obtidos nas audiências públicas. Retornaram à pauta as discussões sobre participação social na criação e gestão de UCs; proteção às populações tradicionais; necessidade de estudos técnicos e consulta às comunidades interessadas quando da criação de UCs e importância de RESEXs e RPPNs para o sistema. O termo população tradicional passou a ser definido da seguinte maneira: “população vivendo há pelo menos duas gerações em um determinado ecossistema, em estreita relação com o ambiente natural, dependendo de seus recursos naturais para a sua reprodução sócio-cultural, por meio de atividades de baixo-impacto ambiental”. O texto final, aprovado na Câmara, aumentou o tempo de permanência para três gerações. Além disso, quatro novas categoria de UCs foram previstas: reserva produtora de água, reserva ecológico-cultural317, reserva ecológica integrada318 e

reserva indígena de recursos naturais319. Com exceção da reserva ecológico-

cultural, aprovada pela Câmara como reserva de desenvolvimento sustentável, as demais foram excluídas. As RPPNs foram elencadas, pelo substitutivo, como categorias de manejo, deixando de ser simples mecanismos de incentivo à conservação em terra privada, sendo, todavia, incluído dispositivo que permitia a

316 MERCADANTE (2001).

317 Atual reserva de desenvolvimento sustentável. A inclusão da reserva ecológico-cultural foi fruto de

proposta feita pelo Núcleo de Apoio à Pesquisa sobre Populações Humanas e Áreas Úmidas Brasileiras, da USP, coordenado por Antônio Carlos Diegues. Ver DIEGUES (Acesso em 11/09/2006).

318 Serviria para promover a gestão integrada de áreas ou UCs com diferentes objetivos de manejo.

Ela foi substituída pela idéia de gestão de mosaicos.

319 As reservas indígenas de recursos naturais ajudariam a solucionar um grave problema existente

exploração direta de recursos naturais, exceto os madeireiros, o que as deslocou para o grupo das unidades de uso sustentável320.

No que tange à presença humana em unidades de conservação, diante da constatação, explicitada no substitutivo do Deputado Fernando Gabeira, de que 80% das UCs são habitadas por populações tradicionais, foram apresentadas algumas alternativas, relativamente às unidades de proteção integral: reassentamento, reclassificação e permanência temporária, até o reassentamento, conforme regras estabelecidas contratualmente. O dispositivo previa, ainda, a possibilidade de a população tradicional, no todo ou em parte, optar por outras formas de indenização ou compensação pelos recursos perdidos, ao invés do reassentamento. A necessidade de contrato para permanência temporária foi suprimida na Câmara, bem como o dispositivo que tratava, detalhadamente, da reclassificação, restando apenas a possibilidade de reavaliação de categorias criadas com base em leis anteriores que não correspondam às categorias previstas pelo SNUC. O texto aprovado pela Câmara também incluiu a possibilidade de presença de populações tradicionais nas florestas nacionais, desde que já residentes quando de sua criação, e a necessidade de consulta pública para a instituição de UCs, com exceção de estações ecológicas e reservas biológicas321. Tanto o substitutivo do Deputado

Fernando Gabeira quanto o texto final, aprovado pela Câmara, previam a compensação ambiental, com um percentual mínimo de 0,5% do valor bruto do empreendimento causador de significativo impacto ao meio ambiente a ser destinado à implantação e manutenção de UC de proteção integral. Também excluíam do cálculo da indenização a ser paga a proprietários de imóveis particulares incluídos nos limites da unidade o valor das APPs e das áreas de reserva legal, as espécies arbóreas imunes ao corte, as expectativas de ganhos e lucros cessantes e os cálculos efetuados mediante a operação de juros compostos322. Foi, ainda, criada a figura da interdição administrativa provisória, para

evitar danos a uma unidade de conservação antes de sua efetiva instituição. Este

320 MERCADANTE (2001).

321 O substitutivo do Deputado Fernando Gabeira não previa a necessidade de já ser a população

residente anteriormente à criação de floresta nacional e exigia consulta pública para a instituição de qualquer categoria de manejo.

322 A expectativa, neste caso, era acabar com a indústria das desapropriações indiretas, em que a

terra nua é avaliada em separado da cobertura vegetal, incluindo, no cômputo desta, o valor referente às APPs e às áreas de reserva legal. Esta parte do dispositivo foi, posteriormente, vetada pelo Presidente da República.

dispositivo, embora suprimido pela Câmara no texto definitivo, foi posteriormente incorporado à Lei nº 9.985 por meio da Lei nº 11.132/05, que lhe acrescentou o art. 22-A323.

