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Os direitos fundamentais no âmbito do direito internacional

Nascimento ter a democracia, pouco a pouco, passado a ser compreendida não mais como um simples conjunto de regras de participação formal na vida pública, mas um jogo de construção de direitos, na medida em que sua construção exige um

ethos participativo, além de mecanismos eficientes de mudança. A democracia,

entendida como um processo, faz-se por meio de uma participação crescente dos diversos grupos sociais e do estabelecimento de regras institucionais de consenso relativo e provisório, sendo essencial, no Brasil, a obtenção de resultados, tendo em vista a natureza ainda em formação da sociedade brasileira, que abriga enormes desigualdades e instituições ainda em fase de amadurecimento65.

1.5 Os direitos fundamentais no âmbito do direito internacional

No plano internacional, a Carta da Organização das Nações Unidas - ONU, de 1945, determinou aos Estados-parte a promoção da proteção dos direitos humanos e das liberdades fundamentais. Desse modo, foi aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948,66, por meio da

Resolução nº 217-A (III), a Declaração Universal de Direitos Humanos, que estabelece um rol de direitos fundamentais civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, elevados à condição de inalienáveis e formando uma unidade interdependente e indivisível, que conjuga valores de liberdade e igualdade. Essa interdependência demanda a efetividade dos direitos econômicos, sociais e culturais para que os direitos civis e políticos não corram o risco de se transformar em meras categorias formais, bem como a necessidade de realização destes para que os primeiros possuam verdadeira significação, podendo ser garantidos por muito tempo67.

O consentimento dos Estados em se submeterem ao controle da comunidade internacional, no que diz respeito à observância dos direitos humanos, deu-se em

65 NASCIMENTO (1997).

66 Foram 48 votos a zero e 8 abstenções.

função de sua universalização, a demandar a criação de uma sistemática internacional de monitoramento e controle, chamada international accountability68.

Como a Declaração Universal não apresenta força jurídica obrigatória e vinculante, eis que apenas atesta o reconhecimento universal dos direitos humanos fundamentais, houve a necessidade de que fosse “juridicizada” sob a forma de um tratado internacional, juridicamente obrigatório e vinculante aos Estados-parte. Esse processo de juridicização da Declaração iniciou-se em 1949 e foi concluído em 1966, com a elaboração de dois tratados internacionais, o Pacto Internacional de Direitos Humanos Civis e Políticos e o Pacto Internacional de Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais, que entraram em vigor em 1976, quando alcançaram o número suficiente de ratificações. Formou-se, assim, a Carta Internacional de Direitos Humanos – International Bill of Rights – integrada pela Declaração Universal de Direitos Humanos, de 1948, e pelos dois Pactos Internacionais, de 1966.

A grande discussão que permeou a elaboração dos dois Pactos foi justamente a necessidade de tratados distintos versando, um, sobre direitos civis e políticos e, outro, sobre direitos econômicos, sociais e culturais. No início, entre 1949 e 1951, a Comissão de Direitos Humanos da ONU trabalhou na elaboração de um único documento, que conjugava as duas categorias de direitos fundamentais. Mas, em 1951, a Assembléia Geral da ONU, por influência dos países ocidentais, determinou a elaboração de Pactos distintos, que seriam aprovados e abertos para assinatura de forma simultânea, eis que, em seu próprio texto, era enfatizada a unidade e a indivisibilidade dos direitos humanos69.

Essa aparente contradição entre a divisão em dois tratados e a unidade e indivisibilidade dos direitos humanos, como características expressamente previstas nos próprios documentos, deve-se à discordância política entre países do bloco ocidental e oriental, no contexto da guerra fria, acerca dos métodos de implementação das distintas categorias de direitos70. A divisão teve por fundamento

o argumento de que a implementação de muitos dos direitos definidos pelo Pacto Internacional de Direitos Humanos Civis e Políticos dependeria exclusivamente da atuação estatal de protegê-los e garanti-los, na medida em que são direitos que

68 PIOVESAN (2002, p. 163). 69 PIOVESAN (2002, p. 166).

impõem, em sua maioria, uma abstenção do Estado. Já os direitos proclamados no Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais demandariam, para sua implementação, ações positivas do Estado, dependentes do atual estágio de desenvolvimento do país e sua consequente capacidade de investimento.

Nesse sentido, aduz Bobbio que

as exigências que se concretizam na demanda de uma intervenção pública e de uma prestação de serviços sociais por parte do Estado só podem ser satisfeitas num determinado nível de desenvolvimento econômico e tecnológico; e que, com relação à própria teoria, são precisamente certas transformações sociais e certas inovações técnicas que fazem surgir novas exigências, imprevisíveis e inexequíveis antes que essas transformações e inovações tivessem ocorrido71.

Esses mesmos argumentos foram responsáveis pela demora na sua adoção e entrada em vigor, pois os Pactos, apresentados, em 1954, à Assembléia Geral da ONU, foram adotados apenas em 1966, ou seja, doze anos depois, entrando em vigor após outros dez anos72.

Por outro lado, lembra Lafer que, do ponto de vista dos administrados, os direitos econômicos, sociais e culturais irão demandar a adoção de técnicas jurídicas distintas para sua garantia, adequadas à promoção dos indivíduos na sociedade, através da ampliação dos serviços públicos73.

A questão central, determinante para a adoção de Pactos diferentes, foi a da aplicabilidade das duas dimensões de direitos humanos. Para autores como Cranston e Bidart Campos, os direitos econômicos, sociais e culturais não teriam aplicabilidade, configurando-se como “direitos impossíveis”, face à falta de clareza em relação às obrigações do Estado decorrentes das prescrições legais74.

71 BOBBIO (1992, p. 76).

Ver também NIEC (2000).

72 SIEGHART (1983, p. 25). 73 LAFER (1988, p. 129).

74 Para CRANSTON (1979), “não há nada essencialmente difícil em transformar direitos políticos e

civis em direitos positivos. Tudo o que é preciso é uma corte internacional com poderes reais de imposição. Mas os assim chamados direitos econômicos e sociais não podem ser transformados em direitos positivos por inovações análogas. O direito é como uma obrigação, na medida em que ele tem que passar pelo teste da praticabilidade. (...). Se é impossível que uma coisa seja feita, é absurdo reivindicá-la como direito”. E continua o autor, afirmando que os tradicionais direitos civis e políticos podem ser “prontamente assegurados por legislação razoavelmente simples. Como esses direitos são, na maior parte, direitos contra a interferência do governo nas atividades do indivíduo, uma grande parte da legislação necessitada deve conter o braço executivo do próprio governo”. Mas esse não é mais o caso dos direitos econômicos e sociais, que demandam mais do que leis. Para garanti-

Piovesan, Kelley, Buergenthal, Shelton, Stewart e Vierdag entendem serem os direitos humanos econômicos, sociais e culturais direitos progressivos, que não podem ser implementados sem que exista um mínimo de recursos econômicos e tecnológicos disponíveis, sendo necessário, para sua adoção, que tenham se tornado prioridade na agenda política nacional75. Por isso, quando os Estados

ratificaram o Pacto Internacional de Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais, não se comprometeram a atribuir aos direitos nele elencados efeitos imediatos, mas sim a adotar medidas, até o máximo de recursos disponíveis, a fim de alcançarem progressivamente sua plena realização, nos termos de seu art. 2º, 176.

Tendo em vista semelhantes argumentos, o Comitê sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU expõe que devem ser tomadas medidas no sentido da plena realização desses direitos, dentro de um período de tempo razoável, a contar de sua entrada em vigor77. Relata Cançado Trindade que o

Comitê tem elaborado sucessivos estudos e pareceres para dar maior concretude às obrigações internacionais assumidas, tais como o aprimoramento do sistema de relatórios, a fim de permitir uma avaliação mais precisa sobre os avanços de cada país; a criação de uma assistência técnica internacional, para auxiliar países subdesenvolvidos; a fixação de obrigações mínimas de cumprimento imediato, dentre outros78.

Todavia, mesmo aqueles que compartilham a idéia de que os direitos humanos econômicos, sociais e culturais devem ser implementados progressivamente concordam com o fato de que nem todos os direitos arrolados no Pacto em questão são de aplicabilidade progressiva, pois há disposições, como a

los, os governos “têm que ter acesso a uma grande riqueza de capital, e muitos governos no mundo hoje ainda são pobres”.

Ver também CAMPOS (1991).

75 PIOVESAN (2002, p.149).

76 BUERGENTHAL; SHELTON; STEWART (2004, p.66).

Diz o art. 2º, 1, do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais: “Cada um dos Estados-partes no presente Pacto compromete-se a agir, quer com seu próprio esforço, quer com a assistência e cooperação internacionais, especialmente nos planos econômico e técnico, no máximo dos seus recursos disponíveis, de modo a assegurar progressivamente o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto por todos os meios apropriados, incluindo em particular medidas legislativas”.

77 COMMITTEE ON ECONOMIC, SOCIAL AND CULTURAL RIGHTS (Acesso em 24/10/2006). 78 CANÇADO TRINDADE (1995, p. 57).

obrigação de que os direitos sejam exercidos de forma não discriminatória, que têm eficácia plena, imediata79.

No âmbito do Direito interno, tendo como parâmetro o texto da Constituição Federal de 1988, autores como Bandeira de Mello e Silva defendem a possibilidade de imediata aplicação da maior parte dos direitos humanos, inclusive os econômicos, sociais e culturais. Isso porque o parágrafo 1º do art. 5º determina expressamente que as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais possuem aplicabilidade imediata. Contudo, aduz Silva que o enunciado do parágrafo 1º do art. 5º não resolve todas as questões, porque a Constituição mesma faz depender de legislação ulterior a aplicabilidade de algumas regras definidoras de direitos sociais, possuindo, por isso, eficácia limitada80.

No que pesem as opiniões acima mencionadas, entende-se, neste trabalho, que, apesar do disposto na CF/88, não é possível conferir-se à maioria dos direitos de segunda geração aplicabilidade imediata, por dependerem de investimento do Estado para a prestação de serviços, condicionados, portanto, à capacidade de gastos públicos e às opções políticas eleitas por cada governo. Por isso, embora produzam, imediatamente à promulgação da Constituição, alguns efeitos, como o de vedar a edição de normas que lhes sejam contrárias, não serão, em grande parte, plenamente eficazes até que o serviço seja realmente colocado à disposição da sociedade, dentro de um nível de qualidade satisfatório. Não se trata, portanto, como entende Silva81, apenas de falta de regulamentação, quando requerida pelo texto

normativo, mas sim de capacidade de investimento, ainda quando a norma, formalmente, possua eficácia contida e não limitada.

De qualquer modo, importa não perder de vista a indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos, afirmadas pela identidade entre os arts. 1º e 5º dos dois Pactos Internacionais e reafirmadas na Conferência Internacional sobre Direitos Humanos, realizada em Teerã, em 1968.

79 COMMITTEE ON ECONOMIC, SOCIAL AND CULTURAL RIGHTS (Acesso em 24/10/2006).

Sobre a matéria, ver: BOVEN (1984).

80 SILVA (1990, p. 184). 81 SILVA (1990, p. 184).

1.6 Proteção constitucional do direito ao meio ambiente equilibrado e dos