Durante o ano de 1996, um workshop e dois seminários foram promovidos pelo Instituto Socioambiental – ISA e pela Câmara dos Deputados para discutir o PL 2.892/92. Em 1997, a Rede Nacional Pró-Unidades de Conservação, ONG preservacionista criada em 1996, organizou, em Curitiba, o I Congresso Brasileiro de Unidades de Conservação, em que foi aprovada uma Moção contra o substitutivo do Deputado Fernando Gabeira, por supostamente conter impropriedades conceituais e técnicas que poderiam causar profundos danos às áreas protegidas. No final daquele ano, após longo processo de negociação, o relator encaminhou para votação, pela Comissão, seu substitutivo, o que acabou por não ocorrer, face à mobilização, pela Casa Civil, da bancada do governo, por entender existirem inconstitucionalidades no projeto324.

Em 1997, nada foi feito, tendo o Deputado Fernando Gabeira, no início de 1998, tentado retomar as discussões, conseguindo que fosse aprovado regime de urgência para o projeto. Todavia, ele não ingressou na ordem do dia do Plenário, por falta de decisão política. Em função do impasse, entidades preservacionistas e socioambientalistas tentaram chegar a uma proposta de consenso, que foi aceita, em sua quase totalidade, pelo Relator. Em 1999, após uma campanha promovida por diversas ONGs ambientalistas para aprovação do projeto, o Relator negociou sua inclusão na pauta da Comissão de 26/05. Mais uma vez, foi adiada a votação, por manobra do Governo, que se comprometeu a apresentar, nos dias subsequentes, sua proposta. O projeto foi finalmente votado e aprovado na Comissão, em 09/06/99. No dia seguinte, 10/06, foi votado e aprovado pelo Plenário da Câmara dos Deputados. A modificação aprovada dizia respeito à forma de criação das UCs, na medida em que o projeto do Executivo fazia menção à criação

323 É esta a redação do art. 22-A: “O poder público poderá, ressalvadas as atividades agropecuárias

e outras atividades econômicas em andamento e obras públicas licenciadas, na forma da lei, decretar limitações administrativas provisórias ao exercício de atividades e empreendimentos efetiva ou potencialmente causadoras de degradação ambiental, para a realização de estudos com vistas na criação de unidade de conservação, quando, a critério do órgão ambiental competente, houver risco de dano grave aos recursos naturais ali existentes”.

324 Segundo MERCADANTE (2001, p.226), o que conduziu a Casa Civil a essa manobra foram as

pressões dentro do próprio governo contra o substitutivo “socioambiental” do Deputado Gabeira. Ver também: PÁDUA (1997); CÂMARA (2002).

de unidades por ato do Poder Público. Por erro, a redação final foi criação por ato do Poder Executivo. A bancada ruralista não aceitou a errata e propôs emenda, estabelecendo a competência exclusiva do Legislativo para a criação de UCs. A Casa Civil aceitou a emenda, a fim de conseguir a votação do projeto325.

Encaminhado ao Senado Federal, foi autuado como PL 27/99. Foram rejeitadas as emendas apresentadas, a fim de impedir que tivesse o projeto que retornar à Câmara para sua análise, e foi negociado o veto presidencial a alguns dispositivos, como a definição de população tradicional (art. 2º, XV)326; a

possibilidade de uso direto de recursos naturais em RPPNs (art. 21, § 2º, III); a exigência de lei para a instituição de UCs (art.22, § 1º); a exclusão, do cálculo das indenizações, das APPs e áreas de reserva legal327 (art. 45, I e II) e a obrigação de

reclassificação de UCs ocupadas por populações tradicionais (art. 56).

O Projeto de Lei foi aprovado no Congresso, no dia 21/06/00, com quatro emendas de redação, tendo sido sancionado no dia 19/07/00 e publicado no Diário Oficial da União como Lei nº 9.985/00.

A história da elaboração da Lei do SNUC demonstra claramente o embate travado entre preservacionistas e socioambientalistas e revela, como produto final, uma norma que é fruto da composição desse e de outros conflitos de interesses presentes no seio da sociedade brasileira. O tratamento conferido pela Lei às populações tradicionais residentes no interior das UCs onde sua presença não é admitida reflete essa composição, assim como a previsão de categorias de manejo de proteção integral de um lado e, de outro, de uso sustentável, em especial as que buscam especificamente a proteção do ambiente natural e, ao mesmo tempo, a dos grupos tradicionais. Essas questões serão abordadas detalhadamente nos próximos itens